quinta-feira, 22 de julho de 2010

Clemente Romano e a “Sola Fide”


Introdução

É sabido que a doutrina da Sola Fide (ou "só pela fé") é uma das colunas da Reforma Protestante do século XVI, junto com Só a Graça, Só a Escritura, Só Cristo e Só glória a Deus.

Esta doutrina ensina que não existe mérito algum que faça o homem pecador "merecedor" da salvação da sua alma, mas que a mesma é consequência da infinita misericórdia de Deus, recebida por Graça (presente) por meio da fé no sacrifício vicário e expiatório de Jesus Cristo na cruz do Calvário. Já o apóstolo Paulo declara que somos salvos por Graça por meio da fé... "não por obras para que ninguém se glorie" (para que ninguém diga que o mereceu), ensinando por conseguinte que a justificação diante de Deus Pai do homem pecador se realiza SÓ PELA FÉ ("Sola Fide")

"Porque por graça sois salvos por meio da fé; e isto não vem de vós, pois é dom de Deus; não por obras, para que ninguém se glorie. Porque somos feitura sua, criados em Cristo Jesus para boas obras [1], as quais Deus preparou de antemão para que andássemos nelas..." (Efésios 2:8-10)

Ora, esta doutrina (só pela fé -"Sola Fide") atenta de maneira direta contra a própria base dos argumentos esgrimidos pela Igreja Católica Romana para sustentar o seu poder espiritual: o suposto estabelecimento sobre ela de "todos os meios de salvação" [2]. Porque se a Salvação for realmente "só pela fé", a sua hierarquia fica sem argumentos para apregoar a necessidade de subordinação a ela [3]. É por isso que a Igreja Católica rejeita totalmente esta doutrina, ao ponto de declarar anátema (maldito – excomungado) quem ouse professá-la.

Concílio de Trento

Já no Concílio de Trento [4] a Igreja Católica Romana deixa bem claro o que é que pensa sobre o tema controverso de "SÓ PELA FÉ":

«Se alguém disser, que o pecador se justifica só com a fé, entendendo que não se requer alguma outra coisa que coopere para conseguir a graça [5] da justificação; e que de nenhum modo é necessário que se prepare e disponha com o movimento da sua vontade; seja excomungado(Cânon IX)

Clemente Romano

Apresentada a base do que aqui se expõe, vejamos a seguir um escrito de Clemente Romano, que foi dirigido sob a forma de carta aos cristãos de Corinto no ano 96 dC. Esta carta contém 2 particularidades que motivam a sua exposição neste artigo:

1. Que no seu texto distingue-se claramente a doutrina de SÓ PELA FÉ ("Sola Fide").

2. Que quem escreveu tal carta (Clemente) foi considerado pela Igreja Católica Apostólica Romana como o seu quarto Sumo Pontífice (90-99), depois de Pedro (33-64), Lino (64-76) e Anacleto (76-90) [6].

O que torna particular o tema é que alguém considerado Padre da Igreja e, além disso, Sumo Pontífice ou Papa, tenha pregado uma doutrina anatematizada no concílio de Trento (janeiro de 1547).

Epístola aos Coríntios
(Clemente Romano)

Como assinalámos, esta epístola foi escrita no ano 96 dC. e dirigida à igreja de Corinto por causa de algumas questões disciplinares que se haviam suscitado e que necessitavam de ser observadas.

A seguir, reproduzimos o ponto XXXII da carta, que dá motivo a este artigo:

"Se alguém os considera um por um com sinceridade, compreenderá a magnificência dos dons que Ele nos concede. Porque de Jacob são todos os sacerdotes e levitas que ministram no altar de Deus; dele é o Senhor Jesus quanto à carne; dele são reis e governantes e soberanos da linha de Judá; sim, e o resto das tribos são tidas em uma honra não pequena, visto que Deus prometeu dizendo: A tua semente será como as estrelas do céu. Todos eles foram, pois, glorificados e engrandecidos, não por causa deles mesmos ou das suas obras, ou dos seus atos de justiça que fizeram, mas por meio da sua vontade. E assim nós, tendo sido chamados pela sua vontade em Cristo Jesus, não nos justificamos a nós mesmos, ou por meio da nossa própria sabedoria ou entendimento ou piedade ou obras que tenhamos feito em santidade de coração, mas por meio da fé, pela qual o Deus Todo-poderoso justifica todos os homens que foram desde o princípio; ao qual seja a glória para sempre. Amén." (Carta aos Coríntios XXXII)

Conclusão

Podemos ver que Clemente (suposto 4º Papa) não acreditava na doutrina da justificação como é ensinada pela Igreja Católica Romana; ao invés disso, acreditava que o homem é justificado (só) pela fé e não por obras feitas em santidade de coração.

«Porque por graça sois salvos por meio da fé... não por obras [7]... E se é por graça, já não é por obras; de outra maneira a graça já não é graça. E se é por obras, já não é graça; de outra maneira a obra já não é obra. [8]»

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[1] Note-se quão clara é a declaração do apóstolo Paulo. Primeiro esclarece que somos salvos "por graça por meio da fé... NÃO por obras". E depois, esclarecendo o papel das nossas boas obras, diz que foram preparadas de antemão por Deus para que "andássemos nelas". Ou seja, somos salvos PARA (andar em) Boas Obras, NÃO que somos salvos POR andar nelas. As Boas Obras no cristão não são o meio para conseguir ou merecer a salvação MAS são o resultado consequente por tê-la recebido. Pelo que, a Fé não pode ser "salvífica" (permita-se-me o termo) se não "opera o bem" (como refere o apóstolo Tiago na sua epístola).

[2] (Sublinhados acrescentados) «"A única Igreja de Cristo..., é aquela que nosso Salvador depois de sua Ressurreição, entregou a Pedro para que fosse seu pastor e confiou a ele e aos demais Apóstolos para propagá-la e regê-la... Esta Igreja, constituída e organizada neste mundo como uma sociedade, subsiste na ( "subsistit in") Igreja Católica governada pelo sucessor de Pedro e pelos Bispos em comunhão com ele" (LG 8). O Decreto sobre o Ecumenismo, do Concílio Vaticano II, explicita: "Pois somente por meio da Igreja católica de Cristo, 'a qual é meio geral de salvação', pode ser atingida toda a plenitude dos meios de salvação. Cremos que o Senhor confiou todos os bens da Nova Aliança somente ao Colégio Apostólico, do qual Pedro é o chefe, a fim de constituir na terra um só Corpo de Cristo, ao qual é necessário que se incorporem plenamente todos os que, de que alguma forma, já  pertencem ao Povo de Deus" (UR 3).» Catecismo Nº 816 

«...É na Igreja que está depositada "a plenitude total dos meios de salvação" (UR 3).» Catecismo Nº 824 

«.. A Igreja é católica: anuncia a totalidade da fé; traz em si e administra a plenitude dos meios de salvação..» Catecismo Nº 868

«.."Estão incorporados plenamente à sociedade, que é a Igreja, os que, tendo o Espírito de Cristo, aceitam a totalidade de sua organização e todos os meios de salvação nela instituídos e estão unidos, dentro da sua estrutura visível, a Cristo, que a rege por meio do Sumo Pontífice e dos Bispos, pelos vínculos da profissão de fé, dos sacramentos, do regime eclesiástico e da comunhão.» Catecismo Nº 837

[3] «O Magistério da Igreja exerce plenamente a autoridade que recebeu de Cristo quando define dogmas, isto é, quando propõe, de uma forma que obriga o povo cristão a uma adesão irrevogável de fé, verdades contidas na Revelação divina ou também quando propõe de maneira definitiva verdades que têm com elas um vínculo necessário.» Catecismo Nº 88. 

«.. não podem salvar-se aqueles que sabendo que Deus fundou, por meio de Jesus Cristo, a Igreja católica como necessária para a salvação, no entanto, não quiserem entrar ou perseverar nela (LG 14).» Catecismo Nº 846.

[4] «DECRETO SOBRE A JUSTIFICAÇÃO», SESSÃO VI, celebrada a 13 de Janeiro de 1547.

[5] Existe uma incongruência na expressão: "...que coopere para conseguir a graça". Porque se a palavra "graça" significa PRESENTE, pois, um presente nem se consegue nem se merece, um presente SE RECEBE, sem que haja nada que possamos fazer para cooperar na sua obtenção.

[6] Estas datas de pontificados romanos devem ser consideradas apenas como "orientadoras", já que curiosamente (e surpreendentemente também, por tratar-se de parte da tão apregoada Sucessão Apostólica que concede autoridade a todos os Papas, até ao dia de hoje) não existe uma versão única.

[7] Efésios 2:8

[8] Romanos 11:6

terça-feira, 13 de julho de 2010

Citações eucarísticas primitivas (2)

Clemente de Alexandria

Provavelmente nasceu em Atenas por volta de 150. Recebeu formação filosófica antes da sua conversão, e quando se tornou cristão reteve muito do aprendido dos filósofos. O cristianismo era para ele a verdadeira filosofia. Morreu por volta de 215. Note-se como considera simbólicos da nutrição da alma os ditos de João 6.

O Pedagogo, 1, 6

Pois a mesma Palavra é fluida e suave como leite, ou sólida e compacta como carne. E detendo-nos neste ponto de vista, podemos considerar a proclamação do Evangelho, que está universalmente difundido, como leite; e como carne a fé, pela qual a instrução é compactada num fundamento, que, sendo mais substancial que o ouvir, é semelhante à carne, e a própria alma assimila nutrição deste tipo. Noutro lado o Senhor, no Evangelho segundo João, menciona isto mediante símbolos, quando disse: "Comei a minha carne e bebei o meu sangue" [João 6:34]; descrevendo claramente por metáfora as propriedades bebíveis da fé e da promessa, por meio da qual a Igreja, como um ser humano composto de muitos membros, é refrescada e cresce, é ligada e compactada por ambas – pela fé, que é o corpo, e pela esperança que é a alma; como também o Senhor de carne e sangue. Pois na realidade o sangue da fé é a esperança, na qual a fé é sustentada como por um princípio vital. E quando expira a esperança, é como se o sangue escorresse, e a vitalidade da fé é destruída. Se, então, alguém se opusesse, dizendo que por leite se entendem as primeiras lições – como se fora, o primeiro alimento - e que por carne se entendem aquelas compreensões espirituais que eles alcançam elevando-se ao conhecimento, que entendam que, ao dizer que a carne é alimento sólido, e a carne e sangue de Jesus, são levados pela sua própria sabedoria vã à verdadeira simplicidade. Pois o sangue é um produto original no homem, e alguns se aventuraram a chamá-lo a substância da alma. E este sangue, transmutado por um processo natural de assimilação na gravidez da mãe... floresce e envelhece, para que não haja temor para a criança. O sangue, também, é a parte mais húmida da carne, sendo uma espécie de carne líquida; e o leite é a parte mais doce e excelente do sangue ... Que absurdo é, então, não reconhecer que o sangue é convertido pela respiração naquela branca e brilhante substância! A mudança que sofre é em qualidade, não em essência. Certamente não encontrareis nada mais nutritivo, doce ou branco do que o leite. Em todos os aspectos, então, é como nutrição espiritual, a qual é doce pela graça, nutritiva como vida, brilhante como o Dia de Cristo.

O sangue do Verbo também foi exibido como leite. O leite assim provido no parto, é administrado ao bebé ... as mulheres grávidas, ao tornar-se mães, secretam leite. Mas o Senhor Cristo, o fruto da Virgem, não pronunciou benditos os seios das mulheres, nem os seleccionou para dar alimento; mas quando o Pai bondoso e amoroso fez chover o Verbo, Ele próprio tornou-se alimento espiritual para o bem. Oh mística maravilha! O Pai universal é um, e um o Verbo universal; e o Espírito Santo é um e o mesmo em todos os lugares, e uma só é a única mãe virgem. Eu amo chamá-la a Igreja. Esta mãe, quando estava sozinha, não tinha leite, porque sozinha não era uma mulher. Mas ela é ao mesmo tempo virgem e mãe – pura como uma virgem, amante como uma mãe. E chamando os seus filhos a ela, os nutre com leite santo, isto é, com a Palavra para a infância. Portanto ela não tinha leite; pois o leite era esta criança pura e graciosa, o corpo de Cristo, o qual nutre pela Palavra a jovem raça, a qual o próprio Senhor trouxe à luz em espasmos da carne, a qual o Senhor envolveu no seu precioso sangue. Oh, maravilhoso nascimento! Oh santos cueiros! O Verbo é tudo para a criança, tanto pai como mãe, e tutor e ama. "Comei a minha carne", diz, "e bebei o meu sangue." [João 6: 53-54]. Tal é o adequado alimento que o Senhor ministra, e Ele oferece a sua carne e entrega o seu sangue, e nada falta para o crescimento das crianças. Oh surpreendente mistério! Somos intimados a abandonar a velha e carnal corrupção, como também a velha alimentação, recebendo em troca outro novo regime, aquele de Cristo, recebendo-o se pudermos, para guardá-lo em nosso interior; e que, ao guardar o Salvador em nossas almas como num santuário, possamos corrigir as afecções da nossa carne.

Mas não estais inclinados a entendê-lo deste modo, mas talvez mais geralmente. Ouvi-o também da seguinte maneira. A carne figurativamente representa para nós o Espírito Santo; pois a carne foi criada por Ele. O sangue nos aponta a Palavra, pois como rico sangue a Palavra foi infundida na vida; e a união de ambas é o Senhor, o alimento dos bebés – o Senhor que é Espírito e Verbo. O alimento – isto é, o Senhor Jesus – isto é, o Verbo de Deus, o Espírito feito carne, a carne celestial santificada. A nutrição é o leite do Pai, só pelo qual nós os bebés nos nutrimos. O próprio Verbo, então, o Amado, e nosso alimentador, derramou o seu próprio sangue por nós, para salvar a humanidade; e por Ele nós, crendo em Deus, fugimos para o Verbo, "o peito carinhoso" do Pai. E só Ele, como corresponde, nos supre a nós, crianças, com o leite de amor, e somente são benditos os que mamam deste peito.

Além disso, o Verbo declara ser Ele próprio o pão do céu. "Pois Moisés", diz, "não vos deu o pão do céu, mas meu Pai vos deu o verdadeiro pão do céu. Pois o pão de Deus é Aquele que desceu do céu, e dá vida ao mundo. E o pão que eu darei é a minha carne, a qual darei pela vida do mundo." [João 6: 32-33,51]. Aqui deve notar-se o mistério do pão, na medida em que Ele fala dele como carne, e como carne, por conseguinte, que passou pelo fogo, como o trigo surge do decaimento e da germinação; e, na verdade, passou pelo fogo para o gozo da Igreja, como pão forneado... Mas uma vez que Ele disse "E o pão que darei é a minha carne" e uma vez que a carne é humedecida com sangue, e o sangue é denominado figurativamente vinho, estamos convidados a saber que, como o pão, desfeito numa mistura de vinho e água, apanha o vinho e deixa a porção aquosa, assim também a carne de Cristo, o pão do céu, absorve o sangue; isto é, aqueles dentre os homens que são celestiais, nutrindo-os para imortalidade, e deixando para destruição somente as concupiscências da carne.

Assim, de muitas maneiras o Verbo é figurativamente descrito, como alimento, e carne, e comida, e pão, e sangue, e leite. O Senhor é tudo isto, para dar-nos desfrute a nós que cremos n`Ele. Que ninguém pense que é estranho, quando dizemos que o sangue do Senhor é figurativamente representado como leite. Pois, não é figurativamente representado como vinho? "Quem lava", diz-se, "a sua vestimenta em vinho, a sua túnica no sangue da videira" [Génesis 49: 11]. No seu próprio Espírito diz que revestirá o corpo do Verbo; como certamente pelo seu próprio Espírito nutrirá os que tenham fome do Verbo.

E que o sangue é o Verbo, é testificado pelo sangue de Abel, o justo que intercede com Deus. Pois o sangue nunca emitiria uma voz, se não tivesse sido considerado como a Palavra: pois o homem justo do passado é o tipo do novo justo; e o sangue que outrora intercedia, intercede no lugar do novo sangue. E o sangue que é o Verbo chora para Deus, uma vez que anunciava que o Verbo havia de sofrer...

... Porque se fomos regenerados em Cristo, Aquele que nos regenerou nos nutre com o seu próprio leite, o Verbo... E como a regeneração foi consistentemente espiritual, também a nutrição do homem é espiritual. Em todos os aspectos, portanto, e em todas as coisas, somos levados para a união com Cristo, para um relacionamento através do Seu sangue, pelo qual somos redimidos; e para a concordância, em consequência da nutrição que flui do Verbo; e para a imortalidade, através da Sua guia.

O Pedagogo 2.2

Posteriormente a vinha sagrada produziu o cacho de uvas profético. Este foi um sinal para eles, quando foram levados da sua errância para o seu repouso; representando o grande cacho de uvas, o Verbo, pisado por nós. Pois o sangue da videira – isto é, o Verbo - desejava ser misturado com água, como o seu sangue é misturado com salvação.

E o sangue do Senhor é duplo. Pois há o sangue da sua carne, pelo qual somos redimidos da corrupção; e o espiritual, pelo qual somos ungidos. E beber o sangue de Jesus é tornar-se participante da imortalidade do Senhor; sendo o Espírito o princípio energético do Verbo, como o sangue é da carne.

Concordantemente, como o vinho é misturado com água, assim é o Espírito com o homem. E uma, a mistura de vinho com água, nutre para fé; enquanto o outro, o Espírito, conduz à imortalidade.

E a mistura de ambos – da água e do Verbo - é chamada Eucaristia, graça renomada e gloriosa; e os que por fé participam dela são santificados tanto no corpo como na alma. Pois a mistura divina, homem, a vontade do Pai compôs misticamente pelo Espírito e pelo Verbo. Pois na verdade, o espírito se une à alma, que é inspirada por ele; e a carne, por cuja razão o Verbo se fez carne, ao Verbo.

Stromata (Miscelâneas) 10

Pelo que o Salvador, tomando o pão, primeiro falou e abençoou. Então partindo o pão, o apresentou, para que pudéssemos comê-lo, conforme à razão, e que conhecendo as Escrituras pudéssemos caminhar obedientemente.

Tertuliano

Tertuliano de Cartago (c. 160 - c. 220) foi um prolífico autor. Para o fim da sua vida adoptou o montanismo. Nos seus escritos há algumas alusões à Eucaristia, a que chama "sacramento", equivalente latino do grego "mysterion." Note-se o paralelo entre a nutrição do corpo e a da alma, que nos recorda o já dito por Justino. O pão que representa Cristo deve entender-se em sentido espiritual.

Sobre a Coroa, 3

Tomamos também, nas congregações antes do amanhecer, e da mão de mais ninguém senão dos presidentes, o sacramento da Eucaristia, o qual o Senhor mandou que fosse comido na hora das refeições, e dispôs que fosse tomado por todos por igual.

Sobre a ressurreição da carne, 8

E já que a alma é, como consequência da sua salvação, escolhida para o serviço de Deus, é a carne que na realidade a torna capaz de tal serviço. A carne, certamente, é lavada, para que a alma possa ser limpa; a carne é ungida, para que a alma possa ser consagrada; a carne é assinalada (com a cruz) para que a alma possa ser fortificada; a carne é coberta com a imposição de mãos, para que a alma possa também ser iluminada pelo Espírito; a carne se alimenta do corpo e do sangue de Cristo, para que a alma do mesmo modo possa fartar-se em Deus. Não podem separar-se na sua recompensa, quando estão unidas no seu serviço.

Sobre a Oração, 6

... podemos melhor entender "Dá-nos hoje o pão nosso de cada dia" espiritualmente. Pois Cristo é o nosso pão; porque Cristo é vida, e o pão é vida. "Eu sou", diz Ele, "o pão da vida" [João 6:35]; e, um pouco antes, "O Pão é a Palavra do Deus vivo, que desceu dos céus." Então descobrimos, também, que o seu Corpo é reconhecido no pão: "Isto é o meu corpo" [Mateus 26:26]. E assim, ao pedir "o pão nosso de cada dia" pedimos perpetuidade em Cristo, e indivisibilidade do seu corpo. Mas devido a que essa palavra admite também um sentido carnal, não pode ser usada assim sem a lembrança religiosa com disciplina espiritual; pois [o Senhor] manda que se ore pelo pão, o qual é o único alimento necessário para os crentes.

Sobre a Oração, 19

Similarmente, também, a respeito dos dias de Estações [jejuns?] a maioria pensa que eles não devem estar presentes nas orações sacrificiais, com base em que a Estação pode interromper-se pela recepção do Corpo do Senhor. Mas então a Eucaristia cancela um serviço dedicado a Deus, ou o une mais a Deus? Não será a tua Estação mais solene se com ela estiveste no altar de Deus? Quando o Corpo do Senhor foi recebido e reservado, cada ponto está assegurado, tanto a participação do sacrifício como o cumprimento do dever.

Hipólito de Roma

Hipólito (c.170 - 235) foi o último grande escritor romano a escrever em grego. Muitas das suas obras se perderam, mas no tema que nos ocupa revestem-se de interesse algumas partes de "A Tradição Apostólica", obra cujo conteúdo é essencialmente litúrgico. Uma vez que escreveu em Roma, é de particular interesse a sua referência eucarística aos "símbolos" que "representam" o corpo e o sangue do Senhor.

A tradição apostólica

4. Quando se converter em bispo, que todos lhe ofereçam o beijo da paz, saudando-o porque ele se dignificou. Que os diáconos lhe apresentem a oblação e que ele, impondo as mãos sobre ela com todo o presbitério, diga, dando graças: "O Senhor seja convosco". E que todos digam: "E com o teu espírito". "Elevai os vossos corações". "Já os temos levantados para o Senhor". "Demos graças ao Senhor". "Este é digno e justo".

E que continue então assim:

Nós te damos graças, ó Deus, por teu Filho bem-amado, Jesus Cristo, que nos enviaste nestes últimos tempos como salvador, redentor e mensageiro de teu desígnio. Ele é o teu Verbo inseparável, por quem criaste tudo, o qual, em teu beneplácito, enviaste desde o céu no seio de uma virgem e, tendo sido concebido, encarnou e se manifestou como teu Filho, nascido do Espírito Santo e da Virgem.

Ele foi quem, cumprindo a tua vontade e adquirindo um povo santo, estendeu as mãos para livrar do sofrimento aqueles que têm confiança em ti.

Enquanto ele ofertava o seu sofrimento voluntário a fim de destruir a morte e quebrar as cadeias do diabo, para pisar com os seus pés o inferno, para conduzir os justos à luz, para fixar as regras da fé e manifestar a ressurreição, tomando o pão te agradecia, dizendo: "Tomai, comei, este é o meu corpo que parti por vós"; e do mesmo modo o cálice, dizendo: "Este é o meu sangue que foi derramado por vós. Quando fizerdes isto, fazei-o em minha memória."

Recordando, então, a sua morte e a sua ressurreição, nós te oferecemos este pão e este cálice, dando-te as graças por nos teres julgado dignos de estar perante ti e servir-te como sacerdotes.

E te pedimos que envies o teu Espírito Santo sobre a oblação da santa Igreja. Reunindo-os, dá a todos o direito de participar em teus santos mistérios para estar cheios do Espírito Santo, para a afirmação da sua fé na verdade, a fim de que te louvemos e glorifiquemos por teu Filho Jesus Cristo, que tem a tua glória e a tua honra com o Espírito Santo em tua santa Igreja, agora e pelos séculos. Amén.

21.

... Então será apresentada a oblação ao bispo e ele dará graças sobre o pão porque é o símbolo do corpo de Cristo; sobre o cálice de vinho misturado, porque é a imagem do sangue que foi derramado por todos os que crêem nele; sobre o leite e o mel misturados, indicando a promessa feita aos nossos pais, ao falar-lhes da terra onde abundam o leite e o mel, por cujo cumprimento Cristo deu a sua carne, da qual, como crianças pequenas, se alimentam os crentes; sobre a água apresentada na oferta para significar o banho, a fim de que a alma do homem obtenha os mesmos efeitos que o corpo.

Todas estas coisas o bispo as explicará aos que recebem a comunhão. Quando parte o pão, ao apresentar cada pedaço, dirá: "O pão do céu em Cristo Jesus" e o que recebe responderá: "Amén".

... se for necessário recordar alguma outra coisa, o bispo o dirá sob o [selo do] segredo aos que receberam a Eucaristia. Os infiéis não devem ter conhecimento de nada disto. Só poderão tê-lo depois de receber a Eucaristia. Esta é a pedra branca de que João disse: "Um nome novo está escrito aí, que ninguém o conheça à excepção daquele que receberá a pedra" [Apocalipse 2:17].

41.

O que estiver em sua casa, que ore e louve a Deus à hora terceira. O que nesse momento estiver noutro lado, que eleve uma oração a Deus em seu próprio coração, já que nessa hora foi visto Cristo atado ao madeiro. Também no Antigo Testamento, a Lei prescreveu oferecer e apresentar o pão da proposição à hora terceira, como símbolo do corpo e do sangue de Cristo: a imolação do irracional cordeiro é a representação do cordeiro perfeito. Sendo Cristo o Pastor, é também o maná que desceu do céu.

Orígenes

Orígenes (185 - 254) foi um dos maiores eruditos da antiguidade cristã. Nasceu em Alexandria e foi discípulo de Clemente, a quem sucedeu. Escreveu muitíssimo, mas grande parte da sua obra se perdeu. O seu ponto de vista espiritual acerca da Eucaristia pode deduzir-se das obras remanescentes.

Contra Celso 8,57

Celso supõe que os homens "cumprem com as obrigações da vida até que são libertados das suas ligaduras" quando, de acordo com costumes geralmente recebidos, oferecem sacrifícios a cada um dos deuses reconhecidos no estado; e não percebe o verdadeiro dever que é cumprido por uma diligente piedade. Porque nós dizemos que cumpre verdadeiramente com os deveres da vida o que sempre tem presente quem é o seu Criador, e que coisas lhe são agradáveis, e quem actua em todas as coisas de modo que possa comprazer a Deus. De novo, Celso quer que sejamos agradecidos com estes demónios, imaginando que lhes devemos ofertas de agradecimento. Mas nós, embora reconheçamos a obrigação do agradecimento, sustentamos que não mostramos ingratidão ao recusar dar graças a seres que nenhum bem nos fazem, antes estão contra nós quando não lhes sacrificamos nem os adoramos. Estamos muito mais preocupados por não ser desagradecidos para com Deus, que nos encheu com os seus benefícios, de cuja obra somos, que nos cuida em qualquer condição que nos achemos, e que nos deu esperança de coisas além da vida presente. E temos um símbolo de gratidão a Deus no pão que chamamos a Eucaristia.

Homilias sobre o Êxodo 13,3:

Desejo admoestar-vos com exemplos da vossa religião. Vós que estais acostumados a participar nos divinos mistérios, quando recebeis o corpo do Senhor, reverente e minuciosamente cuidais que nenhuma partícula caia ao chão e que nada do dom consagrado se perca. Porque vos considerais culpados, e com razão, se qualquer parte dele se perdesse por negligência. Mas se observais tal cuidado em guardar o seu corpo, e apropriadamente, como é que pensais que descuidar a Palavra de Deus seja um crime menos grave que descuidar o seu corpo?

Comentário sobre o Evangelho de João
6,35

Se investigarmos mais sobre o significado de Jesus sendo apontado por João, quando diz: "Este é o Cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo", podemos situar-nos na dispensação do advento corporal do Filho de Deus em vida humana, e em tal caso conceberemos que o cordeiro não é senão o homem. Pois o homem "foi levado como uma ovelha ao matadouro, e como um cordeiro, mudo perante os seus tosquiadores." Daí, também, que no Apocalipse é visto um cordeiro, de pé como imolado. Este cordeiro imolado foi feito, segundo certas ocultas razões, uma purificação para o mundo inteiro, pela qual, conforme o amor do Pai pelo homem, ele se submeteu à morte, comprando-nos por seu próprio sangue daquele que nos tinha em seu poder, vendidos sob o pecado. E aquele que levou este cordeiro ao matadouro foi Deus no homem, o grande Sumo Sacerdote, como o mostra pelas palavras: "Ninguém me tira a minha vida, mas a entrego por mim mesmo. Tenho poder para entregá-la, e tenho poder para retomá-la".

10,13

Até que ponto haja qualquer páscoa e qualquer festa de fermento além das duas que mencionámos, é um ponto que devemos examinar mais cuidadosamente, já que estas servem como um modelo e uma sombra das celestiais das quais falamos, e não somente tais coisas como comida e bebida e luas novas e sábados, mas também os festivais, são uma sombra das coisas vindouras. Em primeiro lugar, quando o Apóstolo diz, "Cristo, nossa páscoa, é sacrificado", alguém pode albergar a tal respeito dúvidas como estas. Se a ovelha dos judeus é um tipo do sacrifício de Cristo, então deveria ter sido oferecida [somente] uma e não uma multidão, já que Cristo é um; ou, se muitas ovelhas foram oferecidas seguindo o tipo, é como se muitos Cristos fossem sacrificados. Mas para não nos demorarmos nisto, podemos perguntar como a ovelha, que era a vítima, contém uma imagem de Cristo, quando era sacrificada por homens que estavam cumprindo a Lei, mas Cristo foi morto por transgressores da Lei, e que aplicação pode encontrar-se em Cristo da instrução, "Comerão a carne esta noite, assada ao fogo, e pão ázimo em ervas amargas comerão", e "Não o comas cru, nem cozido em água, mas assado ao fogo; a cabeça com os pés e as entranhas; e nada dele deixarás até pela manhã, e não lhe quebrarás nenhum osso. Mas o que dele sobrar até pela manhã o queimarás". A frase "Não lhe quebrarás nenhum osso" parece ter sido usada por João no seu Evangelho, como aplicada aos acontecimentos respeitantes a Cristo, e ligando-os com a ocasião falada na Lei quando os que comiam a ovelha são chamados a não quebrar-lhe nenhum osso.

Tragamos à mente as palavras, "Este é o Cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo", pois é dito da páscoa, "O tomarás dos cordeiros ou das cabras". O Evangelista aqui concorda com Paulo, e ambos estão envolvidos nas dificuldades de que falámos acima. Mas por outro lado temos de dizer que se o Verbo se fez carne, e o Senhor diz, "A menos que comais a carne do Filho do homem, e bebais o seu sangue, não tendes vida em vós. O que come a minha carne e bebe o meu sangue, tem vida eterna, e eu o ressuscitarei no último dia. Pois a minha carne é verdadeira comida e o meu sangue verdadeira bebida. O que come a minha carne e bebe o meu sangue permanece em mim, e eu nele" – então a carne de que assim se fala é aquela do Cordeiro que tira o pecado do mundo; e este é o sangue, parte do qual havia de colocar-se nos umbrais, e na verga da porta das casas, nas quais comemos a páscoa. Da carne deste Cordeiro é necessário que comamos no tempo do mundo, que é noite, e a carne deve ser assada no fogo, e comida com pão ázimo, pois o Verbo de Deus não é somente carne. Ele diz, com efeito, de si mesmo "Eu sou o pão da vida"... Não devemos esquecer, contudo, que por um uso amplo das palavras, qualquer comida é chamada pão ... Leva-me a esta observação o dito de João, "E o pão que darei é a minha carne, pela vida do mundo". De novo, comemos a carne do Cordeiro, com ervas amargas, e pão ázimo, quando nos arrependemos dos nossos pecados e nos lamentamos com a pena que é segundo Deus, um arrependimento que opera para nossa salvação, e do qual não devemos arrepender-nos; ou quando, por causa das nossas provas, nos voltamos para as especulações que descobrimos ser as da verdade, e somos alimentados por elas. Não temos, no entanto, de comer a carne do Cordeiro crua, como o fazem os que são escravos da letra, como animais irracionais, e os que estão furiosos com homens verdadeiramente razoáveis, porque estes desejam entender as coisas espirituais; na verdade [esses] partilham a natureza das bestas selvagens. Mas devemos esforçar-nos em converter a crueza da Escritura em alimento bem cozido, não permitindo que o escrito se torne flácido, e húmido, e magro, como aqueles que têm ouvidos com comichão, e afastam os seus ouvidos da verdade. Mas sejamos de espírito fervoroso e nos aferremos às ferozes palavras dadas a nós por Deus, como as que Jeremias recebeu d`Aquele que lhe falou: "Eis que fiz as minhas palavras na tua boca como fogo", e vejamos que a carne do Cordeiro esteja bem cozida, de modo que aqueles que participam dela possam dizer, enquanto Cristo fala em nós: "O nosso coração ardia no caminho, enquanto nos abria as Escrituras".

... Mas neste comer, devemos começar pela cabeça, ou seja, nas doutrinas principais e mais essenciais acerca das coisas celestiais, e devemos terminar com os pés, os últimos ramos do conhecimento que investigam a natureza última das coisas, ou acerca de coisas mais materiais, ou acerca de coisas debaixo da terra, ou acerca de espíritos malvados ou demónios imundos. Pois pode ser que a relação destas coisas não seja óbvia, como elas mesmas, mas está disposta entre os mistérios da Escritura, de tal modo que pode chamar-se, figuradamente, os pés do Cordeiro. Também não podemos deixar de lidar com as entranhas, que estão dentro e escondidas de nós; devemos aproximar-nos ao conjunto da Escritura como a um corpo, não podemos lacerar nem romper as fortes e bem entretecidas ligações que existem na harmonia de toda a sua composição, como os que laceram, na medida que podem, a unidade do Espírito que está em todas as Escrituras. Mas esta predita profecia do Cordeiro deve ser a nossa alimentação somente durante a noite desta nossa escura vida; o que vem depois desta vida é, como se fora, o amanhecer do dia, e por que haveríamos de deixar para então a comida que somente pode ser-nos útil agora? Mas quando a noite tiver passado, e o dia que a segue esteja à mão, então teremos para comer um pão que não tem nada que ver com o pão levedado do antigo e inferior estado de coisas, mas é ázimo, e nos servirá até que aquele que vem depois do pão ázimo nos seja dado, o maná, o qual é alimento de anjos e não de homens.

Cada um de nós, pois, pode sacrificar o seu cordeiro em cada casa de nossos pais, e enquanto um quebranta a lei, não sacrificando em absoluto o cordeiro, outro pode guardar inteiramente o mandamento, oferecendo o seu sacrifício, e cozinhando-o correctamente, e evitando quebrar-lhe algum osso. Esta é, brevemente, a interpretação da Páscoa sacrificada por nós, a qual é Cristo, em conformidade com a interpretação adoptada pelos Apóstolos, e com o Cordeiro no Evangelho. Pois não devemos supor que as coisas históricas são tipos de coisas históricas, e as coisas materiais de [coisas] materiais, mas as coisas materiais são típicas de coisas espirituais, e as coisas históricas de [coisas] intelectuais. Não é necessário que o nosso discurso ascenda agora àquela terceira páscoa que há-de ser celebrada com miríades de anjos no êxodo perfeitíssimo e mais bendito; já falámos destas coisas com maior extensão de que a passagem exige.

Comentário sobre Mateus, Livro 11, 14

... como não é a carne, mas a consciência daquele que come com dúvida o que mancha o que come, pois "quem duvida é condenado se come, pois não come com fé", e como nada é puro para quem está manchado e incrédulo, não em si mesmo, mas por causa da sua mancha e incredulidade, assim o que é santificado através da palavra de Deus e da oração não santifica a quem o usa por sua própria natureza, pois a ser assim santificaria até aquele que come indignamente do pão do Senhor, e ninguém por causa deste alimento se tornaria fraco ou doente ou dormiria pois algo deste tipo representou Paulo ao dizer, "Por esta causa muitos dentre vós estais fracos e doentes e não poucos dormem." E no caso do pão do Senhor, por conseguinte, há vantagem para quem o usa quando com mente impoluta e consciência pura participa do pão. E deste modo, nem por não comer, quero dizer, pelo próprio facto de não comermos do pão que foi santificado pela palavra de Deus e pela oração, somos privados de alguma coisa boa, nem por comer somos melhores por alguma coisa boa; pois a causa da nossa carência é a impiedade e os pecados, e a causa da nossa abundância é a rectidão e as boas acções; assim que tal é o significado do dito por Paulo: "Não somos melhores se comermos, nem somos piores se não comermos." Ora, se "tudo o que entra pela boca vai para o estômago e é lançado na latrina" até a comida que foi santificada através da palavra de Deus e da oração, em conformidade com o facto de que é material, vai para o estômago e é lançada na latrina, mas por causa da oração que vem sobre ela, conforme a medida da fé, torna-se um benefício e é um meio de ver claramente para a mente que procura o que é benéfico, e não é a matéria do pão mas a palavra que é dita sobre ela o que aproveita ao que come não indignamente do Senhor. E estas coisas certamente são ditas do corpo típico e simbólico. Mas muitas coisas poderiam dizer-se acerca do próprio Verbo que se fez carne, e verdadeira comida da qual o que come viverá seguramente para sempre, não sendo capaz de comer dela nenhuma pessoa indigna; pois se fosse possível para alguém que continua indigno comer d`Aquele que se fez carne, que era o Verbo e o pão vivo, não se teria escrito que "todo o que come deste pão viverá para sempre".

Comentário sobre Mateus série 85

Este pão que o Verbo de Deus diz ser o seu corpo, é a Palavra que alimenta as almas, o Verbo que procede de Verbo Deus; é pão celestial, que está colocado encima da mesa, do qual está escrito: "Tu pões perante mim uma mesa, em frente dos meus inimigos" [Salmo 22:5]. E essa bebida que o Verbo Deus diz ser o seu sangue, é a Palavra que sacia e inebria os corações dos que bebem; da bebida deste cálice está escrito: Que bom é o teu embriagador cálice! ... O Verbo Deus não chamou seu corpo àquele pão visível que tinha nas suas mãos, mas à Palavra, em cujo mistério devia partir-se o pão. Não chamou seu sangue àquela bebida visível, mas à Palavra, em cujo mistério se serviria esta bebida. Porque que outra coisa pode ser o corpo ou o sangue do Verbo Deus senão a palavra que alimenta e alegra os corações?

(Citado por J. Quasten, Patrología. Madrid: BAC, 1978; 1: 397)

Cipriano de Cartago

Este professor de retórica nascido c. 200, converteu-se ao Evangelho em 246 e pouco depois foi eleito como bispo. Embora os seus escritos tenham contribuído para conceber a Eucaristia como um novo sacrifício, um exame dos textos relevantes mostram que isso se deveu a uma má compreensão deles.

A oração do Senhor, 18

Como a oração prossegue, pedimos e dizemos: "Dá-nos hoje o nosso pão de cada dia." Isto pode entender-se tanto espiritual como literalmente, pois qualquer modo de entendimento é rico em utilidade divina para a nossa salvação. Pois Cristo é o pão da vida; e este pão não pertence a todos os homens, mas é nosso. E como dizemos "Pai nosso", porque Ele é o Pai dos que entendem e crêem; assim também dizemos "pão nosso" porque Cristo é o pão dos que estão em união com o seu corpo. E pedimos que este pão nos seja dado diariamente, que nós que estamos em Cristo e recebemos a Eucaristia diariamente como alimento de salvação, não possamos, pela interposição de algum pecado hediondo, pelo impedimento, enquanto retirados e não comungantes, de participar do pão celestial, ser separados do corpo de Cristo como Ele próprio declara, dizendo, "Eu sou o pão da vida que desceu do céu. Quem quer que coma do meu pão viverá para sempre. E o pão que eu darei é a minha carne pela vida do mundo." Quando, portanto, Ele diz, que se alguém comer do seu pão, viverá para sempre, como é manifesto que os que participam do seu corpo e recebem a Eucaristia por direito de comunhão vivem, assim, por outro lado, devemos temer e orar, para que nenhum, sendo retirado da comunhão, que é separado do corpo de Cristo permaneça separado da salvação; como Ele próprio ameaça, dizendo: "A menos que comais a carne do Filho do homem e bebais o seu sangue, não tereis vida em vós". E portanto, pedimos que o nosso pão, o qual é Cristo, nos possa ser dado diariamente, de modo que nós, que permanecemos e vivemos em Cristo, não possamos ser afastados da sua santificação e do seu corpo.

Epístola 62 (Oxford 63) ano 253

Carta a Cecílio, sobre o sacramento do cálice do Senhor

2. Sabe, então, que fui advertido que, ao oferecer o cálice, a tradição do Senhor deve ser observada, e que nada deve ser feito por nós senão o que o Senhor fez primeiro em nosso benefício, como o cálice que é oferecido em memória d`Ele deve ser oferecido misturado com vinho. Pois quando Cristo diz, "Eu sou a videira verdadeira", o sangue de Cristo seguramente não é água, mas vinho; nem pode o seu sangue pelo qual somos redimidos e ressuscitados parecer estar no cálice, se no cálice não há vinho pelo qual é demonstrado o sangue de Cristo, o qual é declarado pelo sacramento e testemunho de todas as Escrituras.

4 ... Pois, quem é mais sacerdote do Deus Altíssimo que nosso Senhor Jesus Cristo, que ofereceu um sacrifício a Deus o Pai, e ofereceu exactamente a mesma coisa que Melquisedeque havia oferecido, isto é, pão e vinho, ou seja, seu corpo e sangue? ... No Génesis, portanto, para que a bênção, em relação a Abraão por Melquisedeque o sacerdote, possa ser adequadamente celebrada, precede a figura do sacrifício de Cristo, a saber, como ordenada no pão e no vinho, e assim Aquele que é a plenitude da verdade cumpriu a verdade da imagem prefigurada.

7. Em Isaías também o Espírito Santo testifica esta mesma coisa respeitante à paixão do Senhor, dizendo, "Por que é vermelho o teu vestido, e as tuas roupas são como as do que pisou um lagar?" [Isaías 63:2]. Pode a água tornar vermelhos os vestidos? Ou há água no lagar que é pisado pelos pés, ou comprimido pela prensa? Seguramente, portanto, faz-se menção do vinho, para que possa entender-se o sangue do Senhor, e para que o que posteriormente foi manifestado no cálice do Senhor pudesse ser predito pelos profetas que o anunciaram. Insiste-se também repetidamente no pisar e na pressão do lagar, porque como não pode conseguir-se beber o vinho sem que antes o cacho de uvas seja pisado e esmagado, do mesmo modo nós também não poderíamos beber o sangue de Cristo se Cristo não tivesse sido primeiro pisado e esmagado, e não tivesse primeiro bebido do cálice do qual também dá de beber aos crentes.

9 ... [O Senhor ensinou] com o exemplo da sua própria autoridade que o cálice havia de misturar-se com a união de água e vinho. Pois ao tomar o cálice na véspera da sua paixão, o abençoou e o deu aos seus discípulos, dizendo: "Bebei todos disto; porque isto é o meu sangue do Novo Testamento, o qual será derramado por muitos, para a remissão de pecados. Digo-vos que desde agora não beberei mais deste fruto da videira, até àquele dia em que o beba novo convosco no reino de meu Pai." Nesta porção descobrimos que o cálice que o Senhor ofereceu estava misturado, e que era vinho aquilo que chamou seu sangue. Daí que se nota que não se oferece o sangue de Cristo se não há vinho no cálice, nem se celebra o sacrifício do Senhor com uma consagração legítima se a nossa oblação e sacrifício não responderem à sua paixão. Mas como haveremos de beber o novo vinho do fruto da videira com Cristo no reino de seu Pai, se no sacrifício de Deus o Pai e de Cristo não oferecemos vinho, nem misturamos o cálice do Senhor conforme a própria tradição do Senhor?

10. [Citação 1 Coríntios 11: 23-26]. Mas se é ordenado pelo Senhor, e também a mesma coisa é confirmada e entregue pelo seu apóstolo, que todas as vezes que bebermos, façamos em memória do Senhor o mesmo que o Senhor também fez; descobrimos que o que foi mandado não é observado por nós, a menos que também façamos o que o Senhor fez; e que ao misturar o cálice do Senhor da mesma maneira não nos afastamos do ensino divino; mas que não devemos afastar-nos de modo algum dos preceitos evangélicos, e que os discípulos devem também observar e fazer as mesmas coisas que o Mestre tanto ensinou como fez.

...

11. Já que, então, nem o próprio apóstolo nem um anjo do céu pode pregar ou ensinar nada diferente do que Cristo uma vez ensinou e os seus apóstolos anunciaram, muito me pergunto donde se originou esta prática que, contrariamente à disciplina evangélica e apostólica, oferece em alguns lugares água no cálice do Senhor, a qual água não pode por si mesma expressar o sangue de Cristo. O Espírito Santo não está silencioso nos Salmos acerca do sacramento disto, quando menciona o cálice do Senhor, e diz: "Teu cálice embriagante, quão excelente é!" Ora, o cálice que embriaga é certamente misturado com vinho, pois a água não pode embriagar ninguém. E o cálice do Senhor embriaga de tal maneira, como Noé se embriagou bebendo vinho, no Génesis. Mas devido a que a intoxicação do cálice e sangue do Senhor não é como a intoxicação com o vinho do mundo, já que o Espírito Santo disse no Salmo, "Teu cálice embriagante", acrescentou, "Quão excelente é", porque sem dúvida o cálice do Senhor embriaga de tal modo os que o bebem, que os põe sóbrios; que restaura nas suas mentes a sabedoria espiritual; que cada um se recupera do sabor do mundo para o entendimento de Deus; e do mesmo modo que, pelo vinho comum a mente se dissolve, e a alma se relaxa, e toda a tristeza é deixada de lado, assim, quando o sangue do Senhor e o cálice da salvação foi bebido, a memória do velho homem é deixada de lado, e surge um esquecimento da anterior conduta mundana, e o agoniado e triste peito que era oprimido pelos atormentadores pecados é aliviado pelo gozo da divina misericórdia; porque somente é capaz de regozijar-se quem bebe na Igreja a qual, quando está embriagada, retém a verdade do Senhor.

13. Pois porque Cristo nos carregou a todos, em que Ele carregou também com os nossos pecados, vemos que na água é entendido o povo, mas no vinho é mostrado o sangue de Cristo. Mas quando a água é misturada no cálice com vinho, o povo é feito um com Cristo, e a assembleia de crentes é associada e reunida com Ele em quem ela crê; a qual associação e conjunção de água e vinho está tão misturada no cálice do Senhor, que aquela mistura já não pode ser mais separada. Daí que nada pode separar a Igreja – isto é, o povo estabelecido na Igreja, fiel e firmemente perseverantes no que creram - de Cristo, de um modo tal que impedisse o seu amor indiviso de permanecer e aderir. Assim, portanto, ao consagrar o cálice do Senhor não pode oferecer-se só água, como nem somente vinho. Pois se alguém oferecesse só vinho, o sangue de Cristo está dissociado de nós; mas se a água estiver sozinha, o povo está dissociado de Cristo; mas quando ambos estão misturados, e se unem entre si com um estreito vínculo, completa-se um sacramento espiritual e celestial. Assim o cálice do Senhor não é certamente só água, nem só vinho, a menos que cada um se misture com o outro; do mesmo modo em que, por outro lado, o corpo do Senhor não pode ser só farinha ou só água, se ambas não se unem e se compactam na massa de um pão; no qual mesmíssimo sacramento o nosso povo demonstra ser um, de forma que de modo similar a muitos grãos, colhidos, e moídos, e misturados numa massa, fazem um pão; assim em Cristo, que é o pão celestial, podemos saber que há um corpo, com cujo nosso número é aumentado e unido.

14. Não há então razão, queridíssimo irmão, para que alguém pense que deve seguir-se o costume de certas pessoas, que outrora pensaram que no cálice do Senhor deve oferecer-se só água. Pois devemos averiguar a quem seguiram elas próprias. Pois se no sacrifício que ofereceu Cristo ninguém deve ser seguido senão Cristo, certamente nos corresponde obedecer e fazer aquilo que Cristo fez, e o que mandou que fosse feito, já que Ele mesmo diz no Evangelho: "Se fizerdes tudo o que vos mando, não vos chamarei servos, mas amigos". E que só Cristo deva ser ouvido, também o testemunha o Pai desde o céu, dizendo: "Este é o meu Filho amado, em quem me comprazo; a Ele ouvi". Pelo que, se só Cristo deve ser ouvido, não devemos prestar atenção ao que outro antes de nós pode ter pensado que deva fazer-se, mas ao que Cristo, que é antes de todos, fez primeiro. Nem convém seguir a prática do homem, mas a verdade de Deus, já que Deus fala pelo profeta Isaías, e diz: "Em vão me adoram, ensinando mandamentos e doutrinas de homens". E de novo no Evangelho o Senhor repete este mesmo dito, e diz, "Rejeitais o mandamento de Deus para guardar a vossa própria tradição". Além disso, noutro lado o estabelece dizendo: "Qualquer que violar um destes mandamentos muito pequenos, e o ensine aos homens a fazê-lo, será chamado o menor no reino dos céus". Mas se não podemos violar nem sequer o menor dos mandamentos do Senhor, quanto mais está proibido infringir os tão importantes, tão grandes, tão relacionados com o sacramento da paixão de nosso Senhor e a nossa própria redenção, ou mudá-lo por tradição humana em qualquer outra coisa diferente do que foi divinamente disposto! Pois se Cristo, nosso Senhor e Deus, é ele mesmo o sumo sacerdote de Deus o Pai, e se ofereceu primeiro a Si mesmo como sacrifício ao Pai, e mandou que isto seja feito em memória d`Ele mesmo, certamente cumpre com o ofício de Cristo o sacerdote que imita o que fez Cristo; e então oferece um verdadeiro e pleno sacrifício na Igreja a Deus o Pai, quando ao oferecê-lo procede conforme o que vê que Cristo mesmo ofereceu.

17. E porque fazemos menção da sua paixão em todos os sacrifícios (pois a paixão do Senhor é o sacrifício que oferecemos) não devemos fazer nada mais além do que Ele fez. Porque diz a Escritura, "Pois todas as vezes que comerdes este pão e beberdes este cálice, anunciais a morte do Senhor até que Ele venha". Todas as vezes, portanto, que oferecermos o cálice em comemoração do Senhor e da sua paixão, façamos o que é sabido que fez o Senhor. E permite, queridíssimo irmão que se chegue a esta conclusão: se entre os nossos predecessores algum seja por ignorância ou simplicidade, não observou e guardou isto que o Senhor por seu exemplo e ensino nos instruiu que façamos, pode, pela misericórdia do Senhor, ter perdão concedido para a sua simplicidade. Mas não podem ser perdoados os que são agora admoestados e instruídos pelo Senhor para oferecer o cálice do Senhor misturado com vinho conforme o que o Senhor ofereceu, e para dirigir cartas aos nossos colegas acerca disto, de modo que a lei evangélica e a tradição do Senhor possa ser guardada em todos os lados, e não haja desvio do que Cristo tanto ensinou como fez.

Epístola 75 a Magnus (Oxford 69); ano 255

6. Além disso, mesmo os sacrifícios do Senhor declaram eles próprios que a unanimidade cristã está ligada em si mesma por um firme e inseparável amor. Pois quando o Senhor chama ao pão, o qual é composto pela união de muitos grãos, seu corpo, indica o nosso povo que Ele carregou como estando unido; e quando chama ao vinho, o qual é espremido de muitas uvas e cachos e recolhido, seu sangue, também significa o nosso rebanho reunido pela mistura de uma multidão unida.

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