segunda-feira, 19 de agosto de 2013

A origem da doutrina dos sete sacramentos


O número de sete sacramentos data de meados do século XII, especialmente por influência de Pedro Lombardo (1100-1160) e foi definido por Roma como a posição ortodoxa no concílio de Florença, em 1439, menos de um século antes da Reforma. O número preciso de sete sacramentos (incluída a confissão auricular [1]) não foi definido dogmaticamente até ao Concílio de Trento.
A posição católica romana sobre os sacramentos foi, pois, formulada inicialmente por Pedro Lombardo que efetuou uma síntese (na época havia quem dizia que havia mais do que sete e quem dizia que havia menos do que sete) que depois recebeu sanção conciliar. Como é óbvio, isto não quer dizer, de modo algum, que seja verdade, como afirma a Igreja Católica como dogma de fé, que os sacramentos tenham sido instituídos pelo próprio Cristo, nem que sejam precisamente esses sete.
Por exemplo, num dos seus escritos, Agostinho de Hipona (354-430), reconhece que na Igreja do seu tempo existiam apenas dois sacramentos:
Pois o mesmo Senhor e os ensinamentos dos apóstolos transmitiram-nos não mais uma multidão de sinais, mas um número bem reduzido. São fáceis de serem celebrados, de excepcional sublimidade a serem compreendidos, e a serem realizados com grande simplicidade. Tais são: o sacramento do batismo e a celebração do corpo e sangue do Senhor” (Da doutrina cristã, III, 9).

Nas Igrejas Ortodoxas Orientais foi somente no século XVII, através das "confissões Ortodoxas" dirigidas contra a Reforma Protestante, que o número sete foi geralmente aceite.

Apesar de catecismos e livros ortodoxos contemporâneos afirmarem todos que a Igreja reconhece sete sacramentos, na Igreja Ortodoxa o limite do número de sacramentos não é um dogma de fé. Na verdade, nenhum concílio reconhecido pela Igreja Ortodoxa alguma vez definiu o número de sacramentos. A isto não deve ser alheio o facto de que não há na Escritura nem na tradição patrística nada que sustente a existência de sete sacramentos.

Durante o primeiro milénio, a Igreja Cristã desconheceu a existência de sete sacramentos.

Notas

[1] Pedro Lombardo incluiu a penitência entre os sete sacramentos, mas não havia acordo geral sobre a necessidade da confissão sacerdotal: no século XII, por exemplo, a escola de Pedro Abelardo rejeitou a sua necessidade, enquanto a escola dos Vitorinos insistiu nela. Foi apenas no IV Concílio de Latrão (1215) que a "penitência" tornou-se oficialmente um "sacramento". Este concílio estabeleceu uma obrigação para os crentes de confessarem os seus pecados ao seu sacerdote anualmente.

segunda-feira, 5 de agosto de 2013

A pontuação de Lucas 23:43 e o Codex Vaticanus


O texto de Lucas 23:43 (“E disse-lhe Jesus: Em verdade te digo hoje estarás comigo no Paraíso”) presta-se a duas pontuações possíveis consoante se colocar uma vírgula antes ou depois da palavra «hoje». Nenhuma das pontuações possíveis afeta a doutrina da imortalidade da alma, pois em qualquer dos casos continua a ser possível sustentar biblicamente esta doutrina. No entanto, se a pontuação correta for com uma vírgula antes de «hoje», o sentido que o versículo adquire, deita por terra a obtusa antropologia, ou doutrina do homem, que as Testemunhas de Jeová (e outros grupos) desenvolveram, a qual nega a existência de uma alma imortal à parte do corpo, pelo que transformam a morte física numa simples aniquilação ou não-existência.

Assim, as Testemunhas de Jeová, na sua própria tradução da Bíblia (chamada tradução do Novo Mundo), pontuam este versículo com uma vírgula depois de «hoje». Um dos seus argumentos é que têm suporte textual para fazer isto, visto que o Codex Vaticanus, um dos principais manuscritos antigos do Novo Testamento, contém um sinal de pontuação - o equivalente a uma vírgula - depois de "hoje". Como respondemos pois a este seu argumento?

Em primeiro lugar, não é de todo claro que o ponto no Codex Vaticanus (B) seja uma marca intencional de pontuação. Pode nada mais ser do que um borrão ou uma mancha acidental.


Uma mancha  'acidental'  ou borrão no Codex Vaticanus. A mancha aparece entre o rho e o kappa em sarkos ("carne") em Romanos 9:8.


Imagem publicada pela Sentinela do suposto ponto baixo de pontuação em Lucas 23:43, Codex Vaticanus.


Todavia, se o ponto for, de facto, uma marca intencional de pontuação [1], não é certamente feito pela mão original. O escriba original não usa o “ponto baixo”, e quando usa pontuação (coisa que ele raramente faz), adiciona tipicamente um espaço extra, o que não é o caso aqui.


Espaçamento típico adicionado depois de um sinal de pontuação no Codex Vaticanus (entre Lucas 22:30 e 22:31)


Além disso, se o escriba pretendesse colocar uma vírgula depois de sêmeron, ele provavelmente usaria um ponto-médio como fez depois de sarka em Romanos 9:5 (e vários outros lugares), não o ponto-baixo, que era mais ou menos equivalente ao nosso ponto e vírgula [2].

Por último, não há notícia que algum comentarista ou crítico textual tenha mencionado a suposta vírgula no Vaticanus. Bruce Metzger, no seu Textual Commentary on the Greek New Testament, nada diz sobre isso, apesar de abordar o Siríaco Curetoniano em relação à pontuação correta de Lucas 23:43, e discutir o sinal de pontuação no Vaticanus em Romanos 9:5 [3].

O manuscrito Vaticanus foi originalmente escrito no século IV em tinta castanha, com um corretor logo em seguida fazendo algumas pequenas alterações. Mais tarde, um escriba posterior no século X ou XI passou por cima das letras tinta preta, ignorando aquelas letras ou marcas que ele pensava serem incorretas, e fazendo algumas alterações adicionais [4]. Embora o ponto seja "castanho desbotado" e isso possa indicar uma data antiga para o ponto, isso não é certo. Mesmo que seja, não está provado que proceda da mão original ou do corretor do século IV, e o facto de não ter sido reforçado pelo corretor posterior indica que ele considerou-o como não intencional ou um defeito. O Dr. Peter M. Head, um especialista em manuscritos do Novo Testamento, escreve:

«Eu não penso que (o ponto) seja pontuação. Certamente não é da produção do escriba original: não existe nada como ele em todos os espaços (a pontuação no Vaticanus é feita quase inteiramente apenas pelo espaçamento), ele não se parece com um ponto, mas mais como um borrão ou como você disse, uma mancha; e, o espaçamento está completamente errado para a pontuação feita pelo escriba original. Penso que poderá ter sido acrescentado mais tarde por alguém que quis repontuar o texto, mas todavia não estou convencido de que a cor é a mesma do outro material introduzido pelo potenciador/acentuador, de modo que você deve atribuí-lo a um desconhecido leitor/pontuador» [5].

Portanto, o máximo que pode ser dito é que, se o ponto é pontuação intencional, não foi copiado de um exemplar primitivo pelo escriba original, mas foi introduzido - por uma razão desconhecida - por alguém desconhecido num momento incerto.

Mas se se pudesse estabelecer que a marca é intencional e data do século IV (por mais improvável que isso pareça) – isso forneceria suporte antigo para a pontuação da tradução do Novo Mundo? Sim e não. Forneceria evidência além do Siríaco Curetoniano que alguém há muito tempo, devido à ambiguidade do Grego, entendeu (ou mal-entendeu) o versículo como a Torre de Vigia faz. Mas isso não provaria nada em relação ao que Lucas entendia. Os académicos textuais que pontuam os nossos autorizados Novos Testamentos Gregos não o fazem com base na pontuação de manuscritos antigos:

A presença de marcas de pontuação em manuscritos antigos do Novo Testamento é tão esporádica e aleatória que não se pode inferir com confiança a construção dada pelo pontuador à passagem [6].

Portanto, a presença de um sinal de pontuação (se tal ele for) num manuscrito antigo não nos diz nada sobre como pontuar corretamente Lucas 23:43. A pontuação correta é uma questão de exegese, e não de crítica textual [7].

Fonte: Baseado num escrito de Robert Hommel, em linha aqui

Notas

[1] "O ponto no topo da linha (·) (stigmh teleia, 'ponto alto') era um ponto final; aqueles sobre a linha (.) (upostigmh) era equivalente ao nosso ponto e vírgula, enquanto um ponto médio (stigmh mesh) era equivalente à nossa vírgula. Mas gradualmente surgiram mudanças sobre estas pausas até que o ponto alto tornou-se equivalente aos nossos dois pontos, o ponto baixo tornou-se um ponto final, e o ponto médio desapareceu, e por volta do século IX dC a vírgula (,) tomou o seu lugar" (Robertson, Grammar, p. 242).

[2] Ver nota 1. No entanto, a pontuação em manuscritos antigos, e particularmente no Codex Vaticanus, estava longe de ser consistente. Por conseguinte, devemos admitir que é possível que um escriba ou corretor pudesse usar um ponto-baixo de uma forma consistente com a nossa vírgula moderna, no entanto dado o facto de que o ponto-baixo não parece ter sido usado de modo nenhum pelo escriba do século IV ou pelo seu corretor contemporâneo, ao mesmo tempo que eles (raramente) usaram tanto o ponto-alto como o ponto-médio, parece muito improvável que um deles fizesse isso aqui. Robertson diz: "B tem o ponto-alto como um período, e o ponto-baixo para uma pausa curta" (Ibid.). No entanto, Robertson não diz que o "ponto baixo" foi feito pelo escriba original ou pelo seu corretor do século IV.

[3] Metzger, p. 155 (c.f., pp. 459-462). Enquanto estava a preparar este artigo, correspondi-me brevemente com o Dr. Wieland Willker sobre a suposta vírgula no Vaticanus. O Dr. Willker tem uma página dedicada ao Codex Vaticanus e um Comentário Textual sobre os Evangelhos Gregos on-line. Como resultado de nossa correspondência, o Dr. Willker adicionou informações sobre o ponto no Vaticanus na terceira edição do seu Comentário. O Dr. Willker concorda que o ponto é "de origem desconhecida", e não é feito pelo escriba original. Ele conclui:

«O ponto em B não é de muita relevância porque a questão da pontuação existe independente dele. A pontuação, se havia alguma, era, como a ortografia, irregular nos manuscritos antigos. Qualquer pontuação em manuscritos antigos é MUITO duvidosa. A pontuação na Nestle-Aland ou GNT NUNCA é baseada numa pontuação de um Manuscrito. É SEMPRE uma decisão baseada na gramática, sintaxe, linguística e exegese» (Willker, Textual Commentary, p. 436, ênfase no original).

O Dr. Willker enumera as seguintes manuscritos que colocam hoti depois de legô, enfatizando assim que "hoje" qualifica "estarás comigo ...": L, 892, L1627, b, c, Co, e Sy-S. Ele enumera AM 118 PS8, 11 (1,8), Apo, e Hil como manuscritos que fazem a mesma coisa com sintaxe diferente.

[4] Finegan, pp. 127-28.

[5] Peter M. Head, PhD, e-mail pessoal para Robert Hommel, datado de 11/1/2005. Larry W. Hurtado, PhD, também suspeita que a marca é uma mancha ou borrão e não um sinal de pontuação (e-mail pessoal para Robert Hommel, datado de 1/5/2005).

[6] Metzger, p. 460, n. 2.

[7] Para uma análise exegética deste versículo ver: A pontuação de Lucas 23:43

Bibliografia

Robertson, Archibald Thomas. 1934. A Grammar of the Greek New Testament: in the Light of Historical Research. Nashville, TN: Broadman Press. (Robertson, Grammar)

Metzger, Bruce M. 1975. A Textual Commentary on the Greek New Testament. 3rd Edition. Stuttgart, Germany: United Bible Societies.

Finegan, J. 1974. Encountering New Testament Manuscripts. Grand Rapids, MI: Eerdmans.
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