domingo, 20 de março de 2011

O purgatório e os Padres da Igreja


Este texto-resposta a um católico que transcrevo a seguir em português - Purgatory and the earliest Fathers - é bastante esclarecedor de como era visto (ou não visto) o purgatório na Igreja antiga e de quais são as origens desta doutrina.  Serve também para refutar o artigo publicado no site Veritatis Splendor: O Purgatório, a Igreja primitiva e os Santos Padres. Os padres citados e os argumentos utilizados são praticamente os mesmos.
filósofo_católico: Não há escritos primitivos na igreja primitiva sobre o purgatório? A evidência extrabíblica mais explícita para a crença na doutrina do purgatório na Igreja antiga é encontrada nas suas liturgias. Sem exceção, no Oriente e no Ocidente, as várias liturgias Eucarísticas continham pelo menos um memento mori, "memória dos mortos". Não teria sentido orar pelos mortos se fosse certo que eles já estivessem no céu, assim como não teriam necessidade de orações. Se eles estivessem no inferno, a oração não lhes poderia fazer nenhum bem. Mas a Igreja sabia então, como sabe agora, que há um "estado intermédio ", onde alguns que morrem em estado de graça e estão seguros da sua salvação podem beneficiar das nossas orações.
O problema com isto é que a igreja primitiva pode ter orado pela "memória dos mortos" sem introduzir uma ideia de purgatório à mistura. A igreja PODE orar pelos mortos independentemente de um purgatório, e isso é o que a evidência revela. O historiador medievalista e académico, Jacques Le Goff, esclarece:
Finalmente, alguns destes textos descrevem um lugar que, apesar de bastante semelhante ao "seio de Abraão", não é sempre idêntico a ele: o refrigerium. Várias inscrições funerárias mencionam as palavras refrigerium ou refrige-rare, (refrigério, refrigerar), tanto isoladamente como em conjunto com a palavra pax (paz): in pace et refrigerium, esto in refrigerio (que ele esteja em refrigerium), in refrigerio anima sua (que a sua alma esteja em refrigerium), deus refrigeret spiritum tuum (que Deus refrigere o seu espírito).
Um excelente estudo filológico de Christine Mohrmann claramente traçou a evolução semântica de refrigerium do clássico para o Latim Cristão: "Paralelamente a estas bastante vagas e inconstantes definições, as palavras refrigerare e refrigerium assumiram, na linguagem Cristã, um significado técnico muito preciso: a felicidade celestial. Encontramos refrigerium usado neste sentido já em Tertuliano, em cujos escritos denota tanto a felicidade temporária das almas esperando o retorno de Cristo no seio de Abraão, segundo a própria concepção de Tertuliano do assunto, como a eterna bem-aventurança do Paraíso, que é gozada pelos mártires desde o momento que morrem e que é prometida aos eleitos após o veredicto divino final… Entre os escritores Cristãos mais tardios refrigerium é usado de uma maneira geral para designar as alegrias do mundo além-túmulo, prometidas por Deus aos eleitos.
"Refrigerium tem um lugar especial na pré-história do Purgatório apenas por causa da concepção pessoal de Tertuliano, à qual Mohrmann alude no parágrafo acima. De facto, como vimos, refrigerium denota um estado quase-paradisíaco de felicidade e não um lugar. Mas Tertuliano imaginou um tipo especial de refrigerium, o refrigerium interim ou "refrigério intermédio" reservado para alguns dos mortos, escolhidos por Deus como merecedores de tratamento especial durante o período da sua morte e o momento do juízo final (The Birth of Purgatory, Ch.1, pp. 46-47).
Como Le Goff afirma acertadamente, estas orações (que dizes que são encontradas nas liturgias antigas) não refletem um pensamento no purgatório. Podia-se orar por "refrigerium", um refrigério de felicidade celestial. Para pôr isto dentro da tua perspetiva, as orações pelos mortos NÃO têm que ser engavetadas numa noção de "não teria sentido orar pelos mortos se fosse certo que eles já estivessem no céu, assim como não teriam necessidade de orações. Se eles estivessem no inferno, a oração não lhes poderia fazer nenhum bem” porque alguns na igreja primitiva ORARAM pelo refrigerium. De modo que, sim, pode-se ter orado pelos mortos na igreja primitiva SEM aderir a um conceito de purgatório.
Aqui estão alguns dos Padres da Igreja e o que eles têm a dizer sobre o Purgatório:
Antes de começarmos, deixa-me apenas dizer que eu reconheço que alguns padres sustentaram um ponto de vista que figurou na pré-história do Purgatório, mas estes são padres tardios. Padres mais antigos, como Tertuliano, falaram de um estado intermédio que era em natureza paradisíaco (como explicarei abaixo) e outros, como Agostinho, teorizaram a possibilidade, embora não tivessem firmes convicções a este respeito. O que é revelador de facto é a ausência de quaisquer escritos primitivos formalizando uma crença no purgatório. De resto, poderias ter adicionado onde encontrar estas citações. Tive que colocar cada uma num motor de busca, para descobrir de onde vinha a citação e encontrei-as citadas por uma multidão de websites católicos com o propósito de apoiar o purgatório.
Tertuliano (160-225AD) “Oferecemos sacrifícios pelos mortos[24] nos seus dias de aniversário" (211 AD)
"Uma mulher, depois da morte do seu marido…  ora pela sua alma e pede que ele possa, enquanto espera, encontrar descanso; e que possa participar na primeira ressurreição. E a cada ano, no aniversário da sua morte, ela oferece o sacrifício" (216 AD)
Tal como Le Goff mencionou na passagem acima, Tertuliano acreditava no refrigerium e não sustentou nenhum entendimento do purgatório. Nada na passagem que forneces alude a ele à luz do refrigerium. A escatologia de Tertuliano é algo semelhante ao que a Igreja Ortodoxa ensina, que a alma recebe uma antecipação da sua morada eterna. Os justos no seio de Abraão (ou um estado como esse) e os ímpios no inferno dos condenados (ver Lc 16:19-31), mas não há purgação na vida após a morte na escatologia de Tertuliano. Novamente, Le Goff afirma sobre Tertuliano (presta atenção especificamente ao quarto parágrafo, que acrescenta o contexto às citações que deste):
Um Africano que morreu algum tempo depois de 220, Tertuliano escreveu um breve tratado, hoje perdido, no qual afirmava  "que toda a alma estava confinada no Inferno até o dia [do juízo] do Senhor" (De anima 55,5). Esta foi uma adaptação da ideia de sheol do Antigo Testamento. Este outro mundo encontrava-se localizado debaixo da terra, e foi aqui que Cristo desceu por três dias (De anima 54,4).
Em “Contra Marcião” e “Sobre a Monogamia”, Tertuliano entra em detalhes sobre o outro mundo e apresenta o seu conceito de refrigerium. Marcião argumentou que não apenas mártires mas pessoas comuns justas eram admitidas no Céu ou Paraíso imediatamente depois da sua morte. Tertuliano, por outro lado, baseando a sua discussão na história de Lázaro e do homem rico, mantém que, enquanto aguardam a ressurreição, almas comuns justas residem, não no céu, mas num refrigerium interim, o seio de Abraão. Este lugar, o seio de Abraão, embora não no céu, e acima do inferno, oferece às almas dos justos um refrigério intermédio [refrigerium interim] até que o fim de todas as coisas traga a ressurreição geral e a recompensa final” (Adversus Marcionem 4.34). Até o fim dos tempos o seio de Abraão deve servir como "o recetáculo temporário das almas fiéis".
O pensamento de Tertuliano, de facto, permanece altamente dualista. Na sua opinião existem dois destinos contrastantes: a punição, que é expressa por palavras tais como tormento (tormentum), agonia (supplicum) e tortura (cruciatus), e recompensa, expressa pelo termo refrigério (refrigerium). Em dois lugares é afirmado que estes destinos são eternos.
Por outro lado, Tertuliano põe grande ênfase nas ofertas aos mortos no aniversário das suas mortes e declara que essas práticas piedosas podem ser baseadas na tradição e na fé ainda que não exista fundamento para elas na Escritura. (De um modo geral, com a exceção de Mateus 12:32 e 1 Coríntios 3:10-15 de Paulo, bases textuais para  a doutrina do Purgatório são praticamente inexistentes). Tertuliano escreve: "Fazemos oblações pelos falecidos no aniversário da sua morte ... Se procurares na Escritura por uma lei formal regendo estas e outras práticas similares,  não encontrarás nenhuma. É a tradição que as justifica, o costume que as confirma, e a fé que as observa" (De corona militis 3.2-3).
Em relação à pré-história do Purgatório, a inovação de Tertuliano, se é que foi uma inovação, foi ter o justo a passar um período de tempo no refrigerium interim antes de ir habitar no eterno refrigerium. Mas não há nada realmente novo acerca do lugar de refrigério, que ainda é o seio de Abraão. Entre o refrigerium interim de Tertuliano e o Purgatório existe uma diferença não só de género - para Tertuliano é uma questão de uma espera tranquila até ao Juízo Final, enquanto com o Purgatório é uma questão de um sofrimento que purifica porque é punitivo e expiatório  - mas também de duração: as almas permanecem no refrigerium até a ressurreição mas no Purgatório apenas o tempo que for preciso para expiar os seus pecados.
Tudo levado em conta, não existe purgatório na escatologia de Tertuliano. A citação que  usaste é enganosa à luz do quadro completo. Mas assumo que a tiraste de outro website.
São Cipriano de Cartago (escrito em 253AD) "A força do verdadeiro crente permanece inabalável, e com aqueles que temem e amam a Deus com todo seu coração, a sua integridade continua firme e forte. Até mesmo para adúlteros um tempo de arrependimento é concedido por nós, e paz é dada. No entanto, a virgindade não é por causa disso deficiente na Igreja, nem a concepção gloriosa da continência enfraquece pelos pecados dos outros. A Igreja, coroada com tantos virgens, floresce; e a castidade e a modéstia preserva o teor da sua glória. Nem é o vigor da continência diminuído por o arrependimento e o perdão ser facilitado ao adúltero. Uma coisa é pedir perdão; outra coisa, alcançar a glória. Uma coisa é estar prisioneiro sem poder sair até ter pago o último centavo; outra coisa, receber simultaneamente a coragem e o salário da fé. Uma coisa é ser torturado com longo sofrimento pelos pecados, para ser limpo e completamente purificado pelo fogo; outra coisa é ter sido purificado de todos os pecados pelo sofrimento. Uma coisa é estar em suspenso até que ocorra a sentença de Deus no Dia do Juízo; outra coisa é ser imediatamente coroado pelo Senhor".
De novo, Le Goff fala sobre isto: 
"Alguns autores têm creditado Cipriano com uma importante contribuição doutrinária para o Purgatório já em meados do século terceiro. Na sua Carta a Antoniano [Carta 51:20] Cipriano faz a distinção entre dois tipos de Cristãos: 'Uma coisa é esperar o perdão e outra coisa é chegar à glória; uma coisa é ser enviado para a prisão [no cárcere] para ser solto apenas quando o último centavo for pago e outra coisa é receber imediatamente a recompensa da fé e virtude; uma coisa é ser aliviado e purificado dos seus pecados através de um longo sofrimento no fogo e outra coisa é ter todas as suas falhas limpas pelo martírio; e é uma coisa ser enforcado pelo Senhor no Dia do Juízo e outra ser imediatamente coroado por ele.'... A refutação de Jay sobre a noção de que Cipriano propôs uma doutrina semelhante à do Purgatório parece-me bem fundamentada. Segundo Jay, o que está a ser discutido na carta a Antoniano é a diferença entre Cristãos que não resistem à perseguição (os lapsos e apóstatas) e os mártires. Não é uma questão de "purgatório" na vida após a morte, mas de penitência aqui em baixo. A referência à prisão não tem a ver  com o Purgatório, que ainda não existia, mas sim com a disciplina penitencial da Igreja". (The Birth of Purgatory, pp57-58)
São João Crisóstomo (347-407 AD) "Deixem-nos ajudar e comemorar. Se os filhos de Jó foram purificados pelo sacrifício de seu pai, por que deveríamos duvidar que as nossas ofertas pelos mortos lhes trazem alguma consolação? Não hesitemos em ajudar aqueles que morreram e em oferecer as nossas orações por eles".
Verifiquei de onde a passagem veio (Homilias sobre I Coríntios, 41:5) e não encontrei nada que trouxesse um contexto de purgatório à passagem. À luz dos outros padres, Crisóstomo pode estar a falar sobre outra coisa aqui. Tens mais alguma coisa dele para qualificar esta passagem de maneira diferente das outras?
Santo Agostinho (354-430AD) "Lemos no livro de Macabeus que o sacrifício foi oferecido aos mortos. Mas mesmo que não fosse encontrado em nenhum lugar nos escritos do Antigo Testamento, a autoridade da Igreja universal que é clara neste ponto não tem peso pequeno, onde, nas orações do sacerdote derramadas ao Senhor Deus em Seu altar, o louvor dos mortos tem seu lugar".
Citarei o meu amigo, Jason Engwer desta vez:
Agostinho é largamente considerado o pai do Purgatório. Os católicos romanos citam-no muitas vezes referindo-se a algo semelhante à moderna doutrina católica. Mas o que estes católicos não explicam é que Agostinho reconheceu que estava a especular. Em outras palavras, ele não estava a passar alguma tradição apostólica proferida de geração em geração em sucessão ininterrupta desde os apóstolos. Ao contrário, ele estava a especular sobre o que pode acontecer na vida após a morte. Jacques Le Goff explica:
"[Joseph Ntedika] pôs o dedo num ponto chave, mostrando não apenas que a posição de Agostinho evoluiu ao longo dos anos, o que era de se esperar, mas que passou por uma mudança acentuada num ponto específico no tempo, que Ntedika situa no ano 413 .... Na Carta a Dardinus (417), ele [Agostinho] esboçou uma geografia do além, onde não há lugar para o Purgatório". (The Birth of Purgatory [Chicago, Illinois: The University of Chicago Press, 1986], pp 62, 70).
Em outras palavras, as opiniões de Agostinho sobre o tema desenvolveram-se ao longo do tempo, e ele foi inconsistente. O historiador Protestante George Salmon explica o significado destes factos:
"Da mesma forma, quando Agostinho ouve a ideia sugerida de que, como os pecados dos homens bons lhes causam sofrimento neste mundo, então  também podem causar até certo ponto no próximo, diz que não vai arriscar dizer que nada do tipo não possa ocorrer, porque talvez possa. Bem, se a ideia de purgatório não tinha conseguido ir além de um "talvez" no início do século V, podemos dizer com segurança que não foi pela tradição que a Igreja mais tarde chegou à certeza sobre o assunto; pois, se a Igreja tivesse alguma tradição no tempo de Agostinho, esse grande Padre não podia ter deixado de conhecê-la" (The Infallibility of the Church [London, England: John Murray, 1914], pp. 133-134).
Aqui está um exemplo de Agostinho expressando a sua incerteza:
"E não é impossível que algo do mesmo tipo possa ocorrer mesmo depois desta vida. É uma matéria que pode ser investigada, e apurada ou deixada na dúvida, se alguns crentes devem passar por uma espécie de fogo purificador, e na proporção em que amaram com mais ou menos devoção os bens que perecem, ser mais ou menos rapidamente livres dele" (O Enchiridion, 69).
São Cirilo de Jerusalém (315-386AD) Então fazemos menção também dos que já dormem; em primeiro lugar, os patriarcas, profetas, apóstolos, e mártires, que por suas orações e súplicas, Deus receba a nossa petição. Depois, fazemos menção também dos santos padres e bispos que já dormem e, para pô-lo em forma simples, de todos entre nós que já dormem, pois acreditamos que isso será de grande benefício para as almas daqueles por quem a petição é feita, enquanto este santo e solene sacrifício é apresentado".
De novo, na melhor das hipóteses, esta citação poderá ser usada para transmitir que Cirilo acreditava que os que estão no céu oram por nós e que nós podemos orar por eles durante a celebração da Eucaristia. De novo, à luz dos outros padres anteriores a Cirilo, não podemos simplesmente assumir que estas orações são para aqueles que estão no purgatório.
Epifânio de Salamina (escrito em 375 AD)  "São úteis, com efeito, as orações que são feitas em seu favor, mesmo que não possam eliminar todas as suas culpas. E também é útil, porque neste mundo frequentemente tropeçamos voluntaria ou involuntariamente, e isto é um lembrete para fazermos melhor”.
Gostaria de ver isto num contexto mais alargado, antes de poder comentar. Parece-me que isto vem do seu Panarium, mas não consigo encontrá-lo em lado nenhum. Não sei por quem ele está a dirigir as orações. Apenas se afirma "em seu favor”. A quem se refere o pronome "seu"? Como sabes se é de um morto que se está a falar aqui? Talvez ele acreditasse numa purificação após a morte, ou talvez não. Não há nenhuma maneira de realmente saber.
São Gregório de Nissa, (escrito em 382 AD) "Se um homem distinguir em si o que é peculiarmente humano do que é irracional, e se ele estiver atento a uma vida de maior urbanidade para si mesmo, nesta vida presente purificar-se-á a si próprio de qualquer mal contraído, superando o irracional pela razão. Se ele tiver tendência para a pressão irracional das paixões, usando para as paixões a cooperação oculta das coisas irracionais, ele pode posteriormente de uma forma completamente diferente estar bastante interessado no que é melhor, quando, depois de sua partida do corpo, ele ganhar conhecimento da diferença entre a virtude e o vício, e descobrir que não pode participar da divindade até que seja purificado do contágio imundo na sua alma pelo fogo purificador" (Sermão sobre a Morte).
A mesma coisa acontece aqui. Não obstante, Orígenes e Clemente de Alexandria viveram no segundo e terceiro séculos. Eles propuseram a possibilidade de uma purificação após a morte. Há padres que viveram durante ou após este período que também buscaram esta possibilidade. De modo que, não é nenhuma surpresa ver a ideia do purgatório desenvolver-se inteiramente. Contudo, houve outros padres que contradisseram a ideia do purgatório. Novamente, cito o meu amigo, Jason Engwer e os seus comentários:
Clemente de Roma sempre refere que os Cristãos falecidos estão no céu. Ele repetidamente menciona esta noção, sem referência ao Purgatório. A Igreja Católica Romana acredita que “alguns” cristãos não têm que ir para o purgatório, mas como poderia Clemente de Roma e outros padres da igreja saber que uma pessoa foi capaz de evitar o Purgatório? Uma vez que eles não teriam tido esse conhecimento, a explicação mais provável para a sua referência aos Cristãos falecidos estarem no Céu parece ser que eles não tinham noção do Purgatório. Clemente escreve:
"Pedro, por injusta inveja, suportou não um ou dois, mas numerosos trabalhos e quando ele sofreu finalmente o martírio, partiu para o lugar de glória que lhe era devido .... Portanto foi ele [Paulo] removido do mundo, e entrou no lugar santo, tendo provado ser ele um notável exemplo de paciência… A estes homens que passaram as suas vidas na prática da santidade, há que acrescentar uma grande multidão dos eleitos, que, tendo por inveja suportado muitas indignidades e torturas, deram-nos mais um exemplo excelentíssimo. Por inveja, aquelas mulheres, Danaides e Dirces, sendo perseguidas, após terem sofrido terríveis e indizíveis tormentos, terminaram a carreira da sua fé com firmeza e, embora fossem fisicamente fracas, receberam uma nobre recompensa ... Abençoados os presbíteros que, tendo terminado a sua carreira até agora, obtiveram uma frutífera e perfeita partida deste mundo; porque eles não temem que alguém os prive do lugar agora lhes designado … Todas as gerações desde Adão até este dia já passaram; mas aqueles que, pela graça de Deus, foram aperfeiçoados em amor, possuem agora um lugar entre os piedosos, e serão manifestados na revelação do reino de Cristo" (Primeira de Clemente, 5-6, 44, 50).
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Gregório Taumaturgo parece não ter tido nenhuma noção do Purgatório. Como os Protestantes, ele se refere a dois reinos da vida após a morte, e não três, com todos os "homens bons" a irem para o Céu na morte:
"E o homem bom deve partir com alegria para a sua própria habitação eterna; mas o vil, deve ocupar o seu lugar com choro, e nem prata armazenada, nem ouro provado, terão mais qualquer utilidade. Porque um acidente poderoso cairá em cima de todas as coisas, até mesmo sobre o cântaro junto ao poço, e sobre a roda da vasilha que pode porventura ter sido deixada no buraco, quando o curso do tempo chegar ao seu fim e o período de estudo de uma vida que é como água tiver passado" (Uma Paráfrase do Livro de Eclesiastes, 12).
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Ireneu não acreditava na doutrina do Purgatório. Sabemos que Jesus foi para o Paraíso no dia da sua crucificação (Lucas 23:43), e Ireneu refere que todos os crentes vão para o mesmo lugar até o momento da ressurreição. Ele também identifica este lugar como o lugar onde Paulo foi em 2 Coríntios 12:2-4. Ireneu refere que todos os crentes vão para o Paraíso, que ele distingue do Céu, até ao momento da ressurreição. Como expliquei em relação a Papias, o Paraíso é simplesmente outra *região* a que os evangélicos se referem como "Céu". A terminologia de Ireneu é diferente da dos evangélicos, mas as suas definições são basicamente as mesmas, como é provado por suas referências a Jesus indo para este lugar e a sua referência a 2 Coríntios 12. O Catolicismo Romano diz-nos para rezar para que os Cristãos falecidos possam ser tirados de um lugar de sofrimento antes da ressurreição. Ireneu, por outro lado, refere que todos os cristãos falecidos estão no Paraíso, não num lugar de sofrimento, até a ressurreição:

"Portanto, também os anciãos que eram discípulos dos apóstolos nos dizem que aqueles que foram trasladados foram transferidos para esse local (porque o Paraíso foi preparado para os homens justos, aqueles que têm o Espírito; em cujo lugar também o apóstolo Paulo, quando foi preso, ouviu palavras que são indizíveis quanto a nós na nossa presente condição), e que aí devem os que foram trasladados permanecer até a consumação de todas as coisas, como um prelúdio para a imortalidade ... Pois como o Senhor foi ao meio da sombra da morte onde as almas dos mortos estavam, mas depois ressurgiu no corpo, e após a ressurreição foi elevado ao céu, é manifesto que também as almas dos Seus discípulos, por quem o Senhor passou estas coisas, irão para o lugar invisível lhes atribuído por Deus, e ali permanecerão até a ressurreição, esperando esse evento; então recebendo os seus corpos, e ressuscitando na sua totalidade, ou seja corporalmente, exatamente como o Senhor ressurgiu, eles chegarão assim à presença de Deus. “Porque nenhum discípulo está acima do Mestre, mas todo aquele que é perfeito será como o seu Mestre”. Como o nosso Mestre, portanto, não partiu logo para o céu, mas aguardou o momento da Sua ressurreição prescrito pelo Pai, que tinha sido também manifestada através de Jonas, e ressurgindo três dias depois foi elevado ao céu; assim devemos também aguardar o momento da nossa ressurreição prescrito por Deus e preanunciado pelos profetas, e assim, ressurgidos, sermos elevados, tantos quantos o Senhor considerar dignos deste privilégio" (Contra as Heresias, 5:5:1, 5:31:2).

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Justino Mártir contradisse a doutrina do Purgatório, não apenas ao referir que os remidos vão para um lugar melhor, mas também ao mencionar apenas duas regiões no além, e não três. Ele parece não ter noção das pessoas irem para um terceiro lugar, sendo depois transferidas para o Céu algum tempo antes do juízo:

"As almas dos piedosos permanecem num lugar melhor, enquanto as dos injustos e perversos estão num pior, esperando o momento do juízo" (Diálogo com Trifão, 5).

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Atenágoras rejeita a noção de Purgatório em favor dos crentes irem para o Céu quando morrem. Não apenas diz que os crentes vão para o Céu, mas menciona o Inferno como a única alternativa, sem mencionar qualquer Purgatório:

"Porque, se cremos que viveremos apenas a vida presente, então podemos ser suspeitos de pecar, sendo escravos da carne e sangue, ou vencidos pelo ganho ou desejo carnal; mas como sabemos que Deus é testemunha do que pensamos e do que dizemos tanto de noite e de dia, e que Ele, sendo Ele mesmo luz, vê todas as coisas em nosso coração, estamos convencidos de que quando formos retirados da vida presente vamos viver uma outra vida, melhor do que a presente, e celestial, não terrena (já que habitaremos junto de Deus, e com Deus, livres de todas as alterações ou sofrimento na alma, não como carne, apesar de termos carne, mas como espírito celestial), ou, caindo com o resto, uma pior e no fogo; pois Deus não nos fez como ovelhas ou animais de carga, uma mera mão-de-obra, e que devamos morrer e ser aniquilados“ (Apelo em favor dos Cristãos, 31).

Por que acreditaria eu num escritor que nasceu no século 20 e escreveu contra o purgatório? Prefiro antes colocar a minha fé no que os Antigos Padres da Igreja ensinaram.

Resposta: Porque estás a ser seletivo e a supor que esses padres estão a sugerir o purgatório, partindo da suposição de que um purgatório existe. E depois ainda supões que houve um consenso entre todos os padres sobre o purgatório, quando evidentemente não houve.

Quanto mais próximo da fonte, mais clara é a água.

É exatamente o meu ponto! Quanto mais perto estamos da igreja primitiva, mais percebemos a ausência de qualquer noção de purgatório. Foi a partir das especulações de Clemente de Alexandria que se começou a elaborar a noção de um sítio ou condição de purificação após a morte. A minha objeção é que o purgatório é uma doutrina baseada em conjeturas e sem apoio bíblico adequado.

Eu desafio o autor a refutar o que os Padres da Igreja disseram sobre o Purgatório.

Creio ter dado razão suficiente para mostrar que nenhum desses padres fala do purgatório. Tu simplesmente supões que falam. Os antigos padres não falam desse conceito, outros padres mais tardios não são exatamente claros sobre o que eles acreditam, alguns padres teorizaram o conceito, outros padres contradizem qualquer conceito de purgatório, e outros padres podem ter acreditado em algum tipo de purificação na vida após a morte, feita antes da ressurreição, mas não indicando como. O ponto principal é que os padres da Igreja acreditavam em todo o tipo de coisas e podem ser equiparados a qualquer escritor cristão, do passado e do presente, que nos cede as suas opiniões e reflexões. Eles não são infalíveis. O ponto principal é que tu só podes supor que eles estão a falar sobre o purgatório, sob a presunção de que já existe um purgatório. Isso tornou-se evidente na tua última frase.

CM

1 comentário:

  1. Uma nota sobre a citação acima de Cirilo de Jerusalém:

    “Então fazemos menção também dos que já dormem; em primeiro lugar, os patriarcas, profetas, apóstolos, e mártires, que por suas orações e súplicas, Deus receba a nossa petição. Depois, fazemos menção também dos santos padres e bispos que já dormem e, para pô-lo em forma simples, de todos entre nós que já dormem, pois acreditamos que isso será de grande benefício para as almas daqueles por quem a petição é feita, enquanto este santo e solene sacrifício é apresentado".

    Esta passagem é retirada da quinta, de cinco Catequeses Mistagógicas ANEXADAS ÀS OBRAS DE CIRILO DE JERUSALÉM, CUJA AUTORIA É QUESTIONADA.

    O editor de Fathers of the Church series escreve: «De novo, a Mystagogiae, quer como obra teológica quer literária, parece imprópria de Cirilo. Em comparação com as virtudes do batismo nas Catequeses Quaresmais, definidas num rico contexto de teologia bíblica, a Mystagogiae parece um pouco insípida e falha, assim como obscura. Estupefacção e exclamações de admiração tomaram o lugar da compreensão. Cirilo, por outro lado, empregava consideráveis recursos bíblicos e teológicos, a que correspondia um domínio notável da linguagem, um vocabulário muito rico e alguma imaginação. A dicção da Mystagogiae é, por comparação, indigente; eu deliberadamente, na minha tradução, deixei algumas das suas infelicidades não corrigidas.»

    Ver FC, Vol. 64, The Works of Saint Cyril of Jerusalem, (New York: Fathers of the Church, Inc., 1949), pp. 146-147.

    Portanto, esta citação não é de Cirilo de Jerusalém mas de um Pseudo-Cirilo, e nunca faz referência a um lugar ou estado chamado “Purgatório”.

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