quarta-feira, 1 de maio de 2013

O reconhecimento do cânon do Novo Testamento por parte de alguns Padres primitivos


Justino Mártir (ca. 100-165)
Habitualmente quando menciona as Escrituras refere-se ao Antigo Testamento. Justino conhece o AT através fundamentalmente da antiga versão Septuaginta. Um aspecto interessante é que na atualidade os romanistas apelam ao facto de os manuscritos da Septuaginta incluírem os livros que desde o século XVI chamam "deuterocanónicos" (e nós apócrifos) como prova da existência de um imaginário "cânon alexandrino" similar senão idêntico ao estabelecido dogmaticamente no Concílio de Trento. Ora bem, o mestre e mártir Justino usa a Septuaginta, da qual cita profusamente o Pentateuco, os profetas e os salmos. No entanto, o exame dos seus escritos mostra que jamais cita textos dos apócrifos/deuterocanónicos.
Justino conhece também e cita os Evangelhos sinópticos, aos quais chama "memórias dos Apóstolos", e menciona que eram lidos nos cultos cristãos. A maior parte das citações evangélicas provêm de Mateus, mas também apela a Lucas e ocasionalmente a Marcos. Rara vez apela ao Evangelho de João, embora deva tê-lo conhecido.
Além disso, há nas suas obras, particularmente no Diálogo com Trifão, alusões a algumas cartas paulinas, em concreto Efésios, Romanos e 1 Coríntios; também uma alusão no capítulo 81 do citado Diálogo..., mostra que conhecia o Apocalipse e lhe atribuía autoridade apostólica.
Ireneu de Lyon (ca. 130-200)
Este bispo das Gálias, de origem asiática, defendeu contra os gnósticos a unidade das Escrituras do Antigo e do Novo Testamento. Na verdade, embora cite ambos, o número de textos do Novo Testamento supera nele os do Antigo. Na sua Refutação e derrota do falsamente chamado conhecimento (= Contra as Heresias), cita mais de mil textos de quase todos os livros do Novo Testamento, especialmente dos quatro Evangelhos (626) e das cartas de Paulo (280), exceto Filemom. Também Atos (54), as epístolas católicas (15) exceto 2 Pedro, 3 João e Judas, e Apocalipse (29).
Para Ireneu era axiomático que existiam somente quatro Evangelhos canónicos, que na realidade chamava “o Evangelho tetramorfo”, ou seja, um único Evangelho em quatro formas. No entanto, não afirma a mesma coisa quanto à coleção de epístolas, embora claramente considere canónicas aquelas que conhece, assim como os Atos (Contra as Heresias III, 12:9, 12). Chama no entanto “Escritura” a O Pastor de Hermas numa única ocasião (Contra as Heresias IV,20:2).
Com esta exceção, é claro que para Ireneu existe uma coleção de escritos apostólicos que possuem igual autoridade como Escrituras que os livros do Antigo Testamento.
Hipólito de Roma (ca. 170-236)
Crê-se que foi discípulo de Ireneu. Foi provavelmente o primeiro a escrever um comentário sobre o livro de Daniel (o qual curiosamente tem estado debaixo do fogo da crítica desde o século passado). Escreveu também uma defesa do Evangelho de João e do Apocalipse (contra Caio ou Gaio, presbítero romano que aparentemente negava a autoria apostólica do Apocalipse). Reconhecia os quatro Evangelhos como Escritura, como também Atos, treze cartas de Paulo (sem incluir Hebreus, a qual no entanto cita frequentemente no seu Comentário sobre Daniel), 1 Pedro, 1 e 2 João. Provavelmente conheceu 2 Pedro, Tiago e Judas.
Hipólito atribuía a mesma autoridade ao Antigo e ao Novo Testamento. Introduzia as citações deste último ora com o nome do autor, ora com as expressões “o Senhor diz” ou “o Apóstolo diz”. No referido Comentário 4:49 apela ao testemunho de toda a Escritura, composta pelos Profetas, pelo Senhor e pelos Apóstolos.
Conhecia muitos outros escritos cristãos ortodoxos e apócrifos, mas nunca lhes atribui igual autoridade que aos acima mencionados.
Novaciano (ca. 200 - 258)
Como Hipólito de Roma, Novaciano foi também um “antipapa”. Pouco antes de 250, escreveu um tratado Sobre a Trindade, na verdade o mais antigo tratado cristão escrito em latim que se conhece. Todos os textos de prova cristológicos provêm do Antigo Testamento. Por outro lado, apela ao que chama “a regra da verdade” (regula veritatis), que é o conjunto do ensino bíblico. Utiliza muito os evangelhos, em particular o de João, assim como as cartas de Paulo, em apoio dos seus ensinos.
Orígenes (ca. 185-254)
Foi o biblista mais importante da antiguidade. Preparou uma edição do Antigo Testamento em seis colunas paralelas com o texto hebraico, uma transliteração grega e várias versões (a Hexapla), uma monumental contribuição para a crítica textual. Embora a maior parte da sua vasta produção se tenha perdido, diz-se que comentou todos ou quase todos os livros da Bíblia. Orígenes chamou “o Novo Testamento” aos Evangelhos, Atos e Epístolas. Afirma inequivocamente que procediam do mesmo Deus e foram inspiradas pelo mesmo Espírito que os livros do Antigo Testamento, e chama à coleção apostólica “Escrituras divinas”.
Embora ocasionalmente cite de obras apócrifas (o que não é de estranhar dada a vastidão da sua erudição e das suas especulações) por outro lado estabelece com toda a clareza que não há senão quatro Evangelhos autênticos. De igual modo testemunha dos Atos e das Epístolas. Cita Hebreus mais de duzentas vezes, ainda que reconheça que o seu autor não deve ter sido Paulo.
Orígenes claramente aceita todos os livros do Novo Testamento, com as possíveis exceções de Tiago (que no entanto conhece), 2 Pedro e 2 e 3 João. No entanto, a propósito de uma das suas Homilias sobre Josué (7:1) dá, como de passagem, uma lista das obras que compõem o Novo Testamento:
Assim também nosso Senhor Jesus Cristo ... enviou os seus apóstolos como sacerdotes levando trombetas bem trabalhadas. Primeiro Mateus fez soar a sua trombeta sacerdotal no seu evangelho. Marcos também, e Lucas, e João, cada um fez soar a sua trombeta sacerdotal. Igualmente Pedro brada com as duas trombetas das suas epístolas; também Tiago e Judas. Adicionalmente, João também soa a trombeta através das suas epístolas (e Apocalipse [texto duvidoso]); e Lucas ao descrever os Atos dos Apóstolos. E em último de todos, vem aquele que disse «penso que Deus me pôs como o último dos apóstolos» (1 Cor 4:9), e trovejando as catorze trombetas das suas epístolas derribou até aos alicerces as paredes de Jericó, isto é, todos os instrumentos de idolatria e os dogmas dos filósofos.
Assim, já no século III existia na verdade um cânon reconhecido e os escritos apostólicos eram tidos por não menos inspirados e divinos que os do Antigo Testamento, se bem que alguns poucos eram ainda disputados. Certamente pela época de Jerónimo e de Agostinho, tal consenso correspondia com o do nosso Novo Testamento.
O seguinte comentário de Bruce M. Metzger resume a realidade histórica:
Estes três critérios (ortodoxia, apostolicidade e consenso entre as Igrejas) para determinar quais livros deviam ser considerados como autoridades para a Igreja tornaram-se geralmente aceites durante o curso do segundo século e já nunca se modificaram. Ao mesmo tempo, porém, encontramos muita variação na forma em que os critérios foram aplicados ... a determinação do cânon apoiou-se numa combinação dialética de critérios históricos e teológicos. Não é portanto de admirar que por várias gerações o status preciso de alguns livros permanecesse duvidoso. O que é realmente notável ... é que, embora as fronteiras do cânon do Novo Testamento permanecessem indefinidas por séculos, alcançou-se um alto grau de unanimidade em relação à maior parte do Novo Testamento dentro dos dois primeiros séculos entre as muito diversas e dispersas congregações não somente em todo o mundo mediterrâneo mas inclusive numa área que se estendia desde a Bretanha até à Mesopotâmia...
Brevemente, segundo os Padres primitivos as Escrituras são inspiradas, mas essa não é a razão pela qual possuem autoridade. Possuem autoridade, e portanto são canónicas, porque são o depósito escrito existente do testemunho apostólico direto e indireto do qual depende o posterior testemunho da Igreja.
(The Canon of the New Testament: Its origen, development, and significance. Oxford: Clarendon Press, 1987, p. 254, 256).

Em linha: http://www.ixoyc.net/data/Fathers/134.pdf

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