domingo, 24 de março de 2013

A doutrina de Sola Fide como a entenderam os Reformadores


Os apologistas católicos, por ignorância culposa ou dolosa, costumam caricaturar a doutrina de Sola Fide ao seu gosto. Eis aqui algumas amostras do que os Reformadores verdadeiramente afirmaram; podem ver-se muitas mais em Philip Schaff, The Creeds of Christendom. With a history and critical notes. Vol. 3: The Evangelical Protestant Creeds, 6th Ed. Grand Rapids: Baker Books, 1983 (original 1931).
 
Cremos, portanto, ensinamos e confessamos que esta mesma coisa é a nossa justiça diante de Deus, a saber, que Deus nos perdoa os pecados por mera graça, sem consideração alguma das nossas obras anteriores, presentes ou seguintes, ou do nosso valor ou mérito. Pois ele nos outorga e imputa a justiça da obediência de Cristo; por causa desta justiça somos recebidos na graça por Deus e contados como justos.
 
Cremos, também, ensinamos e confessamos que só a fé é o meio e instrumento pelo qual nos apossamos de Cristo, e assim em Cristo daquela justiça que é proveitosa diante de Deus; pois esta fé, por causa de Cristo, nos é imputada como justiça (Romanos 4:5).
 
Cremos, mais ainda, ensinamos e confessamos que esta fé justificante não é um mero conhecimento da história de Cristo, mas um dom de Deus pelo qual chegamos ao correto conhecimento de Cristo como nosso Redentor na Palavra do Evangelho, e confiamos n`Ele, isto é, que por causa somente da sua obediência temos por graça a remissão dos pecados, somos contados santos e justos diante de Deus o Pai, e alcançamos a salvação eterna...
 
...
 
Cremos, ensinamos e confessamos que, embora a contrição que precede e as boas obras que se seguem, não pertençam ao artigo da justificação diante de Deus, não se deve imaginar uma tal fé justificante que possa existir e permanecer ao lado de uma má intenção para pecar e para agir contra a consciência. Mas depois que o homem é justificado pela fé, então a fé verdadeira e viva opera pelo amor (Gálatas 5:6), de modo que as boas obras sempre seguem a fé justificante, e são certamente encontradas com ela, sempre que se trate de uma fé viva e verdadeira. Pois a verdadeira fé nunca está sozinha, mas sempre tem com ela amor e esperança.
 
Fórmula da Concórdia, 1576, 1584.
 
Segundo o apóstolo no seu tratamento da justificação, justificar significa perdoar os pecados, absolver da falta e seu correspondente castigo, receber em graça, declarar um homem justo .... (Romanos 8:33,34; Atos 13:38,39)
 
Ora, é absolutamente certo que todos somos pecadores por natureza, e diante do trono do juízo de Deus somos acusados de impiedade, e réus de morte. Mas somos justificados - isto é, declarados livres do pecado e da morte - por Deus, o Juiz, só pela graça de Cristo, e não por algum respeito ou mérito nosso (Rom 3:23,24).
 
Pois Cristo tomou sobre si e carregou os pecados do mundo, e satisfez a justiça de Deus. Deus, portanto, é misericordioso para com os nossos pecados só por Cristo, que sofreu e ressuscitou, e não no-los imputa a nós. Mas imputa a justiça de Cristo a nós como se fosse nossa, de modo que agora não só somos limpos do pecado, purificados e santos, mas também dotados da justiça de Cristo; sim, e livres do pecado, morte e condenação (2 Cor. 5:19-21); finalmente, somos justos, e herdeiros da vida eterna. Para falar propriamente, então, é só Deus que nos justifica, e justifica somente por Cristo, ao não nos imputar os nossos pecados, mas nos imputando a justiça de Cristo (Rom. 4:23-25).
 
E porque recebemos esta justificação, não por alguma obra, mas pela fé na misericórdia de Deus e em Cristo, por isso ensinamos e cremos, com o apóstolo, que o homem pecador é justificado somente pela fé em Cristo, não pela lei ou por quaisquer obras ... (Romanos 3:28; 4:2,3,5; Efésios 2:8-9....)
 
...
 
Portanto, não dividimos o benefício da justificação, dando parte à graça de Deus ou a Cristo, e parte a nós, à nossa caridade, obras ou mérito; mas o atribuímos totalmente para o louvor de Deus em Cristo, e isto através da fé. Mais ainda, o nosso amor e as nossas obras não podem agradar a Deus se forem feitas de modo que não sejam justas; portanto, devemos primeiro ser justos antes que possamos amar ou fazer quaisquer obras justas...
 
Portanto, neste assunto não falamos de uma fé fingida, vã ou morta, mas de uma fé viva e vivificante; a qual, por Cristo (que é vida e dá vida), a quem apreende, tanto é como é chamada, uma fé viva, e demonstra ser tal por obras vivas. E, portanto, São Tiago não fala nada contrário a esta doutrina; pois ele fala de uma fé vã e morta, da qual alguns se vangloriaram, mas sem ter Cristo vivendo neles por fé. E também diz São Tiago que as obras justificam (2:14-26); contudo não é contrário a Paulo … mas mostra que Abraão declarou a sua fé viva e justificante por obras. E assim fazem todos os piedosos, que porém confiam só em Cristo, não nas suas próprias obras. Pois o apóstolo diz outra vez: “Já não vivo eu, mas Cristo vive em mim. E a vida que vivo na carne, a vivo pela fé no Filho de Deus, que me amou e se entregou por mim. Não anulo a graça de Deus; pois se a justiça fosse mediante a lei, então Cristo morreu em vão” (Gálatas 2:20,21).
 
Segunda Confissão Helvética, 1566.

segunda-feira, 18 de março de 2013

sábado, 16 de março de 2013

Os Padres da Igreja e o culto às imagens


A Igreja de Roma, assim como as Orientais dizem dar importância à tradição.
No entanto, ao que parece veneram a tradição com os lábios, mas só a têm em conta quando lhes convém.
Eis aqui um caso onde a tradição e o consenso dos padres diz uma coisa, e as Igrejas romana e orientais dizem o contrário. Pelo que demonstram ser elas a sua própria autoridade, e não as Escrituras, nem sequer a autêntica tradição primitiva.
Ireneu de Lyon diz: “Como a Igreja recebeu liberalmente do Senhor, assim liberalmente ministra e nada pede. Nada faz pela evocação dos anjos, nem por encantamentos e outras perversas artes curiosas, mas dirigindo as suas orações num espírito puro, sincero e directo ao Senhor, de quem são todas as coisas, e invocando o nome de nosso Senhor Jesus Cristo, ela foi acostumada a operar milagres em benefício dos homens, e não para levá-los ao erro (Adv Haer, II,32,5).

E ainda: “Denominam-se Gnósticos. Eles também possuem imagens, algumas delas pintadas, e outras formadas a partir de diferentes tipos de materiais; e afirmam que uma imagem de Cristo foi feita por Pilatos no tempo em que Jesus viveu entre eles. E coroam estas imagens e as expõem com as imagens dos filósofos do mundo, a saber, com as imagens de Pitágoras, de Platão, de Aristóteles e de outros. Eles têm também outras formas de honrar estas imagens, precisamente como os pagãos” (Adv Haer, I, 25,6).

Clemente de Alexandria sentencia: “É uma tolice extrema rogar como deuses àqueles que não são deuses, porque há um só bom Deus; nós e os anjos suplicamos unicamente a Ele” (Stromata, v.4, MG 11, 1185). E noutro lugar: “Toda imagem ou estátua deve chamar-se ídolo porque não é outra coisa que matéria vil e profana, e por isso Deus, para arrancar pela raiz a idolatria, proibiu em seu culto qualquer imagem ou semelhança das coisas que estão no céu ou na terra, proibindo igualmente a sua fabricação; e é por isto que nós os cristãos não temos nenhuma daquelas representações materiais”.
Orígenes o célebre escritor e teólogo do século III, diz em Contra Celso: “Os anjos seguem com interesse a tua salvação. Foram dados como ajudadores do Filho de Deus; mas toda a oração que se dirija a Deus, seja rogativa ou em acção de graças, deve elevar-se para Ele por Cristo, o Sumo Sacerdote, que está sobre todos os anjos...os homens não conhecem os anjos e, portanto, não é razoável que se dirijam a eles em vez de dirigir-se a Cristo, a quem conhecem. Ainda que tivéssemos o conhecimento deles, não nos seria permitido dirigir nossas orações a nenhum outro ser senão a Deus, o Senhor de toda a criação, que é suficiente para todos, e vamos também a Ele por nosso Salvador, o Filho de Deus”. E também: “São os mais ignorantes que não se envergonham de dirigir-se a objectos sem vida ... e ainda que alguns possam dizer que estes objectos não são deuses mas tão-só imitações deles e símbolos, contudo se necessita ser ignorante e escravo para supor que as mãos vis de uns artesãos possam modelar a semelhança da Divindade; vos asseguramos que o mais humilde dos nossos se vê livre de tamanha ignorância e falta de discernimento” (Contra Celso, 6:14).

E noutro lugar: “Nenhum de nós confie no seu pai justo, na sua santa mãe, nos seus castos irmãos. Bem-aventurado o homem que põe a sua esperança em si mesmo e no caminho recto. Aos que confiam nos santos direi como admoestação: “Maldito o varão que confia no homem” (Jeremias 17:5), e: “Melhor é esperar em YHVH que esperar no homem” (Salmos 118:8). Se fosse necessário confiar-nos a alguém, deixemos todos os outros e confiemos no Senhor” (Ezequiel 17. Homilia IV, MG 13, 702-703).

Lactâncio escreveu: “É indubitável que onde quer que há uma imagem não há religião. Porque se a religião consiste de coisas divinas, e não há nada divino a não ser nas coisas celestiais, segue-se que as imagens se acham fora da esfera da religião, porque não pode haver nada de celestial no que se faz da terra ... não há religião nas imagens, mas uma simples imitação de religião” (Instituições Divinas 2:19).
Cipriano declara: “Para quê prostrar-se diante das imagens? Eleva os teus olhos ao céu e o teu coração; aí é onde deves buscar a Deus” (Ad Demetr. Pág.191).
Agostinho de Hipona afirmou: “Que não seja a nossa religião o culto das obras feitas por mão de homem...que não seja a nossa religião o culto dos animais. Pois são melhores que elas os mais ínfimos homens aos quais, no entanto, não devemos prestar culto. Que não seja a nossa religião o culto dos defuntos, porque se viviam uma vida santa, é impossível crer que desejem tais honras, antes desejam que demos o nosso culto Àquele a quem devemos ser participantes com eles da salvação. Portanto, temos que prestar-lhes honra imitando-os, e não prestando-lhes culto religioso” (De vera Rel., LV, 108; ML 24,169).
E também...
“A única imagem que nós devemos fazer de Cristo é ter sempre presente a sua humildade, a sua paciência, a sua bondade, e esforçar-nos para que a nossa vida em tudo se pareça à sua. Aqueles que andam em busca de Jesus e dos seus apóstolos pintados nas paredes, longe de conformar-se com as Escrituras, caem no erro” (De consens. Evang., Lib.1, cap.10).
Jerónimo relata-nos uma carta de Epifânio na qual este santo narra: “Num sítio da aldeia que eu visitei, achei pendurado na porta da igreja um véu sobre o qual se encontrava pintada a imagem de Cristo, e outra de um santo, e nem vi bem quem, contra a Sagrada Escritura, a imagem de um homem estava pendurada na igreja de Cristo, eu rasguei aquele véu, aconselhando o sacristão que o usasse antes para a sepultura de algum pobre” (Obras de São Jerónimo, tomo II, carta 52).
Eusébio de Cesareia diz: “Que lhe repugna só a ideia de que possa haver pinturas nos lugares destinados ao culto” (Eusébio, Epístola a Constância Augusta).

O culto às imagens defendido hoje pelas Igrejas romana e orientais é simplesmente o resultado do sincretismo entre o cristianismo e as culturas pagãs grega e romana, ocorrido depois do cristianismo se ter tornado a religião do império.
Nenhum autor cristão ortodoxo dos primeiros quatro séculos da Igreja inculcou, promoveu ou defendeu o culto às imagens. Observa-se a partir do século V controvérsias e finalmente o que era uma abominação transforma-se na "ortodoxia" em finais do século VIII.

segunda-feira, 11 de março de 2013

A inconfiabilidade e corruptibilidade das tradições apostólicas “extrabíblicas”


Há na literatura cristã primitiva, algumas referências a tradições apostólicas extrabíblicas, que demonstram bem a carência de precisão, clareza, incorruptibilidade e confiabilidade que têm tal tipo de tradições.  
É sabido, e nenhuma pessoa medianamente informada negará, que a pregação oral precedeu a redação e formação do Novo Testamento. É óbvio que enquanto os Apóstolos viviam, a sua palavra oral tinha igual valor que a sua palavra escrita.
Ora bem, quando os Apóstolos morreram, os seus ensinamentos ficaram perpetuados para sempre nas Escrituras do Novo Testamento e nos ensinamentos das Igrejas que se guiavam por elas.
Tudo indica que houve um rápido desaparecimento ou corrupção das tradições orais. Por exemplo, o bispo Papias de Hierápolis escreveu uma Explicação das Sentenças do Senhor em cinco livros, a qual não se conservou. Papias tinha especial interesse pelas tradições orais. Ora, as tradições que em finais do século I conseguiu recolher, e que Ireneu e Eusébio referem, são na sua maior parte coisas lendárias que nenhum erudito, católico ou evangélico, leva a sério.
De novo, no século II houve uma controvérsia acerca do tempo da celebração da Páscoa. Tanto os bispos ocidentais, com Vítor bispo de Roma à cabeça, como os bispos orientais liderados por Polícrates, sustentavam que os seus respetivos costumes se baseavam em tradições apostólicas.
Pouco depois Tertuliano de Cartago sustentava que o costume de submergir os batizados três vezes era uma tradição apostólica, afirmação que não é confirmada por nenhuma outra fonte independente.
Em resumo: No Novo Testamento estamos em terreno firme e seguro. Quando abrimos as portas a supostas tradições e as colocamos ao mesmo nível de autoridade que o escrito, somente se cria confusão. Estes são factos históricos, que muitas vezes arruínam as melhores teorias.

sábado, 9 de março de 2013

Ireneu de Lyon e a tradição oral apostólica


A Sola Scriptura no mesmo sentido (embora não necessariamente com as mesmas palavras) com que a entenderam os Reformadores, é uma doutrina cristã histórica que conta com o consenso virtualmente unânime dos Padres da Igreja.
Somente em tempo relativamente recente (não muito antes do Concílio de Trento) começou a desenvolver-se a doutrina de que a Tradição apostólica oral era um veículo de revelação ao mesmo nível que as Escrituras.
Mas, como não podia deixar de ser, os apologistas romanos tentam transplantar esta doutrina tardia para os primeiros séculos do cristianismo. Ireneu de Lyon, considerado Padre da Igreja, do século II, é assim uma das suas vítimas.
Numa audaz tentativa de demonstrar que Ireneu reconhecia a existência de uma Tradição oral, proveniente dos Apóstolos, em pé de igualdade com as Escrituras como outra fonte de revelação, os apologistas romanos costumam fazer uma "visita guiada" extremamente seletiva aos escritos deste Padre antigo e citam dois textos dele fora do contexto. São eles:
«Quando então passamos a apelar para a tradição que vem dos apóstolos e que se conserva nas igrejas pelas sucessões dos presbíteros, então eles opõem-se a esta tradição, afirmando que eles sabem mais, não só que os presbíteros, mas até que os próprios apóstolos, porque descobriram a verdade não adulterada»
«Assim, todos os que desejam a verdade podem perceber em qualquer igreja a tradição dos Apóstolos manifestada no mundo inteiro. E nós podemos enumerar os que os apóstolos instituíram como bispos nas igrejas, bem como suas sucessões até nossos dias
Ambas as citações são da obra “Contra as Heresias” de Ireneu de Lyon. A primeira provém do Livro III, Capítulo 2, parágrafo 2 e a segunda é parte do Capítulo 3, parágrafo 1.
Para entender o que quer dizer Ireneu, é preciso ler também o primeiro parágrafo, que precede imediatamente o primeiro texto citado. Pois de outro modo, não se entende a que se refere o ilustre bispo de Lyon com a sua cláusula inicial, "Quando então passamos".
Eis aqui o parágrafo em falta:
«Quando, no entanto, [os hereges] são refutados a partir das Escrituras, eles viram-se e acusam essas mesmas Escrituras, como se não fossem corretas, nem de autoridade, e [afirmam] que são ambíguas, e que a verdade não pode ser extraída delas por aqueles que são ignorantes da tradição. Pois [alegam] que a verdade não foi transmitida por meio de documentos escritos, mas de viva voz: pelo que Paulo também declarou: "Mas falamos a sabedoria entre os que são perfeitos, mas não a sabedoria deste mundo" [cf. 1 Cor 2:6]. E esta sabedoria cada um deles alega ser a ficção de sua própria invenção, claro; de modo que, de acordo com a sua ideia, a verdade reside propriamente numa ocasião em Valentim, noutra em Marcião, noutra em Cerinto, depois posteriormente em Basílides, ou esteve alguma vez indiferentemente em qualquer outro oponente. Pois cada um destes homens, sendo por completo de uma perversa disposição, depravando o sistema de verdade, não se envergonha de pregar-se a si mesmo.»
Ireneu, Adv Haer, III,2,1
Agora segue-se o parágrafo citado habitualmente:
«Quando então passamos a apelar para a tradição que vem dos apóstolos e que se conserva nas igrejas pelas sucessões dos presbíteros, então eles opõem-se a esta tradição, afirmando que eles sabem mais, não só que os presbíteros, mas até que os próprios apóstolos, porque descobriram a verdade não adulterada
Pode entender-se agora claramente que a autoridade suprema para Ireneu, e a sua primeira linha de debate, são as Escrituras. No tempo de Ireneu, eram os hereges gnósticos aqueles que rebaixavam a autoridade das Escrituras e afirmavam que não podiam ser compreendidas sem uma tradição oral proveniente dos próprios Apóstolos.
Quanto ao segundo texto citado, do capítulo 3:
«Assim, todos os que desejam a verdade podem perceber em qualquer igreja a tradição dos Apóstolos manifestada no mundo inteiro. E nós podemos enumerar os que os apóstolos instituíram como bispos nas igrejas, bem como suas sucessões até nossos dias
Continua dizendo Ireneu:
«...os quais [bispos] nem ensinaram nem conheceram nada parecido àquilo acerca do qual estes [hereges] deliram. Pois se os Apóstolos tivessem conhecido mistérios ocultos, os quais costumavam dar aos "perfeitos" privada e separadamente do resto, eles os entregariam especialmente àqueles a quem também estavam confiando as próprias Igrejas. Pois estavam desejosos de que estes homens fossem perfeitíssimos e irrepreensíveis em tudo, aqueles que deixaram após si como seus sucessores, entregando o seu próprio lugar de governo a estes homens; os quais, se cumprissem as suas funções honestamente, seriam um benefício [para a Igreja], mas se apostatassem, a pior calamidade
Adv Haer III,3,1; negrito acrescentado.
Em outras palavras, Ireneu rejeita sumária e categoricamente a existência das tradições orais supostamente apostólicas a que apelavam os gnósticos para provar as suas falsas doutrinas.
Ireneu claramente afirma que a Escritura é suprema, enquanto a tradição é subsidiária. A tradição das Igrejas apostólicas seria (pelo menos no século II) um substituto se não contássemos com Escrituras. O problema era que os hereges não aceitavam nenhuma das duas. Finalmente, deve destacar-se a que se refere Ireneu com esta tradição unânime da Igreja:
«A Igreja, apesar de dispersa por todo o mundo, até aos confins da terra, recebeu dos apóstolos e dos seus discípulos esta fé: num Deus, o Pai Omnipotente, Fazedor do céu, e da terra, e do mar, e de todas as coisas que neles há; e num Cristo Jesus, o Filho de Deus, que encarnou para nossa salvação; e no Espírito Santo, que proclamou através dos profetas as dispensações de Deus, e as vindas, e o nascimento de uma virgem, e a paixão, e a ressurreição dentre os mortos, e a ascensão na carne aos céus do amadíssimo Cristo Jesus, nosso Senhor, e a sua manifestação desde o céu na glória do Pai, "para reunir todas as coisas numa" e para ressuscitar toda a carne da raça humana inteira, de forma que perante Cristo Jesus, nosso Senhor, e Deus, e Salvador, e Rei, segundo a vontade do Pai invisível, "todo o joelho se dobre, das coisas no céu, e das coisas na terra e das coisas debaixo da terra, e toda a língua o confesse" a Ele, e que Ele execute o justo juízo de todos; que Ele possa enviar as impiedades espirituais e os anjos que prevaricaram e se tornaram apóstatas, juntamente com os ímpios, e injustos, e malvados, e profanos de entre os homens, para o fogo eterno; mas possa, em exercício da sua graça, conferir imortalidade aos justos, e santos, e àqueles que guardaram os seus mandamentos, e perseveraram no seu amor, alguns desde o princípio e outros desde o seu arrependimento, e possa rodeá-los com sempiterna glória.
Como já observei, a Igreja, tendo recebido esta pregação e esta fé, apesar de dispersa pelo mundo inteiro, mesmo assim, como se não ocupasse senão uma casa, a preserva cuidadosamente. Ela também crê estes pontos exatamente como se possuísse uma só alma, e um e idêntico coração, e ela os proclama, e os ensina, e os transmite, com perfeita harmonia, como se possuísse uma só boca. Pois ainda que as linguagens do mundo sejam distintas, o conteúdo da tradição é um só e idêntico. Pois as igrejas que foram plantadas na Germânia não creem nem transmitem nada diferente, nem aquelas de Espanha, nem aquelas nas Gálias, nem aquelas do Oriente, nem aquelas do Egipto, nem aquelas na Líbia, nem aquelas que foram estabelecidas nas regiões centrais do mundo. Mas como o sol, essa criatura de Deus, é um só em todo o mundo, assim também a pregação da verdade resplandece em todos os lugares, e ilumina todos os homens que estão dispostos a vir a um conhecimento da verdade. Nem nenhum dos governantes das Igrejas, sem importar quão dotado possa ser no tocante à eloquência, ensina doutrinas diferentes destas (pois ninguém é maior do que o Mestre); nem, por outro lado, quem seja deficiente em poder de expressão infligirá dano à tradição. Pois sendo sempre a fé uma só, nem alguém que é capaz de dissertar sobre ela lhe fará adição alguma, nem a diminuirá quem possa dizer pouco
Ireneu, Adv Haer I, 10, 1-2; negrito acrescentado.
Aqui é interessante observar o resumo que Ireneu formula da fé apostólica e católica; coisas todas elas que se ensinam claramente nas Escrituras e que são cridas hoje nas Igrejas evangélicas. Em outro lado apresenta também uma espécie de credo, e depois continua com uma exposição do ensino cristão baseado nas Escrituras [Adv Haer III, 4, 2ss]. Por último, Ireneu não se cansa de afirmar que é nas Igrejas cristãs, estabelecidas pelos Apóstolos e por aqueles que lhes sucederam no pastorado, onde se achará a exposição fiel da doutrina apostólica que se encontra nas Escrituras.
Conclusão
Depois de analisar estes textos, verifica-se que Ireneu apela antes de tudo à autoridade das Escrituras, e somente em segundo lugar à tradição da Igreja. Mas sempre que formula esta tradição, vê-se que se trata das noções fundamentais da fé que todos os cristãos sustentam.
Em outras palavras, a tradição apostólica que se conservava nas Igrejas do século II é a mesma que ensina a Escritura.
Não há pois vestígios de uma tradição extra-escritural. Esta era defendida somente pelos gnósticos para sustentar as suas próprias doutrinas. Se o argumento parece familiar aos leitores, é simplesmente porque o utilizam hoje todos os apologistas católicos.

quinta-feira, 7 de março de 2013

Sobre a inspiração das Escrituras


“A inspiração – mais particularmente, a inspiração profética – foi identificada por muitos como a característica distintiva da coleção do Antigo Testamento quando foi reconhecida como completa. A coleção estava completa em princípio, segundo Josefo, quando a ‘exata sucessão de profetas’ terminou em Israel. Os rabinos tiveram por profetas os autores dos principais livros históricos (Josué, Juízes, Samuel, Reis) como também do Pentateuco e dos Salmos. Segundo os livros posteriores do Novo Testamento, toda a Escritura hebraica (fosse o texto original ou na versão grega) ‘é inspirada por Deus’ (2 Timóteo 3:16), pois ´homens movidos pelo Espírito Santo falaram da parte de Deus’ (2 Pedro 2:21).
Os cristãos tiveram razão ao discernir o Espírito Santo igualmente ativo nas Escrituras do Novo Testamento... Mas tem havido uma tendência de isolar a obra do Espírito na composição das escrituras individuais do Novo Testamento, da sua obra posterior em relação com elas. Os cristãos dos primeiros séculos não pensavam que a inspiração tinha cessado com o último livro do Novo Testamento; continuaram conscientemente gozando de inspiração eles próprios (embora não unida com a autoridade apostólica que põe os escritos do Novo Testamento num nível singular)...
A obra do Espírito Santo não se discerne mediante as ferramentas comuns do ofício do historiador. O seu testemunho interior dá a certeza aos ouvintes ou leitores da Escritura de que nas suas palavras o próprio Deus se dirige a eles; mas quando alguém considera o processo pelo qual o cânon da Escritura ganhou forma seria mais sábio falar da providência ou guia do Espírito que do seu testemunho... Certamente, quando alguém olha para trás o processo de canonização nos primeiros séculos cristãos, e recorda algumas das ideias de que eram capazes certos escritores eclesiásticos dessa época, é fácil concluir que ao chegar a uma conclusão sobre os limites do cânon eles foram guiados por uma sabedoria maior do que a sua. Pode ser que aqueles cujas mentes foram em grande medida formadas pela Escritura tal como foi canonizada achassem natural realizar um juízo deste tipo. Mas não é mera retrospeção dizer, com William Barclay, que ‘os livros do Novo Testamento tornaram-se canónicos porque ninguém os conseguiu impedir’ ou, na linguagem exagerada de Oscar Cullmann, que ‘os livros que formariam o futuro cânon se impuseram na Igreja pela sua autoridade apostólica intrínseca, como ainda o fazem, porque o Kyrios Cristo fala neles’.”
(F.F. Bruce, “The Canon of Scripture”. Downers Grove: InterVarsity Press, 1988, pp. 280-282).
Dado que os livros sagrados têm uma autoridade intrínseca que provém do seu Autor, o seu caráter canónico não depende da sanção humana em geral, nem eclesiástica em particular. A Igreja não decidiu nem decretou o cânon, mas o discerniu ou reconheceu, e a seguir o confessou e proclamou.

domingo, 3 de março de 2013

A distinção entre clero e leigos é antibíblica


A distinção católica entre clero e leigos/laicos é antibíblica. No Novo Testamento há distinções funcionais entre vários tipos de ministérios (apóstolos, profetas, evangelistas, pastores, doutores), mas não uma divisão hierárquica entre clero e leigos. Segundo o Novo Testamento todos os cristãos são “clero” (kleros) e todos são “leigos/laicos" (laos).

A palavra laos aparece três vezes em 1 Pedro 2:9-10, onde Pedro se refere ao "povo [laos] de Deus". Nunca no Novo Testamento, esta palavra se refere apenas a uma parte da assembleia dos santos. Ela não teve este significado até ao século III.
 
O termo "clero" tem a sua raiz na palavra grega kleros. Significa "herdade, herança, lote, parte". A palavra é usada em 1 Pedro 5:3, onde Pedro instrui os anciãos das igrejas a não "assenhorear-se da herdade [kleros] de Deus".

Nas Escrituras ensinam-se também somente dois sacerdócios válidos hoje: O sumo sacerdócio de Cristo, e subordinado a este, o sacerdócio de todos os fiéis. Os mesmos que são chamados “povo” (laos) são a sua herdade (kleros) e o seu sacerdócio real. Os ministros do Evangelho nunca são chamados “sacerdotes” em contraposição ao resto dos fiéis.

Portanto, todos os crentes são a herdade (kleros) do Senhor e o povo (laos) do Senhor.

Para mais detalhes ver:
 

sábado, 2 de março de 2013

Os Protestantes criticam a Igreja Católica, mas esquecem-se que a Bíblia chegou a eles através da Igreja Católica que traduziu e confeccionou a Bíblia que está agora nas suas mãos.


Sem dúvida a Bíblia chegou-nos através da Igreja Católica, que não é o mesmo que a Igreja de Roma. Um dos primeiros efeitos e alimentadores da Reforma Protestante foi a produção de boas versões da Bíblia em línguas vernáculas, enquanto Roma continuava anacronicamente agarrada à Vulgata (que sustentou em Trento como versão normativa para todos os fins práticos).
O interessante das primeiras versões protestantes é que se basearam em grande medida nos idiomas originais, ou seja, hebraico e grego, a partir de manuscritos que certamente não foram fornecidos pelo Vaticano, embora tenham sido proporcionados por mosteiros.
Na verdade, o Vaticano possuía, pelo menos desde o século XV, um dos melhores manuscritos gregos do Novo Testamento, do século IV, sob a forma do códice uncial B (Vaticano), mas não o pôs à disposição dos eruditos até finais do século XIX.
Enquanto os protestantes de língua portuguesa tiveram uma Bíblia traduzida do grego e do hebraico com grande esforço já em 1681 (de João Ferreira de Almeida), os católicos não contaram com uma versão feita a partir dos manuscritos até três séculos mais tarde com a publicação da que ficou conhecida por Bíblia Ilustrada ou Bíblia Monumental e que foi publicada em fascículos entre 1957 e 1970. E ainda assim esta tradução nunca foi divulgada em edições mais populares, pelo que rapidamente deixou de ser utilizada.
Assim de que falam os defensores de Roma?
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