segunda-feira, 29 de novembro de 2010

Como podem ser Apostólicos os protestantes se a(s) sua(s) igreja(s) não remonta nem aos últimos 700 anos?


A Igreja de Roma se preza de ser apostólica porque afirma ter uma sucessão ininterrupta de bispos que remonta ao primeiro século. Esta pretensão é totalmente falsa, para começar porque falta o primeiro elo da cadeia:

Não há evidência de que a Igreja de Roma tenha sido fundada pessoalmente por Pedro, nem que ele tenha sido o seu primeiro bispo.

Além disso, é falsa porque em muitas ocasiões o cargo foi disputado por dois ou mais contendentes, sem que claramente um deles represente a suposta "linha de sucessão".

E é falsa porque houve bispos de Roma que foram impostos ou apoiados pelo poder imperial.

E é falsa porque no século XV o concílio de Constança depôs três papas rivais e nomeou um quarto no seu lugar.

Portanto, simplesmente por razões históricas bem conhecidas, Roma não pode reivindicar para si uma "sucessão apostólica ininterrupta".

A única sucessão apostólica válida é a perseverança na doutrina dos Apóstolos tal como ela se expressa no Novo Testamento. Esta é a única prova necessária e suficiente da apostolicidade de uma congregação, tenha sido fundada há vinte séculos ou ontem. E com os acréscimos e distorções que fez à doutrina apostólica, Roma certamente também não cumpre este critério.

sábado, 27 de novembro de 2010

O cânon 28 de Calcedónia


No IV Concílio Ecuménico reunido em Calcedónia em 451, aprovou-se entre outros o seguinte cânon vigésimo oitavo:

Citação:

Seguindo em todas as coisas as decisões dos santos Padres, e reconhecendo o cânon, que acaba de ser lido, dos Cento e Cinquenta bispos amadíssimos de Deus (que se reuniram na cidade imperial de Constantinopla, a qual é a Nova Roma, em tempos do imperador Teodósio de feliz memória), nós também estabelecemos e decretamos as mesmas coisas concernentes aos privilégios da Santíssima Igreja de Constantinopla, que é a Nova Roma. Pois os Padres retamente concederam privilégios ao trono da velha Roma, porque era a cidade régia. E os Cento e Cinquenta religiosíssimos bispos, motivados pela mesma consideração, deram iguais privilégios (isa presbeia) ao santíssimo trono da Nova Roma, julgando justamente que a cidade que é honrada com a Soberania e o Senado, e goza de iguais privilégios com a antiga Roma imperial, devia em assuntos eclesiásticos também ser magnificada como ela é, e contada a seguir a ela, de modo que, nas dioceses do Ponto, da Ásia e da Trácia, os metropolitanos somente e os bispos também das dioceses referidas que haja entre os bárbaros, deviam ser ordenados pelo referido santíssimo trono da santíssima Igreja de Constantinopla; ordenando cada metropolitano das referidas dioceses, junto com os bispos da sua província, os seus próprios bispos provinciais, como foi declarado pelos divinos cânones; mas que, como se disse acima, os metropolitanos das dioceses mencionadas acima deviam ser ordenados pelo arcebispo de Constantinopla, depois das eleições apropriadas terem sido realizadas segundo o costume e terem sido comunicadas a ele.

Nicene and Post-Nicene Fathers, Second Series (= NPNF2). General Editors Philip Schaff, Henry Wace. Vol. 14, The Seven Ecumenical Councils. Volume Ed. Henry R. Percival. Grand Rapids: Eerdmans , Reprint 1988, p. 287.

Este cânon foi o último dos propostos na Sessão 16ª de 31 de outubro. Os legados papais se tinham retirado (apesar de não desconhecerem a proposta), mas apresentaram no dia seguinte, na última sessão, um protesto formal. O cânon permaneceu mesmo assim: tinha sido subscrito licitamente por quase duzentos bispos, entre os quais estavam os de sedes que podiam sentir-se menosprezadas pela decisão (Antioquia e Jerusalém). Diversas desculpas dos legados, que incluíram o apelo a um acréscimo romano a um cânon do Concílio de Niceia, foram rejeitadas pelo sínodo.

Os «Cento e Cinquenta religiosíssimos bispos» a que se alude foram os que participaram no II Concílio Ecuménico (Constantinopla, 381). O cânon terceiro de dito Concílio estabelecia:

Citação:

O bispo de Constantinopla, no entanto, terá a prerrogativa de honra depois do bispo de Roma; porque Constantinopla é a Nova Roma.

NPNF2 14:178

O Papa Leão Magno recusou-se a subscrever o cânon 28 de Calcedónia e não reconheceu o cânon 3 de Constantinopla sobre o qual aquele se baseava, com base em que nunca tinha sido enviado a Roma e que era uma violação da ordem nicena. A primeira coisa era provavelmente falsa, e a segunda o era com toda a certeza. O cânon sexto de Niceia (325) não dava uma ordem de honra, mas estabelecia certos privilégios para as sedes de Alexandria e Antioquia:

Citação:

Que prevaleçam os antigos costumes no Egipto, Líbia e Pentápolis, que o bispo de Alexandria tenha jurisdição em todas estas, já que o mesmo é habitual também para o bispo de Roma. De igual modo em Antioquia e nas outras províncias, que as Igrejas conservem os seus privilégios...

NPNF2 14:15

Contudo, em Roma e suas zonas de influência este cânon circulava com o acréscimo «A Igreja de Roma teve sempre a primazia».

Leão escreveu ao imperador Marciano (Ep. 104) e à imperatriz Pulquéria (Ep. 105) contra Anatólio, patriarca de Constantinopla, que segundo o Papa procurava apenas o seu próprio interesse. Entre outras coisas, argumentava que por mais que a cidade de Constantinopla fosse de categoria imperial, «todavia as coisas seculares levantam-se sobre uma base diferente que as coisas divinas» (Ep. 104, NPNF2 12:75). Contudo, é claro que o fundamento que se dá no cânon terceiro de Constantinopla, como no seu homólogo de Calcedónia, baseia-se tanto para Constantinopla como para Roma na sua categoria imperial, sem menção alguma da sua autoridade apostólica. Em bom português, concedem a estas cidades um lugar de honra por causa da sua importância como metrópoles.

Leão também escreveu uma dura reprovação ao próprio Anatólio (Ep. 106), o que explica o tom da resposta deste (Ep. 108). Na sua carta a Pulquéria, Leão não reconhece a autoridade dos mesmos bispos que aclamaram o seu Tomo no Concílio:

Citação:

Mas os assentimentos dos bispos, que se opõem às regulações dos santos cânones compostos em Niceia em conjunto com a sua fiel Graça, não os reconhecemos, e pela autoridade do bem-aventurado Apóstolo Pedro os anulamos absolutamente nos termos mais amplos, obedecendo em todos os casos eclesiásticos àquelas leis que o Espírito Santo estabeleceu pelos 318 bispos para a pacífica observância de todos os sacerdotes de tal sorte que mesmo se um número muito maior sancionasse um decreto diferente do deles, qualquer coisa que fosse oposta à constituição deles não mereceria nenhum respeito.

Ep. 105 (NPNF2 12:77)

O escrito dogmático de Leão tinha sido recebido pelo Concílio com expressões tais como "Por boca de Leão falou Pedro!" e "Leão fala como Cirilo!" (em referência a Cirilo de Alexandria, campeão da ortodoxia em Éfeso, 431), e da elogiosíssima e quase aduladora carta que os orientais lhe dirigiram (Ep. 98). No entanto, os seus inflamados protestos contra o cânon 28 não tiveram nenhum resultado sobre os orientais. A sede romana tinha um lugar de honra entre os cinco patriarcados que incluíam também Constantinopla, Alexandria, Antioquia e Jerusalém, mas não podia mudar a decisão de um Concílio Geral.

Citação:

Os Padres Conciliares receberam a leitura do documento de Leão com entusiasmo, declarando que «Pedro tinha falado através de Leão». Isto não era mais do que o que Leão acreditava acerca de todas as declarações papais ... Os bispos em Calcedónia, porém, não faziam tal suposição. Eles reconheciam a especial dignidade e a honra da sede apostólica, mas não supunham por isto que qualquer coisa que dissesse o seu bispo devia ser verdade, e parecem ter acreditado que nesta particular ocasião Pedro tinha falado por meio de Leão. Eles adotaram a solução dele ao problema, portanto, não meramente porque era sua, mas porque a julgaram verdadeira. Para sublinhar isto, no cânon 28 do Concílio reafirmaram o ensino do Concílio de Constantinopla, de que Constantinopla tinha precedência depois de Roma, «porque é a Nova Roma».

Eamon Duffy, Saints and Sinners: A History of the Popes. New Haven: Yale University Press, 1997, p. 35.

Numa atitude escandalosa, Leão demorou por dois anos a sua ratificação dos cânones dogmáticos de Calcedónia – ratificação que era esperada de todos os bispos, e particularmente dos patriarcas - por causa do aborrecido cânon 28. Também os seus sucessores imediatos não admitiram reconhecer a Constantinopla, a «Nova Roma», a condição de segunda sede em honra.

Não obstante, os tempos mudam e com eles as prioridades.

Citação:

No Oitavo Concílio Geral em 869 [IV Constantinopla] os legados romanos (Mansi, XVI, 174) reconheceram Constantinopla como segunda na categoria patriarcal. Em 1215, no IV Concílio Laterano (op. cit., XXII, 991), isto foi formalmente admitido para o novo patriarca latino, e em 1439, no Concílio de Florença, para o patriarca grego (Hefele-Leclercq, Hist. des Conciles, II, 25-27).

The Catholic Encyclopedia, vol. 4 (1908), s.v. Constantinople, First Council of.

De modo que apesar de toda a argumentação de Leão e do recurso à sua «autoridade apostólica», por fim, inclusive a Igreja de Roma acabou assentindo o estabelecido pelos Concílios I de Constantinopla e de Calcedónia.

Concluo com um comentário de Karl Joseph Hefele (1809-1893), a maior autoridade católica do século XIX em matéria de história conciliar:

Citação:

Isto é, a prerrogativa atribuída à Igreja de Constantinopla é, apesar da oposição do legado romano, decretada pelo sínodo. Assim terminou o Concílio de Calcedónia depois de ter-se estendido por três semanas.

Não posso entender como é possível, depois de ler as atas precedentes, imaginar-se sequer por um instante que os bispos deste Concílio considerassem os direitos em discussão como de origem divina, e que o ocupante da Sede de Roma fosse, jure divino, supremo sobre todos os pontífices. É bem possível, claro está, afirmar, como alguns fizeram, que as atas tais como as temos foram mutiladas, mas o argumento implica não só muitas dificuldades mas também não poucos absurdos; e não obstante não posso senão pensar que até esta hipótese extrema é preferível a qualquer tentativa de reconciliar as atas como as temos agora com a aceitação por parte dos membros do concílio da doutrina de uma supremacia papal jure divino tal como é agora sustentada pela Igreja Latina.

Hist Conc 3:428 (citado em NPNF2, 14:295).

segunda-feira, 15 de novembro de 2010

Quem é Maria?


Maria (Miriam) é a bem-aventurada jovem hebreia a quem Deus, por pura graça, escolheu para que fosse a mãe do Messias. Segundo a Bíblia, o anjo Gabriel anunciou a Maria esta singular eleição, e o modo em que, pelo poder do Espírito Santo de Deus, sem intervenção de varão, ela haveria de conceber (Mateus 1:18-21; Lucas 1:26-38).

Maria é uma verdadeira crente que foi obediente a Deus e deu à luz Jesus o Messias, ou Cristo, sem ter tido até então relações sexuais com seu esposo José (Isaías 7:14; Mateus 1:22-25).

Maria pode corretamente ser chamada a mãe de Deus pois o seu primogénito Jesus foi "Deus connosco" (Mateus 1:23). Claro está que ela não gerou o Verbo eterno, a segunda Pessoa da Trindade, o Filho único de Deus; mas Jesus, o ser que nasceu de Maria, era tanto Deus como homem.

Embora a expressão exata "a mãe de Deus" não apareça na Bíblia, em Lucas 1:43 lemos que Isabel, cheia do Espírito Santo, disse a Maria: "Quem sou eu para que venha visitar-me a mãe do meu Senhor?". Em todo o primeiro capítulo de Lucas, a palavra "Senhor" se utiliza como sinónimo de "Deus", de modo que a pergunta de Isabel é um testemunho claro da divindade de Jesus Cristo (ver também João 1:1; 20:28; Romanos 9:5; Hebreus 1:8; Tito 2:13).

Maria foi um modelo de esposa, de mãe e de crente. A sua fé e a sua obediência são um exemplo perpétuo para todos os cristãos. Isto é mostrado desde o princípio: Depois do anjo lhe ter anunciado o propósito de Deus ela exclamou: "Eu sou a serva do Senhor; que Deus faça comigo como me disseste" (Lucas 1:38). E depois de ser saudada pela sua prima Isabel, Maria deu a glória a Deus: "A minha alma louva a grandeza do Senhor; o meu espírito se alegra em Deus meu Salvador. Porque Deus pôs os seus olhos em mim, sua humilde serva, e desde agora sempre me chamarão ditosa" (Lucas 1:46-48).

Maria levou uma vida de oração e de meditação (Lucas 2:19). Nas bodas de Caná, ela disse aos serventes que obedecessem a Jesus: "Fazei tudo o que ele vos disser" (João 2:5). Sem dúvida ela orou pelo ministério público de Jesus, embora somente seja mencionada no princípio de tal período e no final deste, no Calvário (Marcos 3:31, João 19:25). A última vez que é nomeada na Bíblia, a encontramos orando com os demais discípulos. Quem tenha lido o Novo Testamento sabe bem que, fora desta menção em Atos 1:14 Maria somente é mencionada nos Evangelhos, e sempre em relação com a obra de Jesus Cristo. Paulo é o único apóstolo que, num contexto obviamente cristológico, alude a ela numa das suas cartas, e não menciona o seu nome: "...Deus enviou o seu Filho, que nasceu de uma mulher..." (Gálatas 4:4).

Consequente com o seu interesse central na pessoa e na obra de Cristo, o NT não nos informa absolutamente nada sobre a vida da bem-aventurada Maria antes da concepção de Jesus, nem depois de Pentecostes. Não nos diz como se chamaram os seus pais, se teve irmãos, nem onde, como e em que idade faleceu Maria.

Como não desejamos ir além do que Deus revelou na Sua Palavra, não podemos subscrever as seguintes doutrinas.

1. Que por uma graça especial de Deus a bem-aventurada Maria tenha sido completamente livre de pecado desde a sua concepção.

"...declaramos, proclamamos e definimos que a doutrina que sustenta que a beatíssima Virgem Maria foi preservada imune de toda a mancha da culpa original no primeiro instante da sua concepção por singular graça e privilégio de Deus omnipotente, em atenção aos méritos de Cristo Jesus Salvador do género humano, foi revelada por Deus e deve portanto ser firme e constantemente crida por todos os fiéis..." (Pio IX, Bula Ineffabilis Deus, 8 de dezembro de 1854)[1]

À diferença da concepção milagrosa de Jesus, a denominada imaculada concepção de Maria não tem fundamento bíblico. Pior ainda, contradiz o claro ensino apostólico que estabelece que o único sem pecado foi nosso Senhor Jesus Cristo (Hebreus 4:15; ver também 1 Pedro 2:22). Dos restantes declara o Apóstolo Paulo: "todos pecaram e estão longe da presença salvadora de Deus" (Romanos 3:23). As próprias palavras de Maria indicam que ela também se encontrava nesta triste condição, da qual teve de ser resgatada pela graça de Deus (Lucas 1:28, 47).

2. Que a bem-aventurada Maria tenha permanecido sempre virgem, tanto antes, como durante, como depois de dar à luz Jesus.

"O aprofundamento da fé na maternidade virginal levou a Igreja a confessar a virgindade real e perpétua de Maria (cf DS 427) mesmo no parto do Filho de Deus feito homem (cf DS 291; 442; 503; 571; 1880). Com efeito, o nascimento de Cristo «não diminuiu, antes consagrou a integridade virginal» da sua Mãe (LG 57). A liturgia da Igreja celebra Maria como a "Aeiparthenos", a «sempre Virgem» (cf LG 52) ... Maria «foi Virgem ao conceber o seu Filho, Virgem no parto, Virgem depois do parto, Virgem sempre» (S. Agostinho, serm. 186,1); com todo o seu ser; ela é a «serva do Senhor» (Lc 1, 38)". (Catecismo da Igreja Católica, 499 e 510) [2]

O que a Bíblia claramente ensina é que ela era virgem ao conceber, e que permaneceu em tal condição até ao nascimento de Jesus (Mateus 1:25). Embora a concepção de Jesus tenha sido um milagre operado pelo poder do Espírito Santo, parece claro que a gravidez e o parto foram completamente normais. Não se menciona nenhum milagre ligado a eles (Mateus 1:25; Lucas 2:6-7).

Nada há nas Escrituras que afirme, implique ou exija a perpétua virgindade de Maria. Pelo contrário, o NT menciona em várias ocasiões os "irmãos e irmãs" de Jesus (Mateus 12:46-47; 13:56; Marcos 3:31-32; Lucas 8:19-20; João 2:12; 7:3-10; Atos 1:14; 1 Coríntios 9:5). Quem eram eles?

Antes de considerar diversas explicações, recordemos que a palavra grega adelphos, irmão, se refere primariamente a filhos da mesma mãe ou pai; por exemplo, Mateus 1:2,11; 4:18; Lucas 3:1,19; João 1:40. Secundariamente pode aludir a parentes próximos [Génesis 13:8], a vínculos raciais ou nacionais (Atos 2: 29,37; Romanos 9:3), ou espirituais e religiosos (Mateus 18:15; Romanos 1:13). Ora bem, entender a expressão "os irmãos" de Jesus neste último sentido é impossível, pois eles são claramente distinguidos dos discípulos: "Depois disto, [Jesus] desceu a Cafarnaum, acompanhado da sua mãe, seus irmãos e seus discípulos" (João 2:12). Por outro lado, durante o ministério terrenal de Jesus os seus irmãos não criam n`Ele (João 7:5). Consideremos pois outras explicações.

A) Os irmãos e irmãs de Jesus eram filhos de um matrimónio anterior de José.

Segundo esta noção, que é a explicação oficial da Igreja Ortodoxa Grega, José era um velho viúvo quando se casou com Maria. No entanto, estes supostos irmãos mais velhos nunca são mencionados nas narrações da infância de Jesus, e por outro lado Lucas 2:23 diz que Jesus foi o primogénito da família, ou seja, o filho mais velho.

B) Os irmãos eram parentes próximos, por exemplo, primos.

Esta é a explicação corrente da Igreja Católica Romana, e tem em seu favor o uso habitual do vocábulo hebreu ah (e o seu correspondente arameu aha), irmão, no sentido de parente. No entanto, esta opinião tem vários pontos fracos.

Em primeiro lugar, não há nenhum exemplo claro deste uso no Novo Testamento.

Em segundo lugar, nenhuma das listas de irmãos que incluem nomes próprios mencionam o parente mais famoso de Jesus, ou seja o seu primo João o Baptista.

Em terceiro lugar, parece decisivo que os Evangelistas, que escreveram em grego, fazem sempre uma cuidadosa distinção entre um parente e um irmão em sentido próprio. Assim, o anjo Gabriel chama Isabel, a prima de Maria, sua "parenta" [grego syngenis] e não sua "irmã" (Lucas 1:36). Segundo Marcos 6:4, Jesus disse: "Em todos os lugares se honra um profeta, menos na sua própria terra, entre os seus parentes [grego syngeneus] e na sua própria casa [o núcleo familiar, pais e irmãos]". Também pode ver-se Lucas 14:12 e 21:16.

Se os Evangelistas quisessem referir-se aos familiares de Jesus e não aos seus irmãos e irmãs carnais, com toda a probabilidade teriam usado o termo grego usual, como faz Lucas em 1:58 e 2:44. Em vez disso, e sem nenhuma aclaração, escreveram uniformemente "irmãos" [adelphoi].

C) Os irmãos e irmãs de Jesus eram filhos da mesma mãe.

Esta é a explicação mais natural e evidente, e os que a rejeitam o fazem por considerações dogmáticas e não pelos dados escriturais. Contrariamente ao que por vezes se insinua, esta opinião não menospreza de modo nenhum a bem-aventurada Maria, uma vez que para os hebreus a fertilidade era um sinal de bênção divina.

Esta óbvia explicação tem sido objetada com o argumento de que os irmãos de Jesus citados pelo nome em Mateus 13:55 e Marcos 6:3, ou seja Tiago, José, Judas e Simão, eram filhos de outras mulheres. Tal objeção se baseia no facto de que outras mulheres que são mencionadas no NT terem filhos com os mesmos nomes; ver por exemplo Mateus 27:56; 28:1; Marcos 10:35 com Mateus 20:20; Lucas 24:10. No entanto, nos tempos de Jesus todos estes nomes eram muito comuns, o que torna impossível provar que se trata das mesmas pessoas.

Outra objeção é que Tiago, o irmão do Senhor (ver Atos 12:7; 15:13) teria sido a mesma pessoa que Tiago o Menor, um dos Doze Apóstolos, e portanto não um filho de Maria. Esta ideia se baseia em Gálatas 1:19 onde Paulo chama "apóstolo" a Tiago, o irmão do Senhor (nesta opinião quiçá um primo). No entanto, é um facto que Paulo chamou "apóstolos" a cristãos que certamente não pertenciam ao grupo dos Doze, como por exemplo Andrónico e Júnias (Romanos 16:7). A palavra grega apostolos significa "enviado" e parece que São Paulo a utilizou num sentido mais amplo. Em 1 Coríntios 15:5-7, Paulo nomeia primeiro Cefas (Pedro) e os Doze, e depois, como se fosse um grupo diferente de cristãos, "Tiago e todos os apóstolos". O facto de a um dos Tiagos que são mencionados no Evangelho se chamar "o Menor" (ou "o Pequeno", ou "o Baixinho") não implica de modo algum que só houvesse dois Tiagos.

De qualquer modo, o que resulta definitivo e concludente é que os chamados "irmãos do Senhor" não eram discípulos seus antes da Ressurreição: Compare-se João 7:5, "Porque nem mesmo os seus irmãos criam nele" com Atos 1:14, "Todos eles se reuniam sempre para orar com algumas mulheres, com Maria, a mãe de Jesus, e com os seus irmãos".

Outra objeção à opinião que sustentamos é que se Jesus tivesse tido irmãos, teria encomendado a eles o cuidado da sua mãe. Um momento de reflexão nos permitirá dar conta de que o mesmo se aplica aos seus outros supostos parentes: poderia ter encomendado o cuidado de Maria a algum dos seus primos.

No entanto, para Jesus o parentesco mais importante era o espiritual. "Todo aquele que faz a vontade de Deus, esse é meu irmão, minha irmã e minha mãe" (Marcos 3:35). "Uma mulher da multidão exclamou: Feliz é a mulher que te deu à luz e te amamentou! Ele respondeu: Antes, felizes são aqueles que ouvem a palavra de Deus e lhe obedecem!" (Lucas 11:27-28). Obviamente, Jesus teve mais confiança no seu discípulo do que nos seus irmãos carnais.

3. Que a bem-aventurada Maria seja a mãe universal de todos os crentes

"Ou seja, que ela, pelo facto de ter dado à luz o Redentor do género humano, é também, de certo modo, mãe benigníssima de todos nós, a quem Cristo Senhor quis ter por irmãos. «Tal – diz nosso predecessor de feliz memória, Leão XIII - no-la deu Deus, que pelo facto de tê-la escolhido para mãe de seu Unigénito, lhe infundiu sentimentos verdadeiramente maternais ... ; tal, com o seu modo de operar, no-la mostrou Jesus Cristo, ao querer estar voluntariamente submetido e obedecer a Maria como filho à sua mãe; tal no-la proclamou desde a cruz, quando no discípulo João encomendou ao seu cuidado e amparo todo o género humano [João 19,26s]; tal, finalmente, se deu ela mesma, quando ao abraçar generosamente aquela herança de imenso trabalho que seu filho moribundo lhe deixava, começou imediatamente a cumprir todos os seus ofícios de mãe»." (Pio XI, Encíclica Lux veritatis de 25 de dezembro de 1931[3]; ver Concilio Vaticano II, Lumen Gentium 61-63 e Catecismo da Igreja Católica, 964-970).

Que Santa Maria fosse a mãe de Jesus na ordem terrenal não implica que seja a sua mãe, e por extensão a nossa, também na ordem sobrenatural. Uma vez que Maria foi uma criatura que necessitou da redenção tanto como qualquer ser humano desde Adão em diante, na realidade na ordem da salvação esta "serva do Senhor" é uma irmã mais nova de Jesus Cristo o Salvador, e uma filha adotiva do Pai celestial (veja-se Hebreus 2:10-18; João 1:12-13).

Enquanto padecia na cruz, Jesus disse à sua mãe, referindo-se ao seu discípulo amado, (provavelmente o apóstolo João), "Mulher, aí tens o teu filho" e ao discípulo, "Aí tens a tua mãe" (João 19:25-27). Estas palavras mostram a terna provisão de Jesus para a sua mãe, e implicam um encargo íntimo e familiar, feito pessoalmente a um dos discípulos e não a todos eles. Isto provavelmente se deveu a que este era o único deles que esteve presente no Calvário, e talvez também ao particular afeto que Jesus sentia por ele.

Além disso, do contexto fica claro que era Maria quem necessitava do cuidado do discípulo, não ao contrário. O mesmo texto nos diz que ele honrou o encargo do Senhor, tomando ao seu cuidado a idosa e presumivelmente viúva Maria: "Desde aquela hora, o discípulo a recebeu em sua casa".

4. Que a bem-aventurada Maria tenha ascendido ao céu em corpo e alma

"... proclamamos, declaramos e definimos ser dogma divinamente revelado: Que a Imaculada Mãe de Deus, sempre Virgem Maria, cumprido o curso de sua vida terrestre, foi assunta em corpo e alma à glória celestial." (Pio XII, Constituição Apostólica Munificentissimus Deus, 1 de novembro de 1950[4]; veja-se Catecismo da Igreja Católica, # 966, 974).

Estamos seguros de que a alma de Maria, como a de todo crente, está na presença gloriosa de Deus (veja-se por exemplo Lucas 23:43; 2 Coríntios 5:1-10; Filipenses 1:21-23; Apocalipse 6:9-11; 7:9). Uma vez que a Bíblia não diz nem uma palavra a este respeito, não é possível em contrapartida afirmar que a bem-aventurada Maria tenha ascendido em corpo e alma ao céu.

Também não pode afirmar-se terminantemente que isto seja impossível, já que existem indicações bíblicas de que no passado Deus concedeu tal privilégio a Enoque e a Elias (veja-se Génesis 5:24 e 2 Reis 2:11) e, portanto, não é inconcebível que o tivesse concedido também a Maria. No entanto, o Novo Testamento não diz absolutamente nada sobre este tema, e tal silêncio nos impede de afirmar esta doutrina.

5. Que possa pedir-se à bem-aventurada Maria o que a Bíblia ensina a pedir a Deus através de Jesus Cristo

"E esta maternidade de Maria perdura sem cessar na economia da graça ... Pois uma vez assunta aos céus, não deixou o seu ofício salvador, mas continua a alcançar-nos por sua múltipla intercessão os dons da eterna salvação. Por seu amor materno cuida dos irmãos de seu Filho que peregrinam e se debatem entre perigos e angústias e lutam contra o pecado até que sejam conduzidos à pátria feliz. Por isso, a bem-aventurada Virgem na Igreja é invocada com os títulos de Advogada, Auxiliadora, Socorro, Mediadora. O que, no entanto, se entende de maneira que nada tire nem acrescente à dignidade e eficácia de Cristo, único Mediador." (Concilio Vaticano II, Lumen Gentium, 62[5]; veja-se o Catecismo da Igreja Católica, # 969, 975).

As Escrituras ensinam claramente que existe um único Senhor, Salvador e Sumo Sacerdote, que é o Senhor Jesus Cristo.

"E há também um só Senhor, Jesus Cristo, por quem todas as coisas existem e nós também" (1 Coríntios 8:6)

"Em nenhum outro há salvação, porque em todo o mundo Deus não nos deu outra pessoa pela qual nos possamos salvar" (Atos 4:12).

Não há dúvida que podemos orar uns pelos outros, mas quando se trata da mediação celestial, nada nem ninguém pode substituir ou complementar o ministério de Jesus Cristo:

"no templo celestial ... Jesus entrou como nosso precursor, tornando-se Sumo Sacerdote para sempre" (Hebreus 6:20).

Este único Senhor, Salvador e Sumo Sacerdote é também o único Advogado e Mediador em quem somos chamados a depositar toda a nossa esperança:

"Meus filhinhos, eu vos escrevo estas coisas, para que não pequeis; e se alguém pecar, temos um Advogado para com o Pai, Jesus Cristo, o justo" (1 João 2:1).

"Porque há um só Deus, e também um só mediador entre Deus e os homens, Cristo Jesus, homem" (1 Timóteo 2:5).

O facto de termos um profundo amor, uma enorme admiração e um reverente respeito por Maria não implica que esqueçamos que ela não é, nem nunca poderia ser, tão boa como Jesus, nem mais sábia que Ele, nem tampouco pode possuir, como Jesus possui, os atributos divinos de omnipotência e omnipresença. Jesus pode ouvir, e ouve, todas e cada uma das nossas orações. Também tem o poder de mediar perante o Pai e dar a resposta divina a elas. Isto é algo que jamais poderia ser concedido a alguma criatura, nem sequer aos anjos.

Com todo respeito, não vemos absolutamente nenhuma razão para depositar a nossa confiança nesta santa mulher que – como ela própria seria a primeira a reconhecer – não é tão boa, nem tão sábia, nem tão poderosa como Jesus Cristo. A bem-aventurada Maria deu-nos um grande exemplo ao confiar primeiro em Deus (Lucas 1:38) e depois em Jesus, o Filho de Deus (João 2:22). Como o fez Maria, devemos deixar operar na nossa vida o Espírito Santo; só assim poderemos compreender cabalmente as coisas de Deus (1 Coríntios 2:6-16).


Notas

1. Enrique Denzinger, O Magistério da Igreja. Manual dos Símbolos, Definições e Declarações da Igreja em Matéria de Fé e Costumes (versão de D. Ruiz Bueno; Barcelona: Herder, 1963, p. 385-386).
2. Edição Livraria João Paulo II: Santo Domingo, 1993, p. 118-119. DS = Denzinger, o.c.; LG, Lumen Gentium (Concilio Vaticano II).
3. Denzinger, o.c., # 2271, p. 572-573.
4. Denzinger, o.c., # 2333, p. 613.
5. Vaticano II – Documentos conciliares. Buenos Aires: Edições Paulinas, p. 85-86.


Nota adicional sobre o significado do nome Maria:

De uma revisão sumária de diversas obras se depreende que não está clara a etimologia, nem, por conseguinte, o significado, do nome "Maria" (hebreu miryam).

Segundo o Vocabulário de Teologia Bíblica (Dir. X. Leon-Dufour; Barcelona: Herder, 1985) significava em arameu 'senhora' ou 'princesa', embora tal afirmação não seja documentada. De qualquer modo, no seu livro "Jesus o judeu" (Barcelona: Muchnik, 1977, pp. 117-130), Geza Vermes trata do título 'mar' como equivalente do grego 'kyrios', senhor, forma respeitosa de dirigir-se a alguém  importante. 'Mar' forma parte da palavra 'Maranatha'.

O Novo Dicionário Bíblico (Dir. J.D. Douglas e N. Hyllier. Buenos Aires: Certeza, 1991) diz que há uma 'ténue possibilidade' de que derive do egípcio marye, 'amada.'

A International Standard Bible Encyclopedia (Dir. G.W. Bromiley; Grand Rapids: W.B. Eerdmans, 1986) dá como possíveis significados (1) 'amada', da raiz egípcia mr ; (2) 'amada de Yahveh' (mr + yw/m); (3) 'roliça', de meri' ou (4) amarga, amargura, de mar.

Também poderia derivar de meri, rebelião.

O fim do discurso é que dada a incerteza acerca do significado do nome, não parece sensato construir algum argumento a partir de um dos supostos significados.
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