domingo, 24 de novembro de 2013

O Evangelho de Judas: Factos e especulações


A recente publicação por parte da National Geographic de uma cópia do chamado Evangelho de Judas, presente num códice de papiro encontrado há quase três décadas no Egito foi precedida de uma impressionante campanha publicitária que chegou às manchetes de todo o mundo.
Lamentavelmente, a National Geographic decidiu apresentar um acontecimento científico notável com um deliberado tom sensacionalista, não isento de insinuações contra as igrejas cristãs, como é óbvio no título da apresentação televisiva: “O evangelho proibido de Judas”.
No decorrer do programa afirma-se que o documento poderia “desbaratar” o dogma cristão, que o bispo Ireneu de Lyon escolheu no século II os quatro Evangelhos canónicos (Mateus, Marcos, Lucas e João) e descartou dezenas de outros evangelhos existentes. Também é dito que nos Evangelhos canónicos se evidencia um crescente antissemitismo, e vincula-se este suposto antissemitismo com a perseguição dos judeus que atingiu o seu auge no século XX sob o regime nazi.
A leviandade irresponsável destas afirmações contrasta com a seriedade do trabalho de restauração, reconstrução, edição e tradução do texto por parte dos eruditos envolvidos. Por esta razão torna-se imprescindível distinguir o valor histórico do Evangelho de Judas do seu uso com fins ideológicos.
Alguns factos
O documento publicado faz parte de um códice (conjunto de folhas cosidas como um livro) de papiro de 62 ou 66 páginas, encontrado em 1978 próximo de Al Minyah, uma localidade na margem ocidental do Nilo. O sítio encontra-se ao norte de Nag Hammadi, onde em 1945 se encontraram vários documentos relacionados. Foi comprado por antiquários locais, ilegalmente retirado do Egito e por fim adquirido pela antiquária de Zurique Frieda Nussberger-Tchacos em 2000. A proprietária chamou-o códice Tchacos em honra do seu pai. O códice tinha passado 16 anos num cofre em Nova York, onde, longe do clima quente e seco do Egito, o seu estado se deteriorou acentuadamente.
A Fundação Maecenas de Basileia (Suíça) adquiriu-o em 2001, mas como a lei suíça não permite a venda de um documento roubado do seu país de origem, a citada Fundação teve que procurar formas alternativas de obter proveitos. Por isso convocou a National Geographic para conservar, autenticar, editar e traduzir o documento, cujo destino final será o Museu Cóptico do Cairo.
O códice Tchacos consta de folhas de papiro escritas de ambos os lados. O Evangelho de Judas ocupa apenas uma parte da sua extensão. O resto contém outros documentos como o Primeiro Apocalipse de Tiago, a carta de Pedro a Filipe e um texto denominado provisoriamente o Livro de Alógenes. Está escrito em copta, o idioma popular dos egípcios entre os séculos III e X da nossa era, que incorporava muitas palavras gregas e se escrevia em caracteres similares aos do alfabeto grego. Especificamente, a escrita corresponde a um dialeto copta chamado saídico.
A autenticidade do códice foi avaliada mediante uma série de técnicas que incluem a sua datação mediante carbono-14, análise da tinta usada, análise multiespectral, paleografia (análise da escrita antiga). Além disso, realizou-se uma análise do conteúdo e estilo. Os resultados indicam que se trata de um genuíno códice copta que data do século III ou IV da nossa era. Isto não significa de modo algum que seja um documento cristão, e muito menos de origem apostólica.
Resumo do conteúdo
O seguinte baseia-se na tradução publicada pela National Geographic, que ao que parece não inclui senão parte do texto do códice original.
O chamado Evangelho de Judas tem um cabeçalho com a seguinte descrição: “O relato secreto da revelação que Jesus pronunciou em conversa com Judas Iscariotes durante uma semana, três dias antes de que celebrasse a Páscoa”. No final do manuscrito, como em outros similares, lê-se o título: O evangelho de Judas.
Menciona que Jesus fez “milagres e grandes maravilhas para a salvação da humanidade” e que chamou doze discípulos, aos quais por vezes lhes aparecia como uma criança.
Caracteristicamente, Jesus censura repetidamente os doze, e ri-se deles. O único que pode permanecer em pé diante dele é Judas, que o confessa como proveniente do “reino imortal de Barbelo”. Jesus lhe ordena que se separe dos outros discípulos para receber uma grande revelação.
Embora o texto seja fragmentário, já que faltam linhas aqui e ali, o que é apresentado é uma cosmogonia e uma escatologia típica do movimento gnóstico, na qual, por exemplo, Adão e Eva foram criados por espíritos inferiores ou diabólicos.
Jesus revela a Judas que este último deveria sofrer por causa da incompreensão dos outros, mas acrescenta: “Tu superá-los-ás a todos, pois sacrificarás o homem que me reveste”. O próprio Jesus encarrega Judas de o entregar. O documento termina dizendo que Judas respondeu às perguntas dos escribas, “recebeu dinheiro e o entregou a eles.”
Diferenças com os Evangelhos canónicos
Existem muitas diferenças assinaláveis entre o Evangelho de Judas e os quatro Evangelhos canónicos, sejam considerados individualmente ou em conjunto. O fundo doutrinal dos Evangelhos Canónicos são as Escrituras hebraicas, como o demonstram as centenas de citações e alusões ao Antigo Testamento que aparecem na boca de Jesus e dos seus discípulos. Nos Evangelhos canónicos, como no resto do Novo Testamento, a missão de Jesus como Messias de Israel é compreendida a partir de um Novo Pacto anunciado pelos antigos profetas de Israel (em particular Jeremias), e a morte de Jesus tem como propósito operar a expiação pelos pecados.
O Evangelho de Judas nada diz das Escrituras hebraicas (com exceção dos nomes de Adão, Eva e Sete) e nele a morte de Jesus carece de valor expiatório. Não possui intenção sacrificial, mas é simplesmente um instrumento para que o espírito de Cristo se desembarace do homem Jesus, para poder então ascender a âmbitos superiores de existência. Também não há indício da crença na ressurreição de Jesus Cristo, central para a fé cristã.
Assim, no Evangelho de Judas é refletida a noção platónica do corpo como cárcere da alma, como um estorvo do qual a alma humana precisa se desfazer para alcançar a salvação. O gnosticismo tipicamente considerava o universo material como intrinsecamente inferior e indigno de redenção. Por esta razão estimava o Deus criador do Antigo Testamento como uma divindade inferior e incapaz de salvar. A salvação provém através da aquisição de um conhecimento superior (gnose), reservado aos poucos que eram dignos dele, sobre a verdadeira natureza da alma humana e como pode ela transcender o universo material.
Tais ideias contrastam nitidamente com o ensino bíblico sobre o universo criado pelo único Deus e intrinsecamente bom. Embora corrompido por causa do pecado, o universo está destinado a ser resgatado e a tornar-se, no final dos tempos, um céu e uma terra novos nos quais habita a justiça. Esta crença é também coerente com a afirmação da ressurreição corporal, exemplificada pela ressurreição do próprio Cristo.
“Autêntico” não significa “cristão” nem “bíblico”
Estamos, pois, perante um documento antigo, provavelmente genuíno, que data de cerca do ano 400 da nossa era. Supõe-se que este documento copta é uma tradução de um documento escrito em grego por volta da segunda metade do século II. Se isto for verdade, o Evangelho de Judas pode dizer-nos muito acerca do que acreditava quem o escreveu. Além de alusões a éones e divindades alheias à Bíblia, o seu autor parece ter conhecido superficialmente alguns ensinamentos e textos cristãos.
O seu conteúdo publicado permite inferir que provém de um grupo sincrético marginal, que amalgamou crenças pagãs e cristãs. Como resultado, o que ensina não é autêntico cristianismo tal como o conhecemos pelas Escrituras e pela história. O Metropolitano da Igreja Ortodoxa Copta resumiu isto ao declarar que “não são textos cristãos confiáveis nem exatos, já que são histórica e logicamente estranhos ao pensamento cristão principal e à filosofia dos cristãos primitivos e atuais”.
Deve notar-se ainda que, apesar do título, seria um grosseiro anacronismo atribuir a Iscariotes o “evangelho” que leva o seu nome. Simplesmente não pôde ter sido escrito por Judas mais de um século depois da sua morte! O costume de atribuir por escrito a autoria de obras deste tipo a algum personagem conhecido da era apostólica é muito comum na literatura apócrifa. Em contraste, grande parte do Novo Testamento canónico é anónimo em sentido estrito, pois os seus autores não se identificam no texto. Foi a tradição primitiva da Igreja, quando ainda viviam nela discípulos dos Apóstolos, que atribuiu a autoria que hoje aceitamos.
Mas além disso, o texto publicado sugere que o Evangelho de Judas não foi escrito por alguém que conhecesse a geografia palestina nem os costumes judaicos. Não é mencionado nenhum lugar, nenhum acontecimento concreto da vida de Jesus, e nem sequer o nome dos doze discípulos, com a única exceção de Judas. Os acontecimentos decorrem num limbo espácio-temporal. Completamente o contrário ocorre nos Evangelhos canónicos, cheios de alusões a costumes, lugares e personagens do tempo de Jesus.
Acusações infundadas
Os quatro Evangelhos canónicos foram escritos poucas décadas depois dos factos que narram, quando ainda viviam testemunhas presenciais. Foram cedo reconhecidos como dotados de autoridade pela maioria das Igrejas, e provavelmente circularam nelas como uma coleção já em princípios do século II.
Por esta razão Ireneu de Lyon pôde declarar algo mais tarde que só havia quatro Evangelhos autênticos: porque a esmagadora maioria dos cristãos admitia este facto. É insensato supor que Ireneu, ou qualquer outro bispo desse tempo, pudesse impor uma seleção arbitrária ao resto das Igrejas cristãs. O que Ireneu fez foi pôr por escrito o que já era geralmente aceite. Nenhum dos outros chamados evangelhos foi alguma vez levado a sério pela igreja cristã no seu conjunto.
O Evangelho de Judas, escrito muito depois dos factos por alguém obviamente alheio ao contexto espacial e temporal da Judeia do primeiro século, jamais poderia seriamente afetar a fé cristã histórica baseada nas Escrituras hebraicas e gregas.
Também não é correto supor um crescente antissemitismo nos Evangelhos canónicos. Sem dúvida, os Evangelhos refletem a polémica com os judeus que não aceitaram Jesus como Messias, polémica que se agudiza no livro dos Atos dos Apóstolos e nas cartas de Paulo. Mas é arbitrário e anacrónico acusar de antissemitismo os Apóstolos e demais seguidores do Messias judeu, muitos deles judeus eles próprios.
Conclusão
A apresentação de um documento antigo – não isento de valor histórico intrínseco mas totalmente irrelevante para o conhecimento da vida e ensinamentos de Jesus – como se fosse um desafio capaz de questionar radicalmente a doutrina cristã não é jornalismo responsável nem boa ciência. É possível que uma desmedida ambição de obter lucros a todo o custo esteja na raiz deste infeliz empreendimento.
Fernando D. Saraví

sexta-feira, 15 de novembro de 2013

A heresia do "método histórico-crítico" na interpretação da Bíblia

 

 

Texto completo da palestra: aqui
 

O testemunho de Eta Linnemann

Se pensássemos em termos de lógica humana, a teóloga alemã Eta Linnemann (1926 – 2009) jamais se tornaria uma crente autêntica, tampouco uma defensora da inerrância bíblica. Nascida e criada no seio da Igreja Luterana da Alemanha, durante a infância frequentava uma pequena comunidade, precariamente atendida por jovens pastores iniciantes, e na adolescência teve aulas de confirmação com um ministro o qual, segundo a própria Eta, “não era nascido de novo”. Ao final da Segunda Guerra Mundial, profundamente insatisfeita com a frieza na igreja da qual era membro, a jovem Eta Linnemann teve seu primeiro contato com um pastor verdadeiramente crente, que lhe falou sobre conversão. Aquele ensino a despertou para o Evangelho, levando-a a ler a Bíblia diariamente, e logo sentiu desejo de estudar Teologia. Com isso, matriculou-se na Universidade de Marburg, onde vivenciou experiências que afetariam radicalmente a sua vida.
 
Marburg significava “Rudolf Bultmann”, conforme ela mais tarde sintetizou. O pensamento de Bultmann, famoso teólogo da neo-ortodoxia (na verdade, neoliberalismo) que rompera com Karl Barth, imperava naquela Universidade, como em muitas na Alemanha. Ou, em outros termos, ali reinava o método histórico-crítico de interpretação bíblica, e naquele ambiente Eta Linnemann teve sua formação teológica, sendo aluna dos mais renomados teólogos adeptos desta corrente interpretativa, notavelmente liberal. Um momento marcante para a jovem aluna foi a aula em que o próprio Rudolf Bultmann, comentando 1Coríntios 15:3-4 (“que Cristo morreu pelos nossos pecados, segundo as Escrituras, e que foi sepultado e ressuscitou ao terceiro dia, segundo as Escrituras”), afirmou: “aqui, Paulo não está no normal de sua teologia, porque está falando da ressurreição de Jesus Cristo como se fosse um fato histórico”. Com tais palavras, o mestre procurava retirar do coração de Eta e demais alunos a crença na ressurreição do Senhor Jesus! Nos anos seguintes, os teólogos de Marburg, incluindo Bultmann, desconstituíram o ensino sobre vários outros pontos cruciais das Escrituras, afirmando claramente que diversas passagens eram mitos, ou adições indevidas de homens motivados por questões particulares de sua época e circunstância histórica. O lema era “ler a Bíblia como se Deus não existisse”!
 
Eta Linnemann foi aluna brilhante, concluindo seu doutorado sob a orientação de Rudolf Bultmann, tendo como tema uma crítica no Evangelho de Marcos, e em seguida tornou-se professora de Teologia, vindo a ser admitida na seleta Sociedade para Estudos do Novo Testamento, organização composta por destacados teólogos de orientação liberal. Porém, diante de um aparente sucesso, a teóloga Eta vivia em crescente frustração, convencida de que todo o seu estudo não a conduzira ao Senhor, nem sequer tinha utilidade na pregação do Evangelho. Então, ainda em Marburg, orientando alunos nas dissertações de conclusão de curso, teve o coração novamente aquecido ao ler a tese de um aluno que relatava milagres recentes acontecidos em igrejas na África. Como foi estarrecedora aquela notícia, para uma mulher que já não acreditava em milagres!
 
Alguns meses depois, ministrando em uma turma na qual alguns realmente demonstravam evidências de conversão, a professora Eta foi surpreendida com a notícia de que um pequeno grupo de alunos começara a orar por ela. Pouco depois, diante de insistentes convites de alunos para que participasse de reuniões de oração, Eta Linnemann compareceu a um desses encontros, onde percebeu um claro mover de Deus, que ela reconheceu como sendo a realidade da justificação pela fé em Cristo. Ela continuou frequentando reuniões como aquela, cada vez mais tocada pela mensagem da graça de Deus, até que, numa delas, diante do apelo feito pelo ministrante, para que, se alguém desejasse entregar a vida a Jesus, erguesse a mão, Eta percebendo a voz do Senhor, converteu-se ali mesmo. E, sinceramente arrependida de toda a sua experiência como teóloga bultmanniana adepta do método histórico-crítico, uma Eta Linnemann já convertida e totalmente transformada passou a frequentar a Escola Bíblica Dominical de uma igreja cristã, como aluna, com outros crentes de dezesseis a setenta anos de idade, disposta a aprender as verdades fundamentais do Evangelho!
 
Eta Linnemann foi expulsa da Sociedade para Estudos do Novo Testamento, o grupo de intelectuais de cunho liberal da Alemanha. Mas não deixou de ser professora universitária de Teologia. Desde sua conversão, a teóloga Eta, crente em Cristo Jesus, passou a defender a veracidade, confiabilidade e inerrância das Escrituras, tendo como um de seus alunos de doutorado o Rev. Augustus Nicodemus Lopes, pastor, professor e teólogo brasileiro igualmente defensor da supremacia bíblica. Além disso, Eta Linnemann escreveu livros nos quais reafirma a inerrância da Bíblia e contesta o método histórico-crítico. Duas de suas obras foram lançadas em português pela Editora Cultura Cristã: “A crítica bíblica em julgamento” e “Crítica histórica da Bíblia”.
 
A história de Eta Linnemann é um poderoso testemunho da graça de Deus e do poder do Evangelho para a salvação de pecadores. Desde a infância, frequentando uma denominação fria, burocrática, onde se vivia um cristianismo meramente formal, passando por uma escola de Teologia que, sem exagero, poderia ser descrita como um cemitério da fé cristã, esta mulher de Deus trilhou caminhos errantes, mesmo em um meio teoricamente cristão. Foi tentada em seu ego, o que é uma das mais formas de tentação mais perigosas e difíceis de se resistir. Tudo indicava que seria mais uma famosa e arrogante teóloga liberal, cercada por admiradores, aplaudida entre os intelectuais alemães e destinada à condenação eterna. Mas, pela sublime bondade do Senhor, tornou-se crente e fervorosa defensora da Palavra de Deus. Glórias sejam dadas ao Todo-Poderoso, que nos surpreende com Sua maravilhosa graça!
 
Fonte: novomanifestoreformado.blogspot.com

segunda-feira, 11 de novembro de 2013

A regra de Granville Sharp e Tito 2:13


A regra formulada por Granville Sharp em 1807 tem sido mal interpretada e usada erradamente. Além daqueles que a depreciam por razões dogmáticas, as dúvidas não procedem da sua formulação e aplicação original, mas do mau uso que se tem feito dela.
A regra estabelece que quando a conjunção kai (‘e’) liga dois nomes comuns ou particípios do mesmo caso de descrição pessoal, no singular, se o artigo determinado ho precede o primeiro dos nomes ou particípios e não se repete diante do segundo, este último sempre se refere à primeira pessoa mencionada ou descrita pelo primeiro.
Esta regra é válida então sempre que se cumpram as seguintes condições:
1. Ambos os nomes ou particípios devem referir-se a pessoas.
2. Ambos os nomes devem ser comuns (não nomes próprios).
3. Ambos os nomes devem encontrar-se no mesmo caso.
4. Ambos os nomes devem ser singulares.
5. Ambos os nomes devem estar ligados pela conjunção kai.
6. O primeiro nome deve ser precedido por ho e o segundo não.
Se qualquer destas condições não se cumpre, não pode aplicar-se esta regra.
Na sua Gramática grega do Novo Testamento, usada como livro de texto em numerosos seminários, H.E. Dana e J.R. Mantey afirmam que a regra “ainda prova ser verdadeira” (p. 141). Dão como exemplo:
tou kyrion kai sôteros Iêsou Christou
Do Senhor e Salvador Jesus Cristo
E acrescentam: “O artigo aqui indica que Jesus é Senhor e Salvador. Assim em 2 Pedro 1:1 tou theou êmôn kai sôtêros Iêsou Christou significa que Jesus é nosso Deus e Salvador. Segundo a mesma maneira Tito 2:13, tou megalou theou kai sôtêros êmôn Iêsou Christou, assevera que Jesus é o grande Deus e Salvador.” (p. 142).
Outro exemplo é Apocalipse 1:9
Egô Iôannês, ho adelfos umôn kai synkoinônos en tê thlipsei
Eu João, o irmão vosso e coparticipante na tribulação
Quando a regra de Granville Sharp é corretamente aplicada, segundo o estabelecido antes, não há exceções a ela em todo o Novo Testamento.
No seu Comentário do Novo Testamento: 1 e 2 Timóteo/Tito (Grand Rapids: SLC, 1979) William Hendricksen escreveu a propósito de Tito 2:13:
“Ora, a realização da esperança bem-aventurada é «a aparição da glória». Note-se as duas aparições. Havia ocorrido uma (veja-se comentário sobre o v. 11; cf. 2 Ti 1:10). Haverá outra (veja-se C.N.T. sobre 2 Tes 2:8; cf. 1 Ti 6:14; 2 Ti 4:1,8). Será a aparição de ... bom, quem? Através da história da interpretação essa pergunta tem dividido gramáticos e comentaristas. Esperamos a aparição em glória de uma pessoa ou de duas pessoas?
Os que favorecem o ponto de vista de uma pessoa, apoiam a tradução:
“de nosso grande Deus e Salvador Cristo Jesus” (outro texto tem “Jesus Cristo”, mas isso não tem importância em relação com o ponto em discussão). Ora, se esse ponto de vista for o correto, os que aceitam a infalibilidade das Escrituras têm com esta passagem um texto de prova adicional para a deidade de Cristo; e mesmo os que não aceitam a infalibilidade da Escritura, mas aceitam a tradução quanto a uma pessoa, têm de admitir que o autor das pastorais pelo menos (embora eles creiam que erradamente) sustentava que Jesus era um em essência com Deus o Pai. A tradução unipessoal a favorecem [ARC, ARA e a generalidade das versões em português, protestantes ou católicas], e vários comentaristas: Van Oosterzee, Bouma, Lenski, Gealy, Simpson, etc. O grande gramático do Novo Testamento A.T. Robertson faz uma poderosa defesa deste ponto de vista a partir do lado gramatical, baseando os seus argumentos na regra de Granville Sharp.
Entre outros, João Calvino não queria escolher entre a tradução unipessoal e a bipessoal. No entanto, enfatizava que em qualquer dos dois casos, o propósito da passagem é afirmar que quando Cristo se manifestar, se revelará n`Ele a grandeza da glória divina (cf. Lc 9:26); e que, por conseguinte, a passagem de nenhuma maneira apoia os arianos na sua intenção de demonstrar que o Filho é menos divino que o Pai.
A teoria bipessoal a representa com pequenas variantes diversas versões inglesas: Wycliff, Tyndale, Cranmer, A.V., A.R.V., Moffatt e R.S.V. (margem). Foi apoiada por uma longa lista de comentaristas (entre os quais encontram-se Wette, Huther, White [em The Expositor’s Bible], E.F. Scott, etc.) e especialmente pelo gramático G.B. Winer.
Winer reconhece que o seu apoio a este ponto de vista não está baseado na gramática – a qual, como chegou a admitir, permite a tradução unipessoal - mas sobre «a convicção dogmática derivada dos escritos do Apóstolo Paulo, no sentido de que este apóstolo não pode ter chamado Cristo o grande Deus» (esta argumentação vê-se em dificuldades para interpretar Ro 9:5; Fil 2:6; Col 1:15-20; Col 2:9; etc). Mas ele deveria ter notado que mesmo o próprio contexto atribui a Jesus (v. 14) funções que no Antigo Testamento se atribuem a Jehová, tais como os atos de redimir e purificar (2 S 7:23; Sal 130:8; Os 13:14; depois Ez 37:23); e que a palavra Salvador em cada um dos três capítulos de Tito primeiro se aplica a Deus, e depois a Jesus (Ti 1:3,4; 2:10,13; 3:4,6). Portanto, é evidentemente o propósito do autor desta epístola (isto é, Paulo) demonstrar que Jesus é completamente divino, tão plenamente como Jehová ou como o Pai.
Devemos considerar correta a tradução unipessoal. Recebe o apoio das seguintes considerações:
(1) A menos que haja alguma razão específica em sentido contrário, a regra sustenta que quando o primeiro de dois substantivos do mesmo caso e unidos pela conjunção e vai precedido pelo artigo, o qual não se repete diante do segundo substantivo, ambos se referem à mesma pessoa. Quando o artigo se repete diante do segundo substantivo, se está falando de duas pessoas. Exemplos:
a. O artigo precede o primeiro de dois substantivos e não se repete diante do segundo: «o irmão vosso e participante». Os dois substantivos se referem à mesma pessoa, a João, e a expressão se traduz corretamente «vosso irmão e coparticipante» (Ap 1:9).
b. Dois artigos, um precede a cada substantivo: «Seja para ti como um gentio e um publicano» (Mt 18:17). Os dois substantivos se referem a duas pessoas (neste caso, cada uma representa uma classe).
Ora, segundo esta regra, as discutidas palavras de Tito 2:13 se referem claramente a uma pessoa, isto é, Cristo Jesus, porque traduzida palavra por palavra a frase diz:
«de o grande Deus e de Salvador nosso Cristo Jesus». O artigo que está diante do primeiro substantivo não se repete diante do segundo, e portanto, a expressão deve ser traduzida:
«de nosso grande Deus e Salvador Cristo Jesus».
Não se conseguiu encontrar razão válida que possa mostrar que a regra (Granville Sharp) não se pode aplicar no caso presente. De facto, é reconhecido geralmente que as palavras que aparecem no final de 2 Pedro 1:11 no original se referem a uma pessoa e devem traduzir-se: «nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo». Mas, se isto é verdade, por que motivo não pode ser assim na expressão essencialmente idêntica em 2 Ped 1:1 e aqui em Tit 2:13, e então traduzir: «nosso Deus e Salvador Jesus Cristo» (ou «Cristo Jesus»)?
(2) Em nenhuma parte do Novo Testamento se usa a palavra epifania (aparição ou manifestação) em relação a mais de uma pessoa. Além disso, a pessoa a quem se refere é sempre Cristo (veja-se 2 Ts 2:8; 1 Ti 6:14; 2 Ti 4:1; 2 Ti 4:8; e 1:10, onde a referência é à primeira vinda).
(3) A fraseologia aqui em Tito 2:13 poderá bem ter-se elaborado como reação ao tipo de linguagem que com frequência usavam os pagãos em relação aos seus próprios ídolos, aos quais consideravam como «salvadores», e particularmente à fraseologia usada em ligação com o culto aos reis terrenos. Não se chamava «Salvador e Deus» a Ptolomeu I? Não se referiam a Antíoco e a Júlio César como «Deus manifesto»? Paulo indica que os crentes esperam a aparição de Um que é realmente Deus e Salvador, a saber, Cristo Jesus.” (p. 423-425).
Alguns exemplos aduzidos como supostas exceções à regra (1 Coríntios 1:3; 2 Coríntios 1:2; Gálatas 1:3; Filemom 3; 1 Timóteo 1:2 e Tito 1:4) na realidade não o são, porque falta o artigo diante do primeiro nome.
Também 2 Timóteo 4:1 não é uma exceção, já que não há substantivo comum no segundo membro do par, mas um nome próprio (Cristo Jesus). A mesma coisa ocorre com 2 Tessalonicenses 1:12 (a graça de nosso Deus e do Senhor Jesus Cristo” já que, como assinala Robertson, a palavra kyrios, Senhor, se usa com frequência como um nome próprio, sem artigo.
Acerca da regra de Granville Sharp, F. David Farnell salienta: “Apesar de repetidamente contestada, ninguém teve êxito em contradizê-la ou refutá-la no que se refere ao Novo Testamento.” (Bibliotheca Sacra 150:62-88, 1993).
Em resumo, além de Tito 2:13 que é o texto em discussão, não foi apresentado nem um só exemplo que exija uma exceção à regra de Granville Sharp tal como foi formulada. Por conseguinte, deve admitir-se que a tradução tradicional, referente a uma só Pessoa, é também correta aqui.

terça-feira, 5 de novembro de 2013

O Argumento auto-refutante dos romanistas


Sempre que alguém usa as Escrituras para tentar refutar o princípio da Sola Scriptura (por exemplo, mostre-me um versículo que afirme que somente as Escrituras tem autoridade final ou João 21:25 diz que ‘Jesus disse muitas outras coisas’), incorre num argumento auto-refutante, porque na realidade está a apelar para a Escritura como autoridade final.
 
Em outras palavras, está a usar o princípio da Sola Scriptura para refutar o princípio da Sola Scriptura, logo é um raciocínio auto-refutante.
 
Para refutar validamente a Sola Scriptura é preciso demonstrar que existe a par das Escrituras, uma outra fonte extrabíblica, que não sendo mencionada nas Escrituras, é igualmente inspirada por Deus com uma autoridade idêntica às Escrituras, e contém verdades reveladas por Deus que não se encontram nas Escrituras do Antigo e Novo Testamentos.
     
Quanto à alegação que se costuma fazer de que o princípio da Sola Scriptura deve ser afirmado pela Escritura para não ser autocontraditório, ela é inválida.
 
O princípio da Sola Scriptura, apesar de estar presente claramente no Novo Testamento (a Escritura para Jesus Cristo e os Apóstolos tinha um valor supremo e inapelável, era canónica, obrigatória e normativa, ao passo que a tradição não se equiparava ao valor das Escrituras e estava subordinada a estas), não precisa para ser válido de necessariamente ser afirmado pela Escritura. Jesus e os Apóstolos, apesar de o terem praticado abundantemente, nunca o demonstraram pelas Escrituras do Antigo Testamento. Era algo que eles aceitavam, não porque as Escrituras afirmassem em algum lugar que eram a autoridade final, o que seria viciosamente circular, mas porque reconheciam que as Escrituras eram Palavra de Deus e daí derivava a sua autoridade final.
 
Isto porque, o princípio da Sola Scriptura, é um pressuposto teológico de que existe uma «Escritura Sagrada», cuja autoridade suprema e final em questões de fé e moral, fundamenta-se na sua própria natureza de Palavra de Deus, inspirada pelo Espírito Santo.
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