terça-feira, 4 de dezembro de 2012

Defendamos Cipriano de Cartago dos apologistas romanos


Existem dezenas de sites católicos que nas suas páginas atribuem a Cipriano de Cartago a seguinte frase: “Estar em comunhão com o Papa é estar em comunhão com a Igreja Católica.” (Epist. 55, n.1, Hartel, 614);
Ora, acontece que Cipriano de Cartago nunca disse isto.
Esta é uma entre várias citações fraudulentas atribuídas a Cipriano que apologistas romanos sem escrúpulos alardeiam pela internet fora, numa infeliz tentativa de provar a existência do papado no tempo de Cipriano.
Alguém que não tenha acesso à carta e conheça algo do pensamento de Cipriano pode ficar com uma impressão extremamente errada.
Quem tenha interesse na verdade, deverá saber que Cipriano nunca disse esta frase (veremos abaixo a citação autêntica) e ter em conta que o contexto desta epístola, como o de muitas outras de Cipriano, é o chamado cisma novaciano, produzido na Igreja ocidental em meados do século III. Traduzo a seguinte informação:
Novacianismo. Um cisma rigorista na Igreja do Ocidente, que surgiu a partir da perseguição de [l imperador] Décio (249-250). O seu líder, Novaciano, era um presbítero de Roma e o autor de uma obra importante (e completamente ortodoxa) sobre a doutrina da Trindade. Na sua atitude para com muitos cristãos que se tinham envolvido com o paganismo durante a perseguição, Novaciano alinhou ao princípio com Cipriano, bispo de Cartago, em perdoar a excomunhão vitalícia consecutiva à defeção. Mais tarde, aparentemente por estar contrariado com a eleição de Cornélio como Papa (251), uniu-se ao partido rigorista, que depreciava tais concessões, e foi eleito bispo rival de Roma. As opiniões novacianistas foram aprovadas por Antíoco mas rejeitadas por Dionísio em Alexandria. O próprio Novaciano sofreu o martírio sob Valeriano em 257-258.
F.L. Cross, Ed.: The Oxford Dictionary of the Christian Church. London: Oxford University Press, 1958, p. 968.
Em outras palavras, como consequência do cisma ocorrido em Roma, havia nessa cidade um bispo legítimo (Cornélio), reconhecido pelos outros bispos em comunhão e particularmente por Cipriano (veja-se a sua Epístola 41 [45 na Edição de Oxford]) e um cismático, ou antipapa, ou seja Novaciano. Cipriano havia trocado abundante correspondência com Cornélio e a sua Igreja sobre o cisma de Novaciano (Epístolas 42-50 [ed. Oxford 46,47,49,50 – 54]).
Ora, o motivo da carta da qual os romanistas supostamente extraíram a breve citação falsa foi que o bispo de Numídia, Antoniano, tinha recebido cartas de Novaciano e estava a inclinar-se para os cismáticos rigoristas. Por isso Cipriano escreve para confirmar Antoniano na sua posição inicial e para defender Cornélio como o legítimo bispo de Roma.
Cipriano a Antoniano seu irmão, saúde. Recebi as tuas primeiras cartas, queridíssimo irmão, mantendo firmemente a concórdia do colégio sacerdotal, e aderindo à Igreja Católica, nas quais anunciavas que não guardavas comunhão com Novaciano, mas seguias o meu conselho, e mantinham um comum acordo com Cornélio, nosso co-bispo [agora segue-se o texto autêntico da citação em causa]. Escreveste-me, também, que transmitisse uma cópia dessas mesmas cartas a Cornélio nosso colega, de modo que ele pudesse deixar de lado toda a ansiedade, e saber de imediato que guardas comunhão com ele, ou seja, com a Igreja Católica.
Cipriano, Epístola 51 [55 Ed. Oxford]: 1
Mais adiante, Cipriano fala com maior extensão de Cornélio, a quem chama “nosso queridíssimo irmão”. Fala do seu valor na perseguição, salienta que não é um intruso mas um fiel ministro que tinha passado por todos os ofícios eclesiásticos antes de ser proclamado bispo, e que na realidade, a dignidade episcopal lhe foi imposta contra a sua vontade. Também fala da própria eleição, o que nos dá uma ideia de como deviam ser eleitos os bispos de Roma (e de outras partes) no século III, coisa muito diferente da prática atual:
E ele foi feito bispo por muitíssimos dos nossos colegas que estavam então presentes na cidade de Roma ... Mais ainda, Cornélio foi feito bispo pelo juízo de Deus e de seu Cristo, pelo testemunho de quase todo o clero, pelo voto do povo que então estava presente, e pela assembleia de anciãos sacerdotes e homens bons, quando ninguém o havia sido assim antes dele, quando o lugar de Fabião, isto é, quando o lugar de Pedro e o grau do trono sacerdotal estava vacante; o qual sendo ocupado pela vontade de Deus, e estabelecido pelo consentimento de todos nós, quem quer que agora deseje tornar-se um bispo, deve necessariamente sê-lo feito a partir de fora; e não pode ter a ordenação da Igreja quem não mantém a unidade da Igreja.
Cipriano, Epístola 51 [55 Ed. Oxford]: 8
Agora pode entender-se melhor a que se refere Cipriano: se Antoniano estabelecesse laços de comunhão com o bispo cismático, Novaciano, em vez de com o legitimamente eleito, Cornélio, estaria com isso fazendo-se cismático ele próprio. Pelo contrário, ao manter a comunhão com Cornélio conservava-se dentro da comunhão universal ou católica.
Que é disto que se trata, e não de que Cipriano considerasse Cornélio como seu superior hierárquico, o mostra o facto de o chamar “nosso co-bispo” e “nosso colega”.
A mesma carta dá testemunho de que em cada congregação era o consenso dos membros (naturalmente, com os pastores à cabeça) e na Igreja universal o acordo dos bispos e não a primazia do bispo de Roma, o que permitia estabelecer as decisões:
E isto também escrevi com grande extensão a Roma, ao clero que ainda agia sem um bispo, e aos confessores, Máximo o presbítero, e o resto que então estavam encerrados na prisão, mas que agora estão na Igreja, reunidos com Cornélio. Podes saber que escrevi isto da resposta deles, pois na sua carta escreveram assim: “No entanto, o que tu próprio declaraste num assunto tão importante é satisfatório para nós, que a paz da Igreja deve manter-se antes de tudo; então, que uma assembleia para conselho seja reunida, com bispo, presbíteros, diáconos e confessores, assim como com os laicos que permanecem fiéis, e nela tratássemos o assunto dos caídos”. Acrescentou-se também – escrevendo então Novaciano, ... e subscrevendo o presbítero Moisés, então ainda um confessor, mas agora um mártir- que devia conceder-se a paz aos caídos que estavam enfermos e agonizantes. Esta carta foi enviada por todo o mundo, e levada ao conhecimento de todas as igrejas e de todos os irmãos.
De acordo, porém, com o que antes havia sido decidido, quando a perseguição foi suprimida, e houve oportunidade de reunir-se, um grande número de bispos, cuja fé e a divina proteção nos tinha preservado em bem-estar e segurança, nos reunimos; e tendo-se trazido à colação as Sagradas Escrituras de ambos os lados, equilibramos a decisão com ampla moderação, de modo que nem se negasse por completo a esperança de comunhão e paz aos caídos, não fosse que caíssem ainda mais na desesperação, e, por a Igreja estar fechada para eles, vivessem, mundanamente, como pagãos; nem, por outro lado, se perdoasse a censura do Evangelho, de modo que se apressassem precipitadamente para a comunhão, mas o arrependimento retardasse, e a clemência paternal fosse penosamente desprezada, e os casos, e os desejos, e as necessidades dos indivíduos fossem examinados, de acordo com o que está contido num pequeno livro, que confio te tenha chegado, no qual as várias rubricas das nossas decisões foram recopiladas. E para evitar que porventura pudesse parecer insatisfatório o número de bispos de África, também escrevemos a Roma, ao nosso colega Cornélio, respeitante a isto, o qual por sua vez reunindo um concílio com muitíssimos bispos, concorreu na mesma opinião que havíamos sustentado, com igual gravidade e ampla moderação.
Relativamente à qual se tornou agora necessário escrever-te, para que possas saber que nada fiz de ânimo leve, mas ... tinha posto tudo à determinação comum do nosso concílio, e na verdade não tinha comunicado com nenhum dos caídos, enquanto havia ainda uma abertura pela qual os caídos poderiam receber não somente perdão, mas também uma coroa. No entanto depois, como o exigia o acordo do nosso colégio, e a vantagem de reunir a irmandade toda junta, e de sarar a sua ferida, me submeti à exigência dos tempos, e pensei que a segurança de muitos devia ser provida; e não retrocedo agora destas coisas que foram uma vez determinadas no nosso concílio de comum acordo, embora muitas coisas sejam ventiladas pelas vozes de muitos, e se profiram mentiras contra os sacerdotes de Deus da boca do diabo, para romper a concórdia da unidade católica.
Cipriano, Epístola 51 [55 Ed. Oxford]: 5-7
Desta carta, como de outros escritos de Cipriano, vê-se que para a Igreja católica ou universal, cuja unidade ele tanto valorizava, a validade das decisões dependia de que houvesse um consenso entre os bispos, quantos mais melhor. De facto, em vez de pedir a Cornélio que certificasse com a sua própria autoridade “papal” a decisão dos bispos africanos, pede ao seu co-bispo, como gosta de chamá-lo, que reúna o maior número possível de colegas com o fim de dar plena validade às conclusões.
Finalmente, na mesma carta que os romanistas tão atinadamente invocam, podemos ver que o bispo de Cartago não considerava que uns bispos fossem superiores em autoridade a outros:
Enquanto permaneça o vínculo da concórdia, e persista o sacramento indiviso da Igreja Universal, cada bispo dispõe e dirige seus próprios atos, e deverá prestar contas dos seus propósitos ao Senhor.
Cipriano, Epístola 51 [55 Ed. Oxford]: 21; negrito acrescentado.
Palavras que seriam muito difíceis de entender se um bispo estivesse posto acima de todos os outros.
Penso que o até aqui apresentado é suficiente para clarificar o panorama tanto para católicos como para não católicos.

sexta-feira, 26 de outubro de 2012

Sobre o estado intermédio entre a morte e a ressurreição físicas


O SIGNIFICADO DAS PALAVRAS NEFESH E PSYCHE É AMPLO, E EM CADA CASO DEVE DETERMINAR-SE PELO CONTEXTO
 
O vocábulo hebreu néfesh e o equivalente grego psyché, vertidos com frequência “alma” têm uma amplitude de significado que impede que sejam traduzidos de maneira uniforme todas as vezes que aparecem na Bíblia.
 
Néfesh pode significar “ser vivente”, como em Génesis 2:7 e Ezequiel 18:4. Mas também pode significar “fome”, “necessidade”, “anseio”, “aspiração”, etc. Em Génesis 3:19 significa “alimento” e em Levítico 17:11, “princípio vital”. A amplitude de psyché é semelhante, e se sempre significasse “ser vivente” as seguintes passagens, entre outras, seriam ininteligíveis:
 
“corpo, alma e espírito” (1 Tessalonicenses 5:23)
“palavra viva” ou eficaz (Hebreus 4:12)
“corpo e alma” (Mateus 10:28)
“as almas dos mortos” (Apocalipse 6:9)
 
Tanto néfesh como psyché usam-se com frequência para denotar o eu psicológico consciente do homem.
 
Néfesh: Génesis 27:4; Êxodo 23:9; Números 24:5; Deuteronómio 4:9; Juízes 10:16; Job 10:1; 1 Samuel 4:9; 2 Crónicas 6:38; Salmos 6:3; 10:3; 42:1-5; 103:1; 123:4; Provérbios 13:9; 21:10; Eclesiastes 6:2; Isaías 10:18; 58:5-11; Jeremias 6: 8-16; Zacarias 11:8
 
Psyché: Mateus 10:28; 26:38; Marcos 8:36; Lucas 1:46; 12: 18-20; João 10:24; Tito 1:15; Hebreus 6:19; 8:10; 10:39; 1 Pedro 2:11; Apocalipse 6:9-11; 18:4; 20:4.
 
Existe um estreito vínculo entre o conceito de “alma” (néfesh, psyché) e o de espírito (hebraico ruach, grego pneuma). O espírito poderia descrever-se como o princípio de vida inteligente no homem, que o faz assemelhar-se a Deus (Génesis 2:7; 1 Coríntios 2:11). De modo que o caráter pessoal do homem depende do seu espírito, mas a sua personalidade individual e concreta constitui a sua alma. Claro está que existe certa sobreposição entre os conceitos de alma e de espírito, ao ponto que às vezes são identificados entre si: Êxodo 6:9; Job 7:11; Isaías 26:9.
 
Em honra da verdade, a Bíblia não afirma explicitamente a imortalidade da alma humana. Na realidade diz que somente Deus é imortal em si mesmo: 1 Timóteo 1:17; 6:16; 2 Timóteo 1:10. No entanto, a Escritura ensina a continuidade da existência humana para lá do túmulo. Na morte física, a alma se separa do corpo, e o espírito humano sobrevive: Génesis 35:18; 1 Reis 17:22; Job 32:8; Eclesiastes 12:5-7; Salmo 31:6, Lucas 23:46; Atos 7:59; Mateus 10:28; Apocalipse 6:9; 20:4-6.
 
É verdade que diversos textos do Antigo Testamento, como Eclesiastes 3:18-20 e Salmo 6:5, 115:17 indicam que os mortos são num sentido “semelhantes às bestas” e não louvam a Deus. Mas isto é da perspetiva terrestre. Em particular, o autor de Eclesiastes indica esta perspetiva terrenal ao perguntar: “Quem sabe se o espírito dos filhos dos homens sobe para o alto, e o espírito do animal baixa para o fundo da terra?” (3:21). Mas ele mesmo responde a esta dúvida no final do livro, onde declara a perspetiva divina: “Lembra-te do teu Criador ... antes que o pó volte à terra, como era, e o espírito volte a Deus, que o deu” (12:1,7).
 
“A ignomínia final é voltar ao pó. Uma vez mais (cf. 3:20) o Pregador alude a diferentes aspectos da natureza do homem. O pó é do que está feita a terra. A palavra enfatiza a origem terrenal da humanidade (Génesis 2:7; 3:19; Job 10:9) e a debilidade física (Salmo 103:14). Voltar para o pó é ir em sentido contrário de Génesis 2:7 e tornar-se um cadáver, que por sua vez é passível de mais deterioração. É não estar mais animado pelo alento que vem de Deus (cf. Job 34:14-15). O espírito humano é o princípio de vida inteligente e responsável. A sua retirada constitui o fim da vida terrenal e acarreta a dissolução do corpo (cf. Salmos 22:15; 104:29). A sua volta para Deus não se desenvolve. Coloca-se, porém, em contraste com ‘voltar para o pó’, a dissolução do corpo, e portanto não pode referir-se a esta, porque se coloca em oposição a ela. Repete o contraste entre ‘para cima’ e ‘para baixo’ de 3:20 e da ‘terra’ e do ‘céu’ de 5:2. O termo sugere, portanto, a continuidade da existência; mas temos de aguardar até à luz do Novo Testamento para que sejam dados detalhes (cf. 2 Timóteo 1:10).” Michael A. Eaton, Ecclesiastes, an Introduction and Commentary (Tyndale OT Comm. # 16. Downers Grove: InterVarsity Press, 1983, p. 150-151).
 
A MORTE NÃO É A SIMPLES ANIQUILAÇÃO OU CESSAÇÃO DA EXISTÊNCIA
 
Vários textos fazem referência aos mortos como os que “dormem”, o que implica um estado de inconsciência em relação aos assuntos terrenais: Daniel 12:1-2; Mateus 5:39; 27:52; João 11:11; Atos 7:60; 1 Coríntios 11:30; 15:18, 20, 51; 1 Tessalonicenses 4:13-15, etc. No entanto, a imagem também implica a transitoriedade de tal estado.
 
Embora os vocábulos usados em relação à morada dos mortos, seol (hebreu) ou hades (grego) possam ocasionalmente traduzir-se no sentido de um destino “final” e sobrepor o seu significado com o de “sepulcro”, ocorre que tanto o hebraico como o grego possuem palavras específicas para nomear o túmulo ou sepulcro; respetivamente kéber e mnema ou mnemeion.
 
O uso destas palavras é diferente do emprego de seol ou hades. Por exemplo, há numerosas referências ao kéber ou mnema desta ou daquela pessoa, mas nunca ao seu seol ou hades. Todos os mortos têm um sepulcro, mas nenhum tem um seol ou hades. Num caso se trata do túmulo ou lugar de repouso do corpo, e no outro de um lugar de subsistência espiritual do além-túmulo.
 
Seol: Job 33:24; Salmo 16:10; 30:9; Amós 9:2; Isaías 14:9-15; Ezequiel 32: 21-31
 
Kéber: Êxodo 14:11; Números 19: 16,18; 2 Samuel 3:32; 19:37; 1 Reis 13:30; 14:13; Jeremias 8:1; 26:23
 
Hades: Mateus 12:40; Efésios 4:9-10; Atos 2:27
 
Mnema, mnemeion: Mateus 23: 39; 27: 52-53; Lucas 11:44; João 5:28; 11:17; 12:17
 
Perecer não significa deixar de existir por completo. Por exemplo, é-nos dito que o mundo antigo pereceu no dilúvio, mas certamente não foi aniquilado; de igual modo, o atual mundo há de perecer, o que não implica o seu futuro desaparecimento, mas a sua transformação (2 Pedro 3:6,13; Hebreus 1:11; cf. Apocalipse 21:1).
 
A Bíblia não se refere à morte como à simples cessação da existência, mas antes como a uma separação. Entre as palavras que se usam para descrevê-la há termos que sugerem fortemente esta ideia, como o hebraico maveth (Génesis 25:11) e o grego anairesis (Hebreus 8:1). Sempre dentro desta noção de separação, pode considerar-se uma morte espiritual, uma morte física e uma segunda morte. A morte espiritual foi experimentada primeiramente por Adão quando pecou e foi expulso da presença de Deus; nesse dia, certamente morreu (Génesis 2:16-17; cf. 3:22-24). Todo ser humano está morto nos seus pecados, separado de Deus; mas pode passar da morte para a vida pela fé em Jesus Cristo: Mateus 8:22; João 5:24-25; Romanos 4:17; 5:12-21; 6:13; Efésios 2:1-5; 1 Pedro 2:24. Quando Jesus declarou solenemente: “Em verdade, em verdade vos digo que, se alguém guardar a minha palavra, nunca verá a morte” (João 8:51) é óbvio que não se referia à morte física.
 
A morte física é a separação entre o corpo e a alma. Já no Antigo Testamento se indicava que os mortos subsistiam de alguma forma, até tal ponto que se proibia expressamente invocá-los. Na morte física a alma se separa do corpo, mas pode voltar a este se a pessoa ressuscita. Além disso ensina-se que os justos estarão com Deus apesar dos seus corpos se corromperem. Ver Isaías 8:19; 14:9-10; Levítico 19:31; 20:6, 27; Deuteronómio 18:10-12; Salmo 73:24-26; Job 19:25-27.
 
O ensino do AT é ratificado e ampliado no NT: Mateus 27:50; Lucas 23:46; Atos 7:59; cf. 2 Coríntios 12:1-5. Tiago 2:26 diz, como algo óbvio e conhecido por todos, que o corpo está morto sem o espírito: “Porque assim como o corpo sem o espírito está morto, assim também a fé sem obras está morta”.
 
A segunda morte somente é mencionada por tal nome em Apocalipse (2:11; 20:6,14; 21:8). Novamente está implícita a ideia de separação, neste caso eterna. A segunda morte segue-se à ressurreição física e ao juízo dos ímpios, e envolve a eterna separação de Deus, em corpo e alma (cf. Mateus 10:28).
 
Para os homens, Abraão morreu (João 8:58) mas Jesus disse que os patriarcas Abraão, Isaque e Jacob estavam vivos para Deus, que “não é Deus de mortos, mas de vivos; porque para ele todos vivem” (Lucas 20:38).
 
Além das provas de caráter geral, diversos episódios bíblicos falam da vida após a morte.
 
Moisés e Elias presentes na transfiguração
 
Na transfiguração de Jesus, tanto Mateus como Marcos e Lucas dão testemunho de que Moisés e Elias se apresentaram e falaram com o Senhor (Mateus 17:3 e paralelos), o que prova que continuavam existindo. Ainda que se argua que Elias, como Enoque, não passou pela morte física, não ocorre a mesma coisa com Moisés (Deuteronómio 32).
 
O rico e Lázaro
 
Na narração sobre o rico e Lázaro (Lucas 16:19-31), Jesus ensinou a persistência da consciência para lá da morte física. Nem Jesus nem Lucas dizem ou insinuam que se trate de uma parábola. Embora o capítulo comece com uma parábola, a qual é identificada como tal (16:1-12), depois o Senhor ensina sobre diversos assuntos, como a impossibilidade de servir a dois senhores, o anúncio do Evangelho, a vigência da Lei e o divórcio. A seguir, sem interrupção, vem esta narração. Além disso, em nenhuma parábola se menciona um nome próprio, como é o caso de Lázaro (Eleazar = Deus ajuda). Seja como for, já que as parábolas se baseavam em acontecimentos reais ou pelo menos possíveis, muitos deles da vida diária, mesmo se se tomar como parábola a narração isso não implica que a narração seja uma mera ficção didática. A expressão “o seio de Abraão” é traduzida por várias versões como simplesmente “ao lado de Abraão”, num lugar de honra junto ao pai dos hebreus (cf. Mateus 8:11 e João 13:23). Assim Lázaro disfruta já de tudo quanto lhe foi negado em vida, ao passo que o rico sofre no Hades pelos seus pecados. Este é um dos ensinamentos chave da narração. O segundo tem que ver com a incredulidade: os que não escutam Moisés e os profetas, não acreditarão nem mesmo que ressuscitem os mortos. Esta verdade ficou dramaticamente demonstrada com a reação dos dirigentes judeus quando Jesus ressuscitou o outro Lázaro (João 11).
 
O primeiro mártir da Igreja encomendou o seu espírito a Cristo
 
Ouvindo eles [os judeus] isto, enfureciam-se em seus corações, e rangiam os dentes contra ele. Mas Estêvão, estando cheio do Espírito Santo, fixando os olhos no céu, viu a glória de Deus, e Jesus, que estava à direita de Deus, e disse: «Eis que vejo os céus abertos, e o Filho do homem, que está em pé à mão direita de Deus»... E apedrejaram a Estêvão que em invocação dizia: «Senhor Jesus, recebe o meu espírito»” (Atos 7:54-56, 59).
 
Os espíritos dos justos já estão na presença de Deus
 
O autor de Hebreus contrapõe o terror dos israelitas no monte Sinai com a esperança gozosa dos cristãos, nestes termos:
 
Mas vós chegastes ao monte Sião, e à cidade do Deus vivo, à Jerusalém celestial, e à companhia de muitos milhares de anjos, à congregação dos primogénitos que estão inscritos nos céus. Vós vos aproximastes de Deus, juiz de todos, e dos espíritos dos justos aperfeiçoados, de Jesus mediador do novo pacto, e do sangue da aspersão, que fala melhor do que o de Abel” (Hebreus 12:22-24).
 
Para o presente propósito, nos interessa o facto de que aqui “os espíritos dos justos aperfeiçoados” encontram-se já na Jerusalém celestial, em presença do Pai, do Filho e de seus anjos. É verdade que aguardam uma “melhor ressurreição” (Hebreus 11:35), mas já foram aperfeiçoados para estar na presença de Deus.
 
“Alguns comentadores são da opinião de que estes espíritos pertencem a crentes do Antigo Testamento; outros pensam que o escritor se refere a santos do Novo Testamento que faleceram. Mas todos os crentes tanto dos tempos do Antigo como do Novo Testamento, que foram trasladados para a glória, são declarados justos. Eles foram aperfeiçoados com base na obra de Cristo; ele é “o autor e consumador da nossa fé” (Hebreus 12:2). Qual, então, é a relação entre os santos na terra e os santos no céu? Os santos na glória foram aperfeiçoados porque são libertos do pecado. As suas almas são perfeitas; seus corpos aguardam o dia da ressurreição. Em princípio, os crentes na terra compartilham a perfeição que Cristo dá ao seu povo. Eles gozam a perspetiva de reunir-se com a assembleia dos santos no céu. Só a morte separa a Igreja de baixo da Igreja de cima. Quando ocorre a morte, o crente obtém o cumprimento da obra expiatória de Cristo (Hebreus 2:10).” (Simon J. Kistemaker, Exposition of the Epistle to the Hebrews. NT Commentary. Grand Rapids: Baker Book House, 1984, p. 394-395).
 
João viu as almas dos que morreram em Cristo
 
No Apocalipse, João descreve a seguinte visão:
 
“Quando o Cordeiro abriu o quinto selo, vi debaixo do altar as almas dos que haviam sido mortos por causa da palavra de Deus e do testemunho que haviam mantido; e clamavam com grande voz, dizendo: Até quando, ó Senhor, santo e verdadeiro, esperarás para julgar e vingar o nosso sangue dos que habitam sobre a terra? E foram dadas a cada um compridas vestes brancas e foi-lhes dito que repousassem ainda um pouco de tempo, até que também se completasse o número de seus conservos e seus irmãos, que haviam de ser mortos como eles foram” (6:9-11).
 
Aqui as almas dos mortos não só estão conscientes, como clamam a Deus.
 
Paulo declara que daremos conta do que fizemos “no corpo”
 
Em 2 Coríntios 5:1-9 Paulo declara:
 
Porque sabemos que se a tenda terrenal que é a nossa morada, for destruída, temos de Deus um edifício, uma casa não feita por mãos, eterna, nos céus. Pois na verdade, nesta morada gememos, desejando ser revestidos com a nossa habitação celestial; e uma vez vestidos, não seremos achados nus. Porque também nós, os que estamos nesta tenda, gememos sobrecarregados; pois não queremos ser despidos, mas vestidos, para que o mortal seja absorvido pela vida. E quem para isto mesmo nos preparou foi Deus, o qual nos deu o Espírito como garantia. Portanto estamos sempre de bom ânimo, sabendo que, enquanto habitamos no corpo, estamos ausentes do Senhor (porque andamos por fé, não por vista); mas temos confiança e preferimos antes estar ausentes do corpo e habitar com o Senhor. Por isso, quer presentes, quer ausentes, desejamos ser-lhe agradáveis”.
 
Aqui Paulo fala do corpo como de uma morada, e definidamente fala da possibilidade de estar presentes perante o Senhor “ausentes do corpo”. A seguir acrescenta que todos seremos julgados por Cristo para dar conta do que fizemos “por meio do corpo” (v. 10). Tudo isto indica a persistência da personalidade para lá da morte física.
 
No mesmo sentido, embora de maneira transitória, a separação entre o material e o imaterial do homem está implícita quando fala da sua própria experiência: “Conheço um homem em Cristo que há catorze anos (não sei se no corpo, não sei se fora do corpo, Deus o sabe) foi arrebatado ao terceiro céu.” (2 Coríntios 12:2).
 
Jesus anunciou ao ladrão que estaria com ele no paraíso nesse mesmo dia
 
Em Lucas 23:42-43 lemos:
 
E dizia a Jesus: Lembra-te de mim quando vieres no teu reino. E disse-lhe Jesus: Em verdade te digo hoje estarás comigo no Paraíso.” (tradução literal)
 
Há quem interpreta esta resposta de Jesus como uma promessa para o futuro remoto: “Em verdade te digo hoje, [que] estarás comigo no paraíso”, em lugar de “em verdade te digo [que] hoje estarás comigo no paraíso”. No segundo caso, toma-se o “hoje” como indicativo de quando ocorreria o prometido; no primeiro toma-se o hoje como uma palavra destinada a dar ênfase à declaração. Para apoiar esta última posição, arguem-se textos, geralmente do Antigo Testamento, onde “hoje” se usa deste modo. Mas eis aqui os factos:
 
1. A palavra “hoje” (grego sëmeron) aparece outras quarenta vezes no Novo Testamento fora desta passagem, e em todos os casos se refere ao tempo presente; por exemplo, Mateus 6:11; 21:28; Lucas 19:5,9; Atos 24:21; Romanos 11:28; Hebreus 3:15, etc. Em Atos 20:26 pode ser enfático, mas não descarta o presente e a construção é diferente.
 
2. Nos evangelhos há um total de 76 ocasiões, incluído Lucas 23:43, nas quais Jesus usa a expressão “Em verdade vos [ou te] digo”, ou “Em verdade, em verdade vos [ou te] digo”. Deve notar-se que a expressão “em verdade” (grego amen) é em si enfática e não precisa de ser sublinhada adicionalmente. Além disso, nunca em nenhum dos 75 casos fora de Lucas 23:43 Jesus acopla um “hoje” aos seus “Em verdade vos digo”, para dar-lhe ênfase. Ou seja, para apoiar a reinterpretação de Lucas 23:43 como enfático teria que admitir-se que somente aqui, nesta única ocasião em todos os Evangelhos, Jesus decidiu usá-lo desse modo.
 
3. Há, porém, uma ocasião em que Jesus acopla o “hoje” a um “Em verdade”; e neste único caso em particular, a referência é inequivocamente a algo que haveria de ocorrer nesse mesmo dia: “Em verdade te digo que hoje, nesta noite, antes que o galo cante duas vezes, três vezes me negarás” (Marcos 14:30).
 
Por conseguinte, toda a evidência indica que a interpretação tradicional, “hoje estarás comigo no paraíso” é a correta.
 
O SENHOR JESUS ANUNCIOU A RESSURREIÇÃO DO SEU CORPO
 
Em Mateus 12:40 Jesus declarou: “Mas ele lhes respondeu, e disse: Uma geração má e adúltera pede um sinal, porém, não se lhe dará outro sinal senão o do profeta Jonas; pois, como Jonas esteve três dias e três noites no ventre do monstro marinho, assim estará o Filho do homem três dias e três noites no coração da terra”. Visto que a comparação se refere ao período entre a morte e a ressurreição, deve notar-se que Jonas conservou a consciência enquanto estava no seio do monstro; de modo que dificilmente tal permanência indica a cessação completa da existência, ou um estado de inconsciência. Outros textos nos indicam que com esta declaração Jesus se referia ao seu corpo, não a todo o seu ser.
 
Quando Jesus expulsou os comerciantes do templo, os judeus lhe perguntaram que sinal podia dar para respaldar o seu proceder.
 
Jesus respondeu, e disse-lhes: Destrui este templo, e em três dias o levantarei. Disseram, pois, os judeus: Em quarenta e seis anos foi edificado este templo, e tu o levantarás em três dias? Mas ele falava do templo do seu corpo. Quando, pois, ressuscitou dentre os mortos, os seus discípulos lembraram-se de que lhes dissera isto; e creram na Escritura, e na palavra que Jesus tinha dito".
 
Em outras palavras, Jesus anunciou a sua ressurreição física, corporal, “do templo do seu corpo” (tou naou tou sömatos autou). De igual modo, em Pentecostes o apóstolo Pedro se referiu à ressurreição física do Senhor, cuja carne (sarx) não sofreu corrupção. O que fica sem vida e se corrompe depois da morte física é o corpo, não a pessoa na sua totalidade: João 19:31,38; Marcos 15:43-46; Lucas 23:55; 24:3; Tiago 2:26.
 
OS APÓSTOLOS PAULO E PEDRO FALARAM DA SUA MORTE PRÓXIMA COMO DE UMA PARTIDA
 
Filipenses 1:23-24, “Tenho o desejo de partir e estar com Cristo, porque isto é muito melhor; mas ficar na carne é mais necessário por causa de vós”.
 
2 Timóteo 4:6, “Porque eu já estou prestes a ser oferecido em sacrifício, e o tempo da minha partida chegou”.
 
2 Pedro 1:14-15, “brevemente tenho que deixar o meu tabernáculo... procurarei com empenho que, depois da minha partida, vós possais ter memória destas coisas”.
 
Pedro refere-se ao seu corpo como uma habitação precária, “o meu tabernáculo” (tou skënömatos mou) e à sua morte como uma partida (grego exodos). Paulo usa as expressões “partir” (grego analuö) e “partida” (grego analusis) para referir-se à sua morte. Contrasta a sua ansiada partida com o “ficar na carne” (epimenein tei sarki); descreve a sua futura situação com Cristo como “muito melhor” e afirma que para ele “morrer é ganho” (to apothanein kerdos). Estas declarações mostram sem disputa possível que ambos os apóstolos consideravam a sua própria morte não como um estado de inconsciência ou inexistência, mas como uma desejada partida para estar com Cristo.
 
Em outro lado Paulo, inspirado pelo Espírito Santo, declarou solenemente que nem a morte pode separar os crentes do amor de Deus manifestado em Cristo Jesus (Romanos 8:38).  
 
Concluímos pois que as Sagradas Escrituras ensinam a sobrevivência à morte física do eu imaterial do homem, denominado alma ou espírito em diferentes textos. Portanto, os que morrem em Cristo passam de imediato ao âmbito celestial enquanto aguardam a ressurreição dos seus corpos.

sexta-feira, 12 de outubro de 2012

A "Doação de Constantino" e outras falsificações


Não se pode compreender devidamente a origem e a própria concepção do papado como o conhecemos hoje, sem ter em conta o papel que teve a avalanche de falsificações, como a Doação de Constantino e as Falsas Decretais, que a partir do século VIII apoiavam o poder espiritual e temporal do papado. Este não teve outra alternativa senão renunciar ao segundo, mas em contrapartida sustém tenazmente o primeiro.

A chamada Doação de Constantino é um documento do século VIII ou IX. Trata-se de uma carta espúria do imperador Constantino o Grande, dirigida ao bispo de Roma Silvestre I (314-335). Consta de duas partes. A primeira, ou Confessio narra a sua instrução na fé, o seu baptismo e a sua cura da lepra por parte de Silvestre, além de uma confissão de fé. Na segunda parte, ou Donatio, Constantino confere ao bispo de Roma ou papa, como sucessor de São Pedro, privilégios imperiais, e aos principais clérigos, prerrogativas senatoriais. Segundo este documento, o papa “possui a primazia sobre os quatro Patriarcas de Antioquia, Alexandria, Constantinopla e Jerusalém, e também sobre todos os bispos do mundo”.

Obviamente aqui não se trata somente de potestade temporal, mas também espiritual, e concretamente da primazia tão ambicionada pelos bispos romanos. De facto, em 1054 o papa Leão IX esgrimiu contra o patriarca de Constantinopla, Miguel Cerulário, a Doação para demonstrar que a sede romana possuía uma autoridade tanto temporal como espiritual. Leão sustentava que “Pedro e seus sucessores têm livre juízo sobre toda a Igreja, sem que ninguém deva fazê-los mudar de lugar, pois a Sede suprema por ninguém é julgada...”.

Sem dúvida, semelhante pretensão era inaudita na Igreja antiga, e certamente nada disto provinha dos cânones dos primeiros Concílios Ecuménicos, onde se reconhecia a Roma uma primazia honorífica mas de modo algum de jurisdição.

No entanto, um par de séculos antes (865) Nicolau I tinha escrito ao imperador Miguel que “o juiz [isto é, o bispo de Roma] não será julgado nem pelo Augusto, nem por todo o clero, nem pelos reis, nem pelo povo...”, “A primeira Sede não será julgada por ninguém...”. O Denzinger esclarece acerca da primeira citação que “Estas palavras alegam-se como de São Silvestre”, e sobre a segunda “Das actas do sínodo apócrifo de Sinuessa, 303 (cf. Hfl. I, 143 ss).

A apócrifa Doação foi incluída nas compilações de leis canónicas realizadas por Anselmo de Luca e Deusdedit, e mais tarde acrescentada ao Decretum de Graciano, obras de referência na instrução do clero da época. Foi livremente citada pelos defensores do papado, inclusive por Pedro Damião, e pelos próprios papas, como por exemplo Inocêncio III e IV, e Gregório IX. Embora tenha sido exposta como patentemente falsa no século XV, os canonistas e juristas continuaram a apelar para a sua autoridade durante todo o século seguinte (precisamente o da Reforma).

Além disso, a Doação foi incorporada na monumental série de documentos, muitos deles falsificados, conhecida como Falsas Decretais ou Decretais Pseudo-Isidorianas, que foi publicada em 850; o autor usa o pseudónimo de Isidoro Mercator. Segundo The Catholic Encyclopedia, esta colecção, cuja suposta intenção foi a de compilar todos os documentos importantes sobre a lei canónica, constava em resumo de:


(1) Uma lista de sessenta cartas ou decretos apócrifos atribuídos aos papas desde São Clemente (88-97) até Melquíades (311-314) inclusive. Destas sessenta cartas, cinquenta e oito são falsificações; começam com uma carta de Aurélio de Cartago solicitando ao Papa Dámaso (366-384) que lhe enviasse as cartas dos seus predecessores na cátedra dos Apóstolos; e isto é seguido por uma resposta na qual Dámaso assegura a Aurélio que as cartas desejadas estavam sendo enviadas. Esta correspondência se propunha dar um ar de verdade às falsas decretais, e foi obra de Isidoro.
(2) Um tratado sobre a Igreja Primitiva e sobre o Concílio de Niceia, escrito por Isidoro, e seguido pelos cânones autênticos de cinquenta e quatro concílios. Deve assinalar-se, no entanto, que entre os cânones do segundo Concílio de Sevilha (página 438) o cânon VII é uma interpolação dirigida contra os chorepiscopi.
(3) As cartas principalmente de trinta e três papas, desde Silvestre (314-335) até Gregório II (715-731). Destas cerca de trinta cartas são falsificações, enquanto todas as outras são autênticas.”
Louis Saltet, False Decretals. Em The Catholic Encyclopedia, vol. V (1909)

Aparentemente, Isidoro usou como base uma muito má edição francesa de uma colecção de documentos existente, chamada Hispana por ter sido compilada em Espanha em 633 (ou seja, a “Hispana Gallica”). Continha os textos conciliares desde Niceia, e decretais papais desde Dámaso (finais do século IV). A isto antepôs as suas cartas forjadas dos papas dos primeiros séculos. Acrescentou também à segunda parte da Hispana as cartas forjadas de papas entre Dámaso e Gregório I, e interpolou aqui e ali outros documentos.
Além disso, na realidade adulterou o texto da Hispana Gallica. Na Biblioteca do Vaticano conserva-se uma cópia desta adulteração, chamada Hispana Gallica Augustodunensis (manuscrito latino 1341).
Em conjunto, a colecção espúria de Isidoro tinha como propósito evidente defender os bispos do poder secular. No entanto, o modo de fazê-lo foi submetê-los ao poder papal. Paradoxalmente as Falsas Decretais fracassaram em grande medida em relação ao seu objectivo primário, mas em contrapartida serviram para sustentar as novas e grandiosas ideias acerca da primazia papal entre Nicolau I e Inocêncio III.
Sobre a noção da primazia do poder espiritual sobre o temporal, afirma por exemplo Isidoro que o governante não pode convocar por si um sínodo, mas que precisa da autorização do papa. Isto é uma novidade, como é evidente do facto de os concílios ecuménicos terem sido convocados pelos imperadores e não pelos bispos de Roma.
Segundo Isidoro, a organização das paróquias foi estabelecida já no século I por Clemente de Roma; em outras palavras, os apóstolos teriam seguido a organização territorial do Império, e as divisões diocesanas e metropolitanas eram muito primitivas. Saltet chama a isto uma “visão fantástica da história”.
Embora afirme a autoridade dos bispos, e faça todo o possível para subtraí-los de qualquer acusação e juízo, o faz com base na divisão originalmente realizada pelos papas. E reserva ao papa a jurisdição suprema sobre as apelações.
Além disso, Isidoro reserva para o papa o direito de convocar ou autorizar a convocatória de todos os concílios, assim como o de ratificar as suas decisões. Saltet observa:

Posto desta forma geral e imperativa, estas afirmações eram algo novo. Nada parecido tinha sido obrigação para a celebração de Sínodos provinciais; em relação à aprovação dos decretos conciliares, era um acontecimento comum na antiguidade. Quando estavam em jogo assuntos de muita importância, os papas reclamavam o direito de aprovação, mas não havia um preceito formal ou geral que afirmasse tal direito.

O efeito destas concepções acerca do poder papal, inauditas para a Igreja primitiva, foi o de fornecer apoio jurídico não somente para as pretensões temporais do papado, mas para toda a teoria do primado e posteriormente da infalibilidade pontifícia.

Portanto, estes e outros documentos falsificados tiveram imerecidamente efeitos perduráveis que são facilmente discerníveis no actual Código de Direito Canónico (por exemplo, que ninguém pode julgar a primeira Sede) e na doutrina acerca do primado e da infalibilidade.

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