domingo, 20 de agosto de 2017

As 97 teses esquecidas


O ano de 1992 foi o 475º aniversário da afixação de Lutero das 95 Teses na porta da igreja em Wittenberg. A publicação dessas teses em 31 de outubro de 1517 é habitualmente considerado como o início da Reforma Protestante. O ataque de Lutero a aspectos da venda de indulgências chamou a atenção de muitas pessoas - comuns e nobres - que estavam cansadas da ganância e da corrupção na igreja dos seus dias. Através das 95 Teses, Lutero tornou-se uma figura pública e o líder da Reforma.

As 95 teses, contudo, não foram as únicas teses que Lutero escreveu em 1517. Em setembro desse ano, Lutero escreveu 97 teses que são largamente esquecidas, mas são conhecidas pelos historiadores como as Disputas Contra a Teologia Escolástica. Estas 97 teses são muito mais interessantes e importantes do ponto de vista teológico do que as 95 Teses.

Nas suas 97 teses, Lutero mostra o quão crítico ele se tornou dos aspectos centrais da teologia medieval e como ele se convencera de que a igreja precisava mais da teologia de Agostinho e menos de Aristóteles.

A primeira tese de Lutero deve ter atordoado muitos que a ouviram: "Dizer que Agostinho se excede ao atacar os hereges é dizer que Agostinho quase sempre teria mentido". O ensino de Agostinho sobre o pecado, a graça e a predestinação era tão claro e intransigente, e a autoridade de Agostinho como teólogo era tão grande que a única maneira pela qual os teólogos medievais podiam discordar dele era declarar que ele havia exagerado alguns dos seus ensinos ao confrontar os hereges. Este amolecimento de Agostinho foi amplamente aceite na Idade Média. O ataque de Lutero a esta abordagem era extraordinário.

Este ataque refletia até que ponto a teologia de Lutero se tornou agostiniana. Ao lermos as teses, vemos preocupações específicas de Lutero em defender a pura herança agostiniana. A sua primeira preocupação foi com a natureza da vontade em pessoas caídas. Lutero destaca que a vontade humana está cativa de uma natureza corrupta e apenas pode fazer o mal. "4. Por isso, é verdade que o ser humano, sendo árvore má, não pode senão querer e fazer o mal". A condição desesperada do homem é resumida: "17. Por natureza, o ser humano não consegue querer que Deus seja Deus; pelo contrário, quer que ele mesmo seja Deus".

Lutero destaca que somente a graça pode resgatar a humanidade de sua condição caída. O homem não pode fazer nada para se preparar para a graça. Somente o amor eletivo de Deus pode preparar o homem para a graça. "29. A melhor e infalível preparação e a única disposição para a graça é a eleição e predestinação eterna de Deus". Lutero recuperou de Agostinho não apenas a imagem bíblica do extravio do homem, mas também a verdade bíblica da predestinação como a fonte de redenção. O homem não pode merecer graça. Toda a bondade vem de Deus: "40. Não nos tornamos justos por realizarmos coisas justas; é tendo sido feitos justos que realizamos coisas justas".

Lutero vê Aristóteles, o antigo filósofo grego, como a principal influência destrutiva que minou a teologia agostiniana na Idade Média. "50. Em suma, todo o Aristóteles está para a teologia como as trevas estão para a luz". Lutero ataca o método de Aristóteles como confiando demasiado na razão [1] ... Mas ele ataca ainda mais o impacto de Aristóteles sobre o conteúdo da teologia. De Aristóteles fluíram ideias sobre a bondade do homem, a capacidade da sua vontade de escolher o bem, sobre liberdade e mérito.

Bondade e liberdade eram conceitos teológicos chave na igreja medieval. A Reforma começou quando cristãos como Martinho Lutero começaram a ver a bondade e liberdade do homem como ensino oposto à religião bíblica.

W. Robert Godfrey, Insights Into Luther, Calvin, and the Confessions: Reformation Sketches, pp. 35-38.


[1] N. do T. «Confiar» demasiado na razão no sentido de «depender» ou «esperar» demasiado da razão. Não no sentido que Lutero pensasse que a razão seja enganadora ou tenha algum defeito intrínseco e que portanto não se pode confiar nela. Simplesmente ela não é suficiente para alcançar todas a verdades como as divinas – que, de resto, foram reveladas e não concluídas racionalmente. O ataque de Lutero é contra o racionalismo da escolástica, a ideia de que se pode chegar ao conhecimento das verdades divinas somente pela razão, traduzida em silogismos aristotélicos, não contra a razão em si.


Quem quiser ler todas as 97 teses com uma boa introdução pode ver aqui.
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