O ano de 1992 foi o 475º
aniversário da afixação de Lutero das 95 Teses na porta da igreja em
Wittenberg. A publicação dessas teses em 31 de outubro de 1517 é habitualmente
considerado como o início da Reforma Protestante. O ataque de Lutero a aspectos
da venda de indulgências chamou a atenção de muitas pessoas - comuns e nobres -
que estavam cansadas da ganância e da corrupção na igreja dos seus dias.
Através das 95 Teses, Lutero tornou-se uma figura pública e o líder da Reforma.
As 95 teses, contudo, não
foram as únicas teses que Lutero escreveu em 1517. Em setembro desse ano,
Lutero escreveu 97 teses que são largamente esquecidas, mas são conhecidas
pelos historiadores como as Disputas
Contra a Teologia Escolástica. Estas 97 teses são muito mais interessantes
e importantes do ponto de vista teológico do que as 95 Teses.
Nas suas 97 teses, Lutero
mostra o quão crítico ele se tornou dos aspectos centrais da teologia medieval
e como ele se convencera de que a igreja precisava mais da teologia de
Agostinho e menos de Aristóteles.
A primeira tese de Lutero
deve ter atordoado muitos que a ouviram: "Dizer que Agostinho se excede ao
atacar os hereges é dizer que Agostinho quase sempre teria mentido". O
ensino de Agostinho sobre o pecado, a graça e a predestinação era tão claro e
intransigente, e a autoridade de Agostinho como teólogo era tão grande que a
única maneira pela qual os teólogos medievais podiam discordar dele era
declarar que ele havia exagerado alguns dos seus ensinos ao confrontar os
hereges. Este amolecimento de Agostinho foi amplamente aceite na Idade Média. O
ataque de Lutero a esta abordagem era extraordinário.
Este ataque refletia até
que ponto a teologia de Lutero se tornou agostiniana. Ao lermos as teses, vemos
preocupações específicas de Lutero em defender a pura herança agostiniana. A
sua primeira preocupação foi com a natureza da vontade em pessoas caídas. Lutero
destaca que a vontade humana está cativa de uma natureza corrupta e apenas pode
fazer o mal. "4. Por isso, é verdade que o ser humano, sendo árvore má,
não pode senão querer e fazer o mal". A condição desesperada do homem é
resumida: "17. Por natureza, o ser humano não consegue querer que Deus
seja Deus; pelo contrário, quer que ele mesmo seja Deus".
Lutero destaca que somente
a graça pode resgatar a humanidade de sua condição caída. O homem não pode
fazer nada para se preparar para a graça. Somente o amor eletivo de Deus pode
preparar o homem para a graça. "29. A melhor e infalível preparação e a
única disposição para a graça é a eleição e predestinação eterna de Deus".
Lutero recuperou de Agostinho não apenas a imagem bíblica do extravio do homem,
mas também a verdade bíblica da predestinação como a fonte de redenção. O homem
não pode merecer graça. Toda a bondade vem de Deus: "40. Não nos tornamos
justos por realizarmos coisas justas; é tendo sido feitos justos que realizamos
coisas justas".
Lutero vê Aristóteles, o
antigo filósofo grego, como a principal influência destrutiva que minou a
teologia agostiniana na Idade Média. "50. Em suma, todo o Aristóteles está
para a teologia como as trevas estão para a luz". Lutero ataca o método de
Aristóteles como confiando demasiado na razão [1] ... Mas ele ataca ainda mais
o impacto de Aristóteles sobre o conteúdo da teologia. De Aristóteles fluíram
ideias sobre a bondade do homem, a capacidade da sua vontade de escolher o bem,
sobre liberdade e mérito.
Bondade e liberdade eram
conceitos teológicos chave na igreja medieval. A Reforma começou quando
cristãos como Martinho Lutero começaram a ver a bondade e liberdade do homem
como ensino oposto à religião bíblica.
W. Robert Godfrey, Insights
Into Luther, Calvin, and the Confessions: Reformation Sketches, pp. 35-38.
[1] N. do T. «Confiar» demasiado na razão no sentido de «depender» ou
«esperar» demasiado da razão. Não no sentido que Lutero pensasse que a razão
seja enganadora ou tenha algum defeito intrínseco e que portanto não se pode
confiar nela. Simplesmente ela não é suficiente para alcançar todas a verdades
como as divinas – que, de resto, foram reveladas e não concluídas
racionalmente. O ataque de Lutero é contra o racionalismo da escolástica, a
ideia de que se pode chegar ao conhecimento das verdades divinas somente pela
razão, traduzida em silogismos aristotélicos, não contra a razão em si.
Quem quiser ler todas as
97 teses com uma boa introdução pode ver aqui.