Os manuscritos gregos e de
antigas versões (traduções) do Novo Testamento apresentam cinco finais diferentes para o Evangelho de Marcos, a saber:
1. Alguns finalizam no
versículo 16:8 e simplesmente omitem os vv. 9-20: “Elas saíram fugindo do
sepulcro, porque estavam possuídas de temor e assombro; e não disseram nada a
ninguém, porque tinham medo”. São assim os códices Sinaítico e Vaticano, L*, o manuscrito
k da Antiga Versão Latina, a Siríaca sinaítica, e diversos manuscritos das
versões antigas arménia, georgiana e etíope. Eusébio e Jerónimo notaram que a
maioria dos manuscritos gregos que conseguiram examinar careciam do final
longo. Aparentemente, nem Clemente nem Orígenes conheceram tal final.
Finalmente, ainda alguns dos manuscritos que o possuem, apresentam observações
ou marcas dos escribas indicando que se trata de uma adição.
2. Outros acrescentam o
seguinte texto: “Mas [as mulheres] relataram resumidamente a Pedro e aos que estavam
com ele tudo quanto lhes tinha sido dito. E depois disto o próprio Jesus enviou
por meio deles, do Oriente ao Ocidente, a sagrada e imperecível proclamação da
salvação eterna”. Entre eles apenas este versículo no códice Bobbiensis (k) do
século IV ou V.
3. Ainda outros intercalam
o versículo acima citado antes do final longo (16:9-20) em unciais dos séculos
VII ao IX (L, Psi, 099, 0112), alguns minúsculos e cópias de versões antigas.
4. Muitos manuscritos contêm
o final longo que inclui os versículos 9-20, alguns com o acréscimo do texto
recém-mencionado. É o que se encontra no chamado Textus Receptus, e é atestado pelos unciais A C D L W Delta Sigma
Theta 047, pela maioria dos manuscritos minúsculos e da Antiga Latina, da
Vulgata, da siríaca curetoniana e Peshitta (“vulgata” siríaca), e da versão
copta. Além de outros testemunhos posteriores, Ireneu e Hipólito o conheciam;
aparentemente é citado pela Epistula
Apostolorum e Taciano o incluiu na sua harmonia ou Diatessaron de finais do século II.
5. Finalmente, existe uma
versão ampliada do final “longo” que imediatamente depois do versículo 14
(“..porque não haviam crido nos que o tinham visto já ressuscitado”)
acrescenta: “E eles se desculparam dizendo «Esta era de iniquidade e
incredulidade está debaixo de Satanás, que não permite que a verdade e o poder
de Deus prevaleçam sobre a impureza dos espíritos. Portanto, revela agora a tua
justiça». Assim falaram a Cristo. E Cristo lhes respondeu, «O fim de anos do
poder de Satanás se cumpriu, mas outras terríveis coisas se aproximam. E por
aqueles que pecaram eu fui entregue à morte, para que possam voltar à verdade e
não pecar mais; para que possam herdar a glória espiritual e incorruptível de
justiça que está no céu»”. Esta adição foi notada por Jerónimo, e é atestada
pelo códice W adquirido em 1906 por Charles L. Freer, que data da última parte
do século IV ou princípios do seguinte.
É claro que, nem todos
estes finais têm o mesmo peso. É extremamente improvável que Marcos, com seu
estilo simples, tenha escrito algo tão altissonante como “a sagrada e
imperecível proclamação da salvação eterna”, ou “a glória espiritual e
incorruptível de justiça”, expressões que delatam influências helenistas
posteriores. Este facto, somado ao número e idade dos testemunhos, praticamente
isenta de maiores considerações os finais listados (2) (3) e (5).
Apesar de alguns terem sustentado – por exemplo Lohse, p. 144-145 - que o Evangelho finalizava
originalmente no versículo 8, isto também é pouco provável, em parte porque constitui um final anticlimático, muito pouco apropriado para concluir “o
evangelho de Jesus Cristo” (1:1).
Mais importante é a
evidência fornecida pela última cláusula do versículo 8, “porque tinham medo” (grego
efobounto gar). Metzger nota que “de
um ponto de vista estilístico, terminar uma frase grega com a palavra gar é
extremamente incomum e raríssimo – só se acharam relativamente poucos exemplos
em toda a vasta gama de obras literárias gregas, e não se achou nenhum caso no
qual gar se encontre no final de um
livro. Mais ainda, é possível que no versículo 8 Marcos use o verbo efobounto para significar «estavam
assustadas com...» algo (como o faz em quatro das outras aparições deste verbo
no seu Evangelho [ver Marcos 9:32, 11:32, 12:12 e especialmente 11:18, “efobounto gar auton”, eles o temiam]).
Em tal caso, obviamente é preciso algo para concluir a frase” (p. 228). Em
suma, estes factos sugerem que falta algo do que Marcos originalmente escreveu,
e que tal ausência motivou mais tarde a aparição de diferentes conclusões.
A versão que aparece nas
nossas Bíblias como os versículos 16:9-20 também não parece a original, apesar
de ser atestada por muitos manuscritos. Para começar, há uma transição muito
abrupta entre o v. 8 e o 9; o sujeito do primeiro versículo (8) são as
mulheres, enquanto Jesus é obviamente o sujeito no segundo (9). No entanto, no
texto grego o sujeito está tácito: “E tendo ressuscitado cedo no primeiro [dia]
da semana, apareceu primeiro a Maria a Madalena...” Este facto não é evidente em muitas versões em português porque os tradutores incluem
habitualmente o nome de Jesus nesta frase.
Em segundo lugar, no v. 9
se fala de Maria Madalena como se não tivesse sido mencionada antes, quando já
se falou dela no relato marcano da crucificação, sepultura e ressurreição. O
resto das mulheres desaparece da cena, ainda que tivessem sido comissionadas
para relatar a ressurreição no v. 7. No mesmo versículo o anjo anuncia que
verão Jesus na Galileia, mas as manifestações do Ressuscitado dão a impressão
de ocorrer na área de Jerusalém; pelo menos, não é mencionada a Galileia.
O estilo destes versículos
difere também da linguagem habitual de Marcos. Das 101 palavras gregas dos
versículos 9-20, há 75 significativas (excluídos conjunções, artigos e nomes
próprios), das quais 15 não aparecem no resto do Evangelho e 11 que aparecem,
usam-se com um sentido diferente. Mesmo considerando a diferença do tema, a
linguagem se apresenta prima facie
como não própria de Marcos.
Também não há no resto do
segundo Evangelho nenhuma recriminação tão severa como a indicada no versículo
14. Por outro lado, a promessa de imunidade diante das serpentes e do veneno
não só é alheia a Marcos, mas aos outros três evangelhos, e ao resto do Novo
Testamento.
Há quem pense que os
versículos 9-20 são uma tentativa de harmonizar o relato de Marcos com os dos
outros Evangelhos canónicos; são desta opinião por exemplo Bruce e Linnemann
(citado por Kümmel). Por outro lado tal “conclusão foi contestada, com muito
acerto” (Leon-Dufour), por Joseph Hug, numa tese doutoral publicada em 1978.
Esta análise literária indicaria que os versículos 9-20 seriam um acréscimo
original que deve datar-se entre finais do século primeiro e antes de meados do segundo (Metzger, p. 297). O acréscimo teria tido como
propósito fornecer instruções missionárias à comunidade cristã de fala grega
com tendências carismáticas. Deste ponto de vista, Marcos 16:9-20 seria um
testemunho muito primitivo proveniente da Igreja subapostólica.
Em suma, considerada toda
a evidência, aparentemente o texto autêntico e original de Marcos, tal como
este Evangelho foi conservado, termina em 16:8. Portanto, não é prudente basear
doutrinas nos versículos 9-20.
Bibliografia
Bruce, Frederick Fyvie: Answers to questions. The Paternoster Press, 1972 (p. 155).
Kümmel, Werner Georg. Introduction to the New Testament. Rev. English Ed. Trad. Howard
Clark Kee. Nashville: Abingdon Press, 1975 (p. 98-101).
Ladd, George Eldon. Crítica del Nuevo Testamento: Una perspectiva evangélica. Trad.
Moisés Chávez. El Paso: Mundo Hispano, 1990 (p. 56-59).
Leon-Dufour, Xavier. Los evangelios sinópticos. Em Augustin
George e Pierre Grelot (Dirs.), Introducción
Crítica al Nuevo Testamento. Trad. J. Cabanes e M. Villanueva. Barcelona:
Herder, 1982 (pp. 293-295).
Metzger, Bruce M. The
text of the New Testament: Its transmission, corruption and restoration, 3ª
Ed. New York: Oxford University Press, 1992 (p. 226-228, 296-297).
Wessel, Walter W.. Mark. Em Frank E. Gaebelein
(Gen.Ed.), The Expositor’s Bible
Commentary. Grand Rapids: Zondervan, 1984 (8:791-793).