terça-feira, 28 de setembro de 2010

Breve História da Judeofobia no Ocidente antes da Reforma


Nota prévia

Na época da Reforma a posição protestante em relação aos judeus não era uniforme, e as opiniões de Lutero não eram nem são subscritas pela maioria dos protestantes. Em honra da verdade, é necessário reconhecer que Martinho Lutero evoluiu para uma posição francamente judeofóbica.
 
De nenhum modo podemos subscrever as opiniões do Dr. Martinho Lutero acerca dos judeus. Não se defende a fé com a idealização de algum personagem. Lutero teve os seus erros, alguns graves, e é bom reconhecê-los para não repeti-los.
 
De qualquer modo, para que ninguém se engane no sentido de que Lutero tivesse sido o iniciador e não um herdeiro da intolerância contra os judeus, eis aqui esta síntese.
 
Como se poderá constatar, chamo ao ódio, ressentimento ou preconceito contra os judeus judeofobia e não antissemitismo. Este último termo, cunhado por um inimigo dos judeus, elude a verdadeira natureza do problema que não é basicamente racial.
 
Na Europa Medieval
 
Depois da ascensão de Constantino ao trono imperial romano em 312, os judeus começaram a ser excluídos de cargos públicos e outras dignidades. Os seus privilégios foram restringidos, a jurisdição dos rabinos foi limitada, desincentivaram-se as relações estreitas com os cristãos, e proibiu-se o proselitismo judaico, ao mesmo tempo que se incentivava a pregação cristã e a conversão a esta fé...
 
De qualquer modo, na primeira parte da Idade Média judeus e cristãos conviveram sem grandes dificuldades, apesar da legislação discriminatória de vários concílios eclesiásticos: a judeofobia estava principalmente restrita a certos setores do clero ...
 
... as relações entre europeus judeus e cristãos eram amistosas, especialmente entre o povo. Isto era a tal ponto verdade, que o clero começou a ver com preocupação que alguns cristãos prestavam mais atenção à prédica dos rabinos do que à dos sacerdotes cristãos.
 
Uma exceção à convivência tranquila foi o reino visigodo de Espanha, que ao princípio impulsionou a conversão (633) e depois a escravidão dos judeus e a proscrição do judaísmo (694-711). Perante esta situação, muitos judeus fugiram para o califado árabe estabelecido na península ibérica.
 
Os problemas sérios dos judeus europeus começaram com a inauguração do segundo milénio. Em 1012 o imperador Henrique II ordenou a expulsão dos judeus da cidade de Mainz. Também houve expulsões em várias cidades francesas.
 
Muito mais grave, no entanto, foram as atrocidades ocorridas como consequência das Cruzadas. Alguns dos cruzados, especialmente do populacho, viam os judeus europeus como detestáveis inimigos da cruz. Por conseguinte, empreenderam a sua «guerra santa» em terreno europeu, matando indefesos judeus em sangrentos episódios que não trouxeram mais do que desonra e vergonha para a santa Cruz do Nazareno. A primeira matança teve lugar em Rhineland em 1046, e se lhe seguiram várias outras (1146, etc).
 
No século XII, as transformações económicas da sociedade europeia tornaram necessários os empréstimos e créditos com juros. Como esta atividade não era considerada lícita para cristãos, autorizou-se o seu exercício por parte dos judeus, porque alguém tinha de fazê-la e, de qualquer modo, as almas dos judeus já se davam por perdidas!
 
Os judeus fizeram muito bem o seu trabalho. O seu desempenho no antipático ofício de prestamistas e usurários foi levado a cabo com a autorização e o beneplácito dos governantes e da Igreja romana. No entanto, mais tarde usou-se a idoneidade dos judeus nestas áreas como alimento para nutrir a judeofobia, especialmente quando o surgimento de grupos de fortes banqueiros italianos permitiu aos europeus prescindir dos prestamistas judeus.
 
Calúnias populares
 
É nesta época que apareceram uma série de acusações caluniosas contra os judeus, que serviria como justificativa para medidas discriminatórias. Popularizou-se a ideia de que os judeus diferiam fisicamente das outras pessoas, e que tinham atributos satânicos, incluído o chamado foetor judaicus, ou fedor judaico, que se opunha ao cheiro de santidade próprio dos cristãos. Certas calúnias tornaram-se populares, e foram aceites como factos comprovados pela maior parte da população europeia.
 
O libelo de sangue é a lenda segundo a qual os judeus tinham uma insaciável sede de sangue cristão. O primeiro libelo de sangue da Idade Média ocorreu em Norwich (Inglaterra) no ano 1144. Segundo se dizia, uma criança cristã tinha sido sequestrada, torturada e assassinada por uns judeus no dia de sexta-feira santa. Rapidamente as acusações se multiplicaram: em Gloucester (1168), em Blois (1171), em Saragoça (1182), em Fulda (1235), etc. As Siete Partidas espanholas de 1263 repetiam a acusação assim: "Ouvimos dizer que em certos lugares, na Sexta-Feira Santa, os judeus roubam crianças e as crucificam com mofa".
 
Um tal Simão de Trento, cujo único e duvidoso mérito era o de ter sofrido o martírio às mãos dos judeus em 1475, foi beatificado e permaneceu no santoral romano até 1965.
 
Tudo isto soa hoje incrível ou ridículo, mas no seu tempo custou os bens, a honra e até a vida de muitos judeus, como os assassinados em 1286 na matança de Munique. O caso da Criança de la Guardia, no qual judeus conversos confessaram sob tortura ter sacrificado uma criança com o conhecimento do Grande Rabino, foi um importante antecedente para a expulsão dos judeus sefarditas (1492).
 
A profanação da hóstia
 
Pouco depois da definição dogmática da transubstanciação no IV Concílio de Latrão (1215) começou-se a acusar os judeus de roubar hóstias consagradas, com o propósito de profaná-las, para humilhar Cristo. Por muito difícil que seja para nós hoje imaginar os judeus a arriscar as suas vidas para furtar hóstias com o único fim de blasfemar contra Jesus Cristo, a patranha foi crida até ao século XIX.
 
A primeira denúncia de profanação da hóstia ocorreu na cidade alemã de Belitz, em 1243. Como resultado, vários judeus morreram na fogueira. Outros casos notáveis tiveram lugar em Paris (1290), Deggendorf (1337), Bruxelas (1370) e Segóvia (1415). Também vale a pena mencionar a tragédia de Knoblauch de 1510. Até 1836 pelo menos houve acusações neste sentido.
 
A lenda do judeu errante
 
Era uma espécie de alma penada, que às vezes era identificada com o oficial do templo que esbofeteou Jesus. Justamente castigado por sua falta, o Judeu Errante era o arquétipo do povo judeu, sem pátria nem lar. Parece que a lenda surgiu em Bolonha no século XIII quando Mateus Paris (1199-1259), monge beneditino que foi o principal cronista da Idade Média, incorporou a fábula do Judeu Errante na sua Chronica Majora, que teve enorme influência.
 
Estas calúnias e outras menos famosas moldaram a impressionável mente dos europeus medievais e originaram preconceitos que perduram até hoje. O maior teólogo medieval, Tomás de Aquino (1225-1274) considerava justo que os judeus fossem submetidos a perpétua servidão, porque eram os assassinos de Jesus Cristo.
 
Legislação discriminatória
 
No tempo que vai desde a Idade Média até ao século XIX, a judeofobia deve ver-se à luz do conceito de um vínculo inquebrantável entre a igreja e o Estado, segundo o qual quem está fora da igreja é um traidor além de um herege. A tese foi declarada em termos inequívocos pelo papa Bonifácio VIII na famosa bula Unam Sanctam de 18 de Novembro de 1302.
 
Os Concílios de Latrão III (1176) e IV (1215), muito preocupados com a defesa da fé, ditaram legislação discriminatória contra grupos diversos que consideravam perigosos. Proibiu-se a judeus e sarracenos ter criados cristãos, e também a convivência de judeus e sarracenos com cristãos. Esta última disposição é um antecedente importante do sistema de ghettos (ver mais abaixo).
 
O IV Concílio de Latrão dispôs também que, para preservar os cristãos do contacto sexual (sim, leu bem) com judeus e sarracenos, estes últimos deveriam vestir-se de maneira distintiva. Isto diz o Cânon 68 do citado Concílio:
 
Em várias províncias, uma diferença nas vestimentas distingue os judeus ou os sarracenos dos cristãos; mas noutras ... não pode notar-se já diferença. Pelo que, às vezes tem acontecido que alguns cristãos têm tido por erro comércio sexual com judias e sarracenas, e judeus e sarracenos com cristãs. Para que o crime de tal pecaminosa mistura não encontre mais escape ou refúgio sob o pretexto do erro, ordenamos que eles [os judeus e os sarracenos] de ambos os sexos, em todas as terras cristãs e em todo tempo, sejam publicamente diferentes do resto da população pela qualidade da sua vestimenta...
 
Parece que o Concílio estava muito mais preocupado pela mistura com judeus e sarracenos do que pela promiscuidade sexual dos cristãos que é pressuposta neste cânon. Em todo o caso, como o concílio não estabeleceu exatamente que tipo de vestimenta distintiva os judeus deviam vestir, a prática variou em diversos países: um gorro bicudo na Alemanha, um círculo vermelho e branco na França, um pedaço de pano amarelo cuja forma imitava as tábuas da Lei em Inglaterra, etc. O papa Alexandre IV ordenou em 1257 o uso de um círculo amarelo para os varões judeus, e de duas fitas azuis no véu das judias. Três séculos mais tarde, Paulo IV mandou, na bula Cum nimis absurdum (1555) o uso de um gorro amarelo e um lenço da mesma cor, para judeus varões e mulheres respetivamente.
 
Queima do Talmude
 
A partir do século XIV, os mais decididos judeofóbicos proviriam da nascente classe burguesa de artesãos e comerciantes, e dentre os monges franciscanos como João de Capistrano, e os dominicanos como Vicente Ferrer. Este último tinha um ardente zelo pela evangelização dos muçulmanos e dos judeus de Espanha, que o transformou num inflamado inimigo do islamismo e do judaísmo.
 
A partir do século XIII começou a haver debates públicos entre judeus e cristãos, em que os judeus se encontravam em clara desvantagem. O ataque contra o judaísmo manifestou-se muitas vezes sob a condenável forma da queima de exemplares do Talmude. Isto ocorreu primeiramente em Paris (1240) e foi seguido de atos similares em outras cidades. Quando a Inquisição criou o Índice de Livros Proibidos, os livros da tradição judaica foram submetidos a forte censura.
 
Expulsões
 
Depois dos últimos concílios lateranenses, alguns países tomaram a decisão de expulsar os judeus dos seus territórios, uma prática que se prolongaria por séculos. A primeira expulsão, acompanhada do confisco de bens, foi decretada pelo rei francês Felipe Augusto em 1182. Mais importante foi a expulsão ocorrida em 1290 em Inglaterra, país em que a influência de Roma era muito forte naquele tempo.
 
Mais tarde, como consequência da epidemia de peste que dizimou a população europeia, os judeus foram acusados de envenenar a água dos cristãos e houve numerosos assassinatos. Uma onda de perseguições em Viena foi seguida pela expulsão dos judeus austríacos em 1421.
 
Em Espanha, a convivência de judeus e cristãos havia sido relativamente pacífica entre o século XI e o século XIV. Em 1411, como resultado da acesa prédica de Vicente Ferrer, se ditou legislação discriminatória. Dois anos mais tarde houve um famoso debate em Tortosa, que ocasionou conversões forçadas e novas perseguições.
 
No biénio 1473-1474 houve matanças de "marranos" (falsos conversos do judaísmo ao cristianismo) em Valladolid, Córdova e Segóvia. Quando, pouco depois, se estabeleceu a Inquisição espanhola, a perseguição dos judeus tornou-se sistemática e cruel. As penúrias dos judeus sefarditas foram coroadas com a expulsão ordenada pelos reis Católicos, Isabel e Fernando, a 31 de Março de 1492. O exemplo espanhol foi seguido pouco depois (1496) pelos portugueses.
 
O Ghetto
 
A restrição do lugar de residência dos judeus na Europa originou-se com a proibição de que cristãos e judeus convivessem, e organizou-se mediante toda uma legislação sancionada entre os séculos XIII e XV.
 
Em 1516 surgiu em Veneza o Ghetto ou bairro onde os judeus deviam ser confinados. O exemplo veneziano foi imitado por outras cidades. Assim, em 1555 o papa contrarreformador Paulo IV confinou os judeus romanos a um setor rodeado por um muro, na margem oposta do Tibre; a medida era parte de toda uma série de disposições que incluíam a restrição dos ofícios lícitos para os judeus, a limitação das suas transações com os cristãos, o uso obrigatório de distintivos, e um programa de sermões cristãos com assistência forçada.
 
Como os limites dos ghettos não podiam ser ampliados, com o tempo tornaram-se lugares de amontoamento com muito precárias condições de vida, expostos a derrocadas, epidemias e incêndios. Além disso, em teoria os ghettos deviam ter um único acesso, o qual era fechado durante as festividades cristãs, devendo os judeus permanecer lá dentro. Com o tempo, estabeleceram-se ghettos em outros países, como França, Alemanha e Polónia.
 
Fernando D. Saraví
 
Bibliografia
 
Yizhak Heinemann e col., Antisemitism. Jerusalém: Ketter Publishing House, 1974.
 
Jacob Robinson e col., Holocaust. Jerusalém: Ketter Publishing House, 1974.
 
A.S. Turberville, La Inquisición Española. México: Fondo de Cultura Económica, 1954.

sexta-feira, 17 de setembro de 2010

Os Arquivos Secretos da Inquisição

Episódio 1 - Eliminando os Hereges



Episódio 2 - As Lágrimas da Espanha



Episódio 3 - A Guerra Contra Ideias



Episódio 4 - O Fim da Inquisição

quarta-feira, 15 de setembro de 2010

O título de Papa


"PAPA, O (grego papas, latim papa, 'pai'). O título, apesar de agora restrito ao bispo de Roma, era nos tempos primitivos usado no Ocidente em relação a qualquer bispo. No Oriente, estava aparentemente limitado ao bispo de Alexandria que era regularmente chamado 'papas'; mas no uso popular moderno aplica-se nas Igrejas Ortodoxas a todos os sacerdotes (cf. o uso de 'padre' no Ocidente). No sínodo de Pavia, a 20 de Setembro de 998, o arcebispo de Milão foi admoestado por chamar-se a si mesmo 'papa', e em 1073 Gregório VII, num Concílio de Roma, proibiu formalmente o seu uso por qualquer outro bispo que não fosse o de Roma."

Oxford Dictionary of the Christian Church, s.v. POPE.

Trata-se pois de outro título usurpado pelo bispo de Roma, à semelhança de "Sumo Pontífice" (embora este último o surripiou aos Césares).

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