quinta-feira, 22 de julho de 2010

Clemente Romano e a “Sola Fide”


Introdução

É sabido que a doutrina da Sola Fide (ou "só pela fé") é uma das colunas da Reforma Protestante do século XVI, junto com Só a Graça, Só a Escritura, Só Cristo e Só glória a Deus.

Esta doutrina ensina que não existe mérito algum que faça o homem pecador "merecedor" da salvação da sua alma, mas que a mesma é consequência da infinita misericórdia de Deus, recebida por Graça (presente) por meio da fé no sacrifício vicário e expiatório de Jesus Cristo na cruz do Calvário. Já o apóstolo Paulo declara que somos salvos por Graça por meio da fé... "não por obras para que ninguém se glorie" (para que ninguém diga que o mereceu), ensinando por conseguinte que a justificação diante de Deus Pai do homem pecador se realiza SÓ PELA FÉ ("Sola Fide")

"Porque por graça sois salvos por meio da fé; e isto não vem de vós, pois é dom de Deus; não por obras, para que ninguém se glorie. Porque somos feitura sua, criados em Cristo Jesus para boas obras [1], as quais Deus preparou de antemão para que andássemos nelas..." (Efésios 2:8-10)

Ora, esta doutrina (só pela fé -"Sola Fide") atenta de maneira direta contra a própria base dos argumentos esgrimidos pela Igreja Católica Romana para sustentar o seu poder espiritual: o suposto estabelecimento sobre ela de "todos os meios de salvação" [2]. Porque se a Salvação for realmente "só pela fé", a sua hierarquia fica sem argumentos para apregoar a necessidade de subordinação a ela [3]. É por isso que a Igreja Católica rejeita totalmente esta doutrina, ao ponto de declarar anátema (maldito – excomungado) quem ouse professá-la.

Concílio de Trento

Já no Concílio de Trento [4] a Igreja Católica Romana deixa bem claro o que é que pensa sobre o tema controverso de "SÓ PELA FÉ":

«Se alguém disser, que o pecador se justifica só com a fé, entendendo que não se requer alguma outra coisa que coopere para conseguir a graça [5] da justificação; e que de nenhum modo é necessário que se prepare e disponha com o movimento da sua vontade; seja excomungado(Cânon IX)

Clemente Romano

Apresentada a base do que aqui se expõe, vejamos a seguir um escrito de Clemente Romano, que foi dirigido sob a forma de carta aos cristãos de Corinto no ano 96 dC. Esta carta contém 2 particularidades que motivam a sua exposição neste artigo:

1. Que no seu texto distingue-se claramente a doutrina de SÓ PELA FÉ ("Sola Fide").

2. Que quem escreveu tal carta (Clemente) foi considerado pela Igreja Católica Apostólica Romana como o seu quarto Sumo Pontífice (90-99), depois de Pedro (33-64), Lino (64-76) e Anacleto (76-90) [6].

O que torna particular o tema é que alguém considerado Padre da Igreja e, além disso, Sumo Pontífice ou Papa, tenha pregado uma doutrina anatematizada no concílio de Trento (janeiro de 1547).

Epístola aos Coríntios
(Clemente Romano)

Como assinalámos, esta epístola foi escrita no ano 96 dC. e dirigida à igreja de Corinto por causa de algumas questões disciplinares que se haviam suscitado e que necessitavam de ser observadas.

A seguir, reproduzimos o ponto XXXII da carta, que dá motivo a este artigo:

"Se alguém os considera um por um com sinceridade, compreenderá a magnificência dos dons que Ele nos concede. Porque de Jacob são todos os sacerdotes e levitas que ministram no altar de Deus; dele é o Senhor Jesus quanto à carne; dele são reis e governantes e soberanos da linha de Judá; sim, e o resto das tribos são tidas em uma honra não pequena, visto que Deus prometeu dizendo: A tua semente será como as estrelas do céu. Todos eles foram, pois, glorificados e engrandecidos, não por causa deles mesmos ou das suas obras, ou dos seus atos de justiça que fizeram, mas por meio da sua vontade. E assim nós, tendo sido chamados pela sua vontade em Cristo Jesus, não nos justificamos a nós mesmos, ou por meio da nossa própria sabedoria ou entendimento ou piedade ou obras que tenhamos feito em santidade de coração, mas por meio da fé, pela qual o Deus Todo-poderoso justifica todos os homens que foram desde o princípio; ao qual seja a glória para sempre. Amén." (Carta aos Coríntios XXXII)

Conclusão

Podemos ver que Clemente (suposto 4º Papa) não acreditava na doutrina da justificação como é ensinada pela Igreja Católica Romana; ao invés disso, acreditava que o homem é justificado (só) pela fé e não por obras feitas em santidade de coração.

«Porque por graça sois salvos por meio da fé... não por obras [7]... E se é por graça, já não é por obras; de outra maneira a graça já não é graça. E se é por obras, já não é graça; de outra maneira a obra já não é obra. [8]»

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[1] Note-se quão clara é a declaração do apóstolo Paulo. Primeiro esclarece que somos salvos "por graça por meio da fé... NÃO por obras". E depois, esclarecendo o papel das nossas boas obras, diz que foram preparadas de antemão por Deus para que "andássemos nelas". Ou seja, somos salvos PARA (andar em) Boas Obras, NÃO que somos salvos POR andar nelas. As Boas Obras no cristão não são o meio para conseguir ou merecer a salvação MAS são o resultado consequente por tê-la recebido. Pelo que, a Fé não pode ser "salvífica" (permita-se-me o termo) se não "opera o bem" (como refere o apóstolo Tiago na sua epístola).

[2] (Sublinhados acrescentados) «"A única Igreja de Cristo..., é aquela que nosso Salvador depois de sua Ressurreição, entregou a Pedro para que fosse seu pastor e confiou a ele e aos demais Apóstolos para propagá-la e regê-la... Esta Igreja, constituída e organizada neste mundo como uma sociedade, subsiste na ( "subsistit in") Igreja Católica governada pelo sucessor de Pedro e pelos Bispos em comunhão com ele" (LG 8). O Decreto sobre o Ecumenismo, do Concílio Vaticano II, explicita: "Pois somente por meio da Igreja católica de Cristo, 'a qual é meio geral de salvação', pode ser atingida toda a plenitude dos meios de salvação. Cremos que o Senhor confiou todos os bens da Nova Aliança somente ao Colégio Apostólico, do qual Pedro é o chefe, a fim de constituir na terra um só Corpo de Cristo, ao qual é necessário que se incorporem plenamente todos os que, de que alguma forma, já  pertencem ao Povo de Deus" (UR 3).» Catecismo Nº 816 

«...É na Igreja que está depositada "a plenitude total dos meios de salvação" (UR 3).» Catecismo Nº 824 

«.. A Igreja é católica: anuncia a totalidade da fé; traz em si e administra a plenitude dos meios de salvação..» Catecismo Nº 868

«.."Estão incorporados plenamente à sociedade, que é a Igreja, os que, tendo o Espírito de Cristo, aceitam a totalidade de sua organização e todos os meios de salvação nela instituídos e estão unidos, dentro da sua estrutura visível, a Cristo, que a rege por meio do Sumo Pontífice e dos Bispos, pelos vínculos da profissão de fé, dos sacramentos, do regime eclesiástico e da comunhão.» Catecismo Nº 837

[3] «O Magistério da Igreja exerce plenamente a autoridade que recebeu de Cristo quando define dogmas, isto é, quando propõe, de uma forma que obriga o povo cristão a uma adesão irrevogável de fé, verdades contidas na Revelação divina ou também quando propõe de maneira definitiva verdades que têm com elas um vínculo necessário.» Catecismo Nº 88. 

«.. não podem salvar-se aqueles que sabendo que Deus fundou, por meio de Jesus Cristo, a Igreja católica como necessária para a salvação, no entanto, não quiserem entrar ou perseverar nela (LG 14).» Catecismo Nº 846.

[4] «DECRETO SOBRE A JUSTIFICAÇÃO», SESSÃO VI, celebrada a 13 de Janeiro de 1547.

[5] Existe uma incongruência na expressão: "...que coopere para conseguir a graça". Porque se a palavra "graça" significa PRESENTE, pois, um presente nem se consegue nem se merece, um presente SE RECEBE, sem que haja nada que possamos fazer para cooperar na sua obtenção.

[6] Estas datas de pontificados romanos devem ser consideradas apenas como "orientadoras", já que curiosamente (e surpreendentemente também, por tratar-se de parte da tão apregoada Sucessão Apostólica que concede autoridade a todos os Papas, até ao dia de hoje) não existe uma versão única.

[7] Efésios 2:8

[8] Romanos 11:6

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