domingo, 31 de janeiro de 2010

O cânon do Antigo Testamento antes do Concílio de Trento


A opinião amplamente maioritária até ao século XVI é que o cânon do AT como regra de fé era o hebreu; admitindo-se ao mesmo tempo que os livros chamados Apócrifos ou Eclesiásticos e depois deuterocanónicos são úteis para a edificação mas não para fundar doutrinas.

I. O cânon do Antigo Testamento: séculos II e III

Além do que pode inferir-se com base no uso de determinados livros, o primeiro autor cristão cuja opinião explícita do cânon do AT se conservou (graças a Eusébio de Cesareia) é Melitão, bispo de Sardes na Ásia Menor (m. cerca de 190). Na sua carta a Onésimo dá um «catálogo dos escritos admitidos do Antigo Testamento» que corresponde essencialmente ao cânon hebreu, apenas com a omissão de Ester (Eusébio, História Eclesiástica IV, 26:12-14).

Um catálogo similar e provavelmente contemporâneo (século II), mas com o acréscimo de Ester, foi achado em 1875 no mesmo manuscrito em que se encontrou a Didaquê, ou Doutrina dos Doze Apóstolos, um dos mais antigos documentos cristãos extracanónicos.

Em meados do seguinte século, o destacado erudito bíblico Orígenes de Alexandria, que pode considerar-se com justiça o pai da crítica textual, afirmava: «Não se deve ignorar que os livros  testamentários, tal como os transmitiram os hebreus, são vinte e dois, tantos como o número de letras que há entre eles». Orígenes dá depois uma lista de tais livros que correspondem quase exatamente ao cânon hebreu exceto pelo acréscimo da «carta de Jeremias»; como parte do livro canónico do mesmo nome, e pela omissão dos Profetas menores (Eusébio, História Eclesiástica VI, 25:1-2). Este último aspecto é seguramente um deslize original ou de transcrição, já que o total referido é de 21 e a canonicidade de dito livro – os Doze Profetas Menores - nunca esteve em dúvida. Diz Orígenes explicitamente que os livros de Macabeus estão «à parte destes». Há que reconhecer, no entanto, que na prática, Orígenes se negou a excluir totalmente os apócrifos, porque eram usados na Igreja, como ele mesmo o explica na sua Carta a Júlio Africano.


II . O cânon do Antigo Testamento: séculos IV e V

Uma evidência da «fluidez» do cânon do AT naquele tempo, no que aos livros Eclesiásticos diz respeito, é indicada pelos mais antigos códices existentes: o Sinaítico e o Vaticano, ambos do século IV, e o Alexandrino, do seguinte século. Estes manuscritos que são cristãos, incluem o AT grego da Septuaginta, a  tradução judaica alexandrina pré-cristã, mas (além de perdas acidentais) diferem nos livros apócrifos/deuterocanónicos incluídos. O Sinaítico inclui, além de Tobite, Judite, 1 Macabeus, Sabedoria de Salomão e Eclesiástico (Sirá), 4 Macabeus (que nunca foi tido por canónico), enquanto exclui 2 Macabeus e Baruc. O códice Vaticano exclui todos os livros de Macabeus; pelo contrário, o Alexandrino inclui os quatro livros de Macabeus. Em outras palavras, nos manuscritos às vezes faltam livros tidos hoje por canónicos pela Igreja de Roma, e noutras ocasiões estão incluídos livros cuja canonicidade rejeita a citada Igreja.

Atanásio, bispo de Alexandria e campeão da ortodoxia nicena, na sua carta pascal 39ª de 367 dá aos bispos africanos uma lista de livros do AT similar à hebraica, com a diferença de que inclui Baruc e a Carta de Jeremias e omite Ester. A lista é parecida à de Orígenes, ainda que ponha Rute separado de Juízes. Diz Atanásio:

"Mas para maior exatidão devo ... acrescentar isto: há outros livros fora destes, que não estão certamente incluídos no cânon, mas que foram desde o tempo dos padres dispostos para ser lidos aos que são recém-convertidos à nossa comunhão e desejam ser instruídos na palavra da verdadeira religião. Estes são a Sabedoria de Salomão, a Sabedoria de Sirá [Eclesiástico], Ester, Judite e Tobite ... Mas enquanto os primeiros estão incluídos no cânon e estes últimos se leem [na igreja], não se deve fazer menção aos livros apócrifos. São a invenção de hereges que escrevem segundo a sua própria vontade ..."

Nicene and Post-Nicene Fathers, 2nd Series (= NPNF2), 4:551-552

Como pode ver-se, Atanásio tornou explícito o que Orígenes fez na prática: reconhecer essencialmente o cânon hebreu, enquanto admitia a  existência de livros que, embora fora do cânon, tinham valor para a  instrução. Por outro lado, aqueles que ele chama apócrifos são obra de hereges e devem ser excluídos.

Quatro anos antes de Atanásio escrever esta carta houve um sínodo em Laodiceia, em cujo cânon 59 se estabelecia que nas Igrejas deviam ser lidos apenas os livros canónicos dos Testamentos Antigo e Novo. O cânon 60 dá uma lista essencialmente igual à de Atanásio, mas inclui o livro de Ester (NPNF2 14:158-159). É possível que este cânon 60 seja uma adição posterior.

Cirilo, bispo de Jerusalém entre 348 e 386, segue basicamente a opinião de Orígenes, mas inclui Baruc (NPNF2, 7:27).

Gregório Nacianceno (330-390) dá uma lista de livros canónicos em verso, onde reconhece vinte e dois livros; omite Ester (Hino 1.1.72.31). Anfilóquio, bispo de Icónio (m. cerca de 394) dá uma lista igual à de Gregório, mas acrescenta: «Juntamente com estes, alguns incluem Ester».

Epifânio, bispo de Salamina em Chipre (315-403) dá uma lista de 22 livros similar à anónima do século II mencionada mais acima (Sobre pesos e medidas, 23). Em outro lado, acrescenta como apêndice a uma lista de livros do Novo Testamento a Sabedoria de Salomão e a de Sirá (Panarion 76:5).

Jerónimo (346-420) foi secretário do bispo de Roma, Dámaso, entre 382 e 384. Por pedido de Dámaso, começou a rever os Salmos e os Evangelhos (ou quiçá todo o Novo Testamento) da versão bíblica chamada Latina Antiga. Depois da morte de Dámaso, em 384, começou uma peregrinação até que se estabeleceu em Belém (Palestina) em 386. Aí prosseguiu a sua tarefa. Começou com uma nova revisão do Saltério em latim conforme à Septuaginta (LXX). No entanto, rapidamente se convenceu de que devia trabalhar a partir do texto hebraico. A sua obra de tradução do AT foi completada em 405. Ao que parece não planeava incluir os apócrifos/deuterocanónicos mas mais tarde cedeu ao costume prevalecente (eclesiástico) e realizou uma tradução de Tobite e Judite «do aramaico»; o resto dos apócrifos/deuterocanónicos não foi traduzido por ele, mas acrescentado por outros tal como se achavam na Latina Antiga. Não é verdade que os incluísse por ordem de Dámaso, que já estava morto há mais de 20 anos quando Jerónimo completou o seu trabalho.

Jerónimo enumera o cânon hebreu palestino exatamente, e dá conta da dupla numeração como 24 ou 22, segundo se Rute e Lamentações se contassem por separado ou agregados, respetivamente, a Juízes e Jeremias. Depois escreve:

"Este prólogo às Escrituras pode servir como um prefácio com elmo [galeatus] para todos os livros que vertemos do hebraico para o latim, para que possamos saber – os meus leitores tanto como eu mesmo - que qualquer [livro] que esteja para lá destes deve ser reconhecido entre os apócrifos. Portanto, a Sabedoria de Salomão, como se a titula comummente, e o livro do Filho de Sirá [Eclesiástico] e Judite e Tobias e o Pastor não estão no Cânon."

Jerónimo traçou a diferença entre os livros canónicos e os eclesiásticos como se segue:

"Como a Igreja lê os livros de Judite e Tobite e Macabeus, mas não os recebe entre as Escrituras canónicas, assim também lê Sabedoria e Eclesiástico para a edificação do povo, não como autoridade para a confirmação da doutrina."

De igual modo, sublinhou que as adições a Ester, Daniel e Jeremias (o livro de Baruc) não tinham lugar entre as Escrituras canónicas.

Agostinho (354-430), bispo de Hipona, foi o grande autor cristão quase  contemporâneo de Jerónimo. Agostinho possuía uma bagagem teológica que faltava a Jerónimo, mas em compensação este tinha um sentido crítico bíblico muito mais desenvolvido. Embora Agostinho reconhecesse a importância das línguas originais, não sabia hebraico, e instou na sua correspondência com Jerónimo a que este realizasse a sua nova versão a partir da Septuaginta. Dá uma lista do cânon do Antigo e Novo Testamentos em Sobre a Doutrina Cristã 2 (8):13, no qual inclui os apócrifos/deuterocanónicos. No entanto, em outras ocasiões Agostinho demonstra estar consciente da distinção entre o cânon e o uso eclesiástico:

Desde o tempo da restauração do templo entre os judeus já não houve reis, mas príncipes, até Aristóbulo. O cálculo do tempo destes não se encontra nas Santas Escrituras chamadas canónicas, mas em outros escritos, entre os quais estão os livros dos Macabeus, que não têm por canónicos os judeus, mas a Igreja...

A Cidade de Deus, XVIII:36

No entanto, como outros autores cristãos antes dele, na prática a distinção era frequentemente esquecida.

Concílios africanos. Estes realizaram-se em finais do século IV e princípios do V, e a autoridade de Agostinho parece ter sido decisiva. Não há documentos do Concílio de Hipona de 393, mas outro sínodo em Cartago (397) reafirma a lista de livros do AT e NT, este último tal como hoje o conhecemos (uma lista igual havia sido dada 30 anos antes por Atanásio na sua Carta Pascal), e o AT com os livros Eclesiásticos, incluído 1 Esdras (= 3 Esdras no Apêndice da Vulgata), que não forma parte do Cânon de Trento. A decisão foi ratificada no sexto Concílio de Cartago de 419. Não figuram as distinções que tinha indicado Agostinho (e outros antes dele).

O bispo de Roma Inocêncio I, numa carta ao bispo de Tolosa, Exupério, dá em 405 uma lista de livros do AT que inclui os apócrifos/deuterocanónicos (com 1 Esdras).

Rufino, contemporâneo de Jerónimo, no seu Comentário ao Credo dos  Apóstolos dá depois do Concílio de Cartago de 397 uma lista de livros do AT que corresponde exatamente ao cânon hebreu. Depois precisa:

Mas devia saber-se que há também outros livros que nossos padres não chamam canónicos, mas eclesiásticos, ou seja, Sabedoria, chamado Sabedoria de Salomão, e outra Sabedoria, chamada a Sabedoria do filho de Sirá, o último dos quais os latinos chamam pelo título geral de Eclesiástico ...

Ao mesmo tipo pertencem o livro de Tobite, e o livro  de Judite, e os livros dos Macabeus ... todos os quais se leram nas Igrejas, mas não se apela a eles para a confirmação da doutrina. Aos outros escritos lhes chamaram «Apócrifos»; estes não admitiram que se leiam nas Igrejas.

(NPNF2  3:558)

Atribui-se a Gelásio, bispo de Roma (492-496) um decreto acerca dos livros que devem ser recebidos e dos que não devem ser recebidos, que segundo alguns manuscritos é atribuído ao papa Dámaso; no entanto, o tal Decreto parece ser uma compilação realizada em Itália no século VI.


III. O cânon do Antigo Testamento: séculos VI e VII

Um século mais tarde Gregório Magno, bispo de Roma  (590-604) continuava a insistir na distinção entre livros canónicos e eclesiásticos:

Em relação a tal particular não estamos a agir irregularmente, se dos livros, ainda que não canónicos, no entanto outorgados para a edificação da Igreja, extraímos testemunho. Assim, Eleázar na batalha feriu e derribou o elefante, mas caiu debaixo da própria besta que tinha matado [1 Macabeus 6:46].

Library of the Fathers of the Holy Catholic Church, 2:424; negrito acrescentado.

Que a questão do cânon do AT não estava nem pouco mais ou menos resolvida, o confirma não só Gregório Magno, mas outros bispos como os africanos JumiliusPrimasius (seguem Jerónimo), Anastácio de Antioquia e Leôncio, que reconhecem o cânon hebreu.

Sexto Concílio Ecuménico. No sínodo de Constantinopla, chamado Trulano, reunido em 692 como uma espécie de continuação do Sexto Concílio  Ecuménico, Terceiro de Constantinopla (680-681) se ratificaram os cânones dos Concílios anteriores, incluindo o de Cartago. Com isto poderia pensar-se que implicitamente se ratificou o cânon do AT ali determinado. No entanto, no mesmo documento os bispos conciliares também ratificavam os «cânones» (cartas decretais) de Atanásio, Gregório Nacianceno e Anfilóquio, os quais, como vimos, defendiam um cânon virtualmente igual ao hebreu (NPNF2 14:361). De modo que não fica clara a posição destes bispos do VI Concílio Ecuménico acerca do cânon do AT; é possível que eles mesmos não tivessem uma posição uniforme.

No mesmo século João de Damasco (aprox. 675-749), na sua Exposição da Fé Ortodoxa (4:18) defende também o cânon hebreu, o qual explica com certo detalhe, e acrescenta:

Está também o Panaretus, isto é, a Sabedoria de Salomão, e a Sabedoria de Jesus, publicada em hebraico pelo pai de Sirá [=Eclesiástico] e posteriormente traduzido para o grego por seu neto, Jesus filho de Sirá. Estes  são virtuosos e nobres, mas não são contados nem foram depositados na arca.

(NPNF2 9:89-90)


IV. O Cânon do Antigo Testamento: Curso Posterior

Poderiam citar-se muitos outros autores entre os séculos IX e XV que  sustiveram explicitamente o cânon hebreu e respeitaram a distinção traçada por Jerónimo. Por exemplo, Beda,  Alcuíno, Nicéforo de Constantinopla, Rábano Mauro, Agobardo de Lyon, Pedro Maurício, Hugo e Ricardo de São Vítor, Pedro Comestor, João Belet, João de Salisbury, o anónimo autor da Glossa Ordinaria, João de Columna, arcebispo de Messina, Nicolau de Lira, William Occam, Afonso Tostado, bispo de Ávila, e o Cardeal Francisco Jiménez de Cisneros (editor da famosa Poliglota Complutense, o maior monumento à erudição bíblica católica do século XVI). A posição deste último era a seguinte:

O cardeal Jiménez de Cisneros produz em Espanha a sua monumental Bíblia poliglota chamada Complutense (1514–1517), com o texto latino da Vulgata no centro, o grego da Septuaginta de um lado e o hebraico massorético do outro, que representam respetivamente a Igreja Grega e a Sinagoga, e diz que o texto latino se imprime no meio «como Jesus foi crucificado entre dois ladrões». Mas quanto aos deuterocanónicos, que estão incluídos na Complutense, explica no seu Prefácio que são recebidos pela Igreja para edificação, mas não para fundamentar doutrinas, pelo que se vê que o ditame de São Jerónimo continua ainda em vigência.

(Gonzalo Báez-Camargo, Breve historia del Canon bíblico , 1980, p. 56; negrito acrescentado)

Duas importantes autoridades sobre a Bíblia, nessa mesma época, são Erasmo de Roterdão, o eminente humanista, e o cardeal Caetano. Erasmo dá a lista do cânon hebreu omitindo Ester. E dos deuterocanónicos, entre os quais coloca este livro, sem dúvida porque está considerando-o no seu texto grego (com adições) e não no hebraico, diz que «foram recebidos para o uso eclesiástico», mas que "seguramente (a Igreja) não deseja que Judite, Tobite e Sabedoria tenham o mesmo peso que o Pentateuco".

Eis aqui como resume a situação no Ocidente um autor católico:

Na Igreja latina, ao longo de toda a Idade Média achamos evidência de hesitação acerca do caráter dos deuterocanónicos. Há uma corrente amistosa para com eles, outra distintamente desfavorável para com a sua autoridade e sacralidade, enquanto oscilando entre ambas há um número de escritores cuja veneração por estes livros é temperada por certa perplexidade acerca da sua posição exata, e entre eles encontramos São Tomás de Aquino. Encontram-se poucos que reconheçam inequivocamente a sua canonicidade. A atitude prevalecente dos autores ocidentais medievais é substancialmente a dos Padres gregos.

(George J. Reid,  Canon of the Old Testament, em The Catholic Encyclopedia ,1913; negrito acrescentado)

O peso da evidência indica que por muito tempo existiu uma distinção  entre os livros canónicos (basicamente o cânon hebreu) e os  eclesiásticos, que correspondem aos apócrifos/deuterocanónicos.  Lamentavelmente, a nomenclatura nos autores antigos não é uniforme, e  assim o próprio Jerónimo chama «apócrifos» aos Eclesiásticos; mas às vezes reserva tal apelativo para os livros heréticos. De igual modo, havia confusão acerca do termo «canónico» que em sentido estrito costumava reservar-se para os livros considerados inspirados e santos de maneira singular, mas que com frequência  se referia a toda a coleção, incluindo os eclesiásticos. Este problema foi notado pelo Cardeal Tomás de Vio (Caetano):

Aqui concluímos nossos comentários sobre os livros históricos do Antigo Testamento. Pois o resto (isto é, Judite, Tobite, e os livros de Macabeus) são contados por Jerónimo fora dos livros canónicos. E são postos entre os apócrifos. Juntamente com Sabedoria e Eclesiástico, como é evidente do Prólogo com Elmo. E não te preocupes, como um erudito principiante, se acharem em qualquer lado, seja nos sagrados concílios ou nos sagrados doutores, estes livros reconhecidos como canónicos. Pois as palavras tanto dos concílios como dos doutores devem ser reduzidas à correção de Jerónimo. Ora, segundo o seu juízo, na carta aos bispos Cromácio e Heliodoro, estes livros (e quaisquer outros como eles no cânon da Bíblia) não são canónicos, isto é, não são da natureza de uma regra para confirmar assuntos de fé. Contudo, eles podem ser chamados canónicos, isto é, da natureza de uma regra para a edificação dos fiéis, como tendo sido recebidos e autorizados no cânon da Bíblia para este  propósito. Com a ajuda desta distinção tu podes ver o teu caminho claramente através do que diz Agostinho, e do que está escrito no Concílio provincial de Cartago.

(Sobre o último Capítulo de Ester)

Como pode ver-se, já bem dentro do século XVI eminentes eruditos católicos ainda sustentavam, para o Antigo Testamento, a distinção entre livros Canónicos propriamente ditos (os do cânon hebreu) e livros Eclesiásticos (num nível inferior e portanto não canónicos em sentido estrito).

O cânon do Antigo Testamento que a Igreja Católica determinou para sua total satisfação não somente difere do hebreu e protestante, mas é diferente do aceite em Cartago e do admitido pelas diversas igrejas Ortodoxas orientais. A decisão dogmática do Concílio de Trento pôs (pelo menos para os católicos) fim a esta distinção muito razoável e sustentada pela maioria durante séculos.


Fernando D. Saraví
Mendoza-Argentina

segunda-feira, 25 de janeiro de 2010

Evidência do cânon hebreu antes da discussão de Jâmnia


O conjunto da evidência mostra que nos tempos de Jesus os hebreus já sabiam que livros [do AT obviamente] eram canónicos e quais não. Depois de Jesus somente houve entre os judeus algumas discussões acerca da permanência no cânon de alguns livros como Ester e Eclesiastes (que permaneceram) mas em nenhum caso se considerou acrescentar alguma coisa.

Eis aqui uma apresentação da evidência, ordenada de forma aproximadamente cronológica.


I.  O testemunho dos Livros Eclesiásticos (Deuterocanónicos ou Apócrifos)

1. Jesus ben Sirá (= Eclesiástico).

Este é o meu deuterocanónico/apócrifo favorito (sem ironia). No prólogo do tradutor, lemos: "Muitos e excelentes ensinamentos nos foram transmitidos pela Lei, pelos Profetas, e por outros Escritos que se lhes seguiram; e, por causa disso, convém louvar Israel pela sua instrução e pela sua sabedoria. E, como não se deve aprender a ciência apenas pela leitura ... Jesus, meu avô, depois de se ter aplicado com afinco ao estudo da Lei, dos Profetas e dos outros Livros dos nossos antepassados … quis também escrever alguma coisa de instrução e de sabedoria..."  Eclesiástico, Prol. 1-12.

Aqui menciona-se, num documento do século II a.C., a divisão tripartida do AT – Lei, Profetas e outros Escritos - da qual o autor fala como coisa conhecida aos seus leitores. Mas, além disso, prossegue: "Sois, portanto, convidados a ler este livro com benevolência e atenção, e a ser indulgentes pois, não obstante todo o engenho com que nos aplicámos, parece não termos conseguido traduzir adequadamente a ênfase de certas expressões." Eclesiástico, Prol. 15-20.

Este tipo de desculpa por um trabalho possivelmente defeituoso nunca se ouve em nenhum livro do cânon palestino.

2. II Macabeus

Igualmente, noutro apócrifo/deuterocanónico, 2 Macabeus, se apela à boa vontade do leitor: "..assumimos este encargo [de resumir] para obter gratidão de muitos. E, deixando ao autor o cuidado de narrar detalhadamente os assuntos, nós esforçámo-nos por expô-los em forma resumida." (2:27-28). "...terminarei também com isto a minha narração. Se ela está felizmente concebida e ordenada, era este o meu desejo; mas se está imperfeita e medíocre, foi o que pude fazer." 2 Macabeus 15:37-38.

Os autores dos livros canónicos falavam da parte de Deus e diziam o que Ele lhes mandava, sem nenhum tipo de desculpas. É claro que os autores destes livros tinham consciência de estar a escrever por sua própria conta.

3. I Macabeus

O primeiro livro dos Macabeus, um dos que são considerados deuterocanónicos pela Igreja Católica, dá testemunho em repetidas oportunidades da convicção do seu autor da ausência de profetas no seu tempo. As seguintes citações (com negrito acrescentado) provêm da Bíblia de Jerusalém: "Deliberaram sobre o que se deveria fazer com o altar dos holocaustos que estava profanado. Com bom parecer acordaram demoli-lo para evitar um opróbrio, dado que os gentios o tinham contaminado. Demoliram-no, pois, e depositaram as suas pedras no monte da Casa, num lugar conveniente, até que surgisse um profeta que desse resposta sobre elas" 1 Macabeus 4:44-46. "Com a morte de Judas assomaram os sem lei por todo o território de Israel e levantaram a cabeça todos os que praticavam a iniquidade. Houve então uma fome extrema e o país se passou para eles... Tribulação tão grande não sofreu Israel desde os tempos em que deixaram de aparecer profetas" 1 Macabeus 9:23s, 27. "Por conseguinte, o rei Demétrio lhe concedeu [a Simão] o sumo sacerdócio ... aos judeus e aos sacerdotes lhes tinha parecido bem que fosse Simão o seu hegúmeno e sumo sacerdote para sempre até que aparecesse um profeta digno de fé..." 1 Macabeus 14:38,41.

O autor do livro é um judeu palestino que provavelmente escreveu não muito depois dos acontecimentos que narra, provavelmente em finais do século II a.C. Segundo a Introdução da Bíblia de Jerusalém, com as devidas precauções, 1 Macabeus «é um documento precioso para a história daquele tempo».

Uma vez que os profetas eram os homens que falavam da parte de Deus, a convicção de uma ausência de profetas no seu próprio tempo, juntamente com a esperança de que no futuro reapareceriam, é um forte testemunho a favor da ideia de que em finais do século II a.C. já se considerava fechado o cânon das Escrituras.

II.  O testemunho de Filão de Alexandria

Filão de Alexandria foi um destacado filósofo judeu helenista (ca. 20 a.C. – ca. 50 d.C.). É uma testemunha importante do cânon por três razões (1) a sua vida se sobrepõe no tempo com a vida terrenal de Jesus; (2) era judeu e vivia em Alexandria, o suposto berço do hipotético cânon mais extenso do Antigo Testamento; e (3) conhecia e utilizava profusamente as Escrituras.

David M. Scholer, no prólogo da tradução das obras completas de Filão para o inglês, faz as seguintes observações:

«A preocupação de Filão de interpretar Moisés mostra constantemente tanto a sua profunda devoção e compromisso com a sua herança, crenças e comunidade judias, como também reflete o seu uso aberto de categorias e tradições filosóficas ... A discussão erudita de se Filão é primariamente judeu ou grego está na realidade desorientada. No tempo de Filão muito do judaísmo estava significativamente helenizado. O compromisso de Filão com a Lei de Moisés e a paixão por ela era genuíno e reitor. Filão bebeu também profundamente na fonte filosófica da tradição platónica e a viu como fortalecedora e aprofundadora do seu entendimento da Lei de Moisés...

Filão é significativo para a compreensão do judaísmo helenístico do primeiro século d.C. É a principal figura literária sobrevivente do judaísmo helenizado do período do segundo Templo do judaísmo antigo. Filão é crítico para entender muitas das correntes, temas e tradições interpretativas que existiam na Diáspora e no judaísmo helenístico. Filão confirma o caráter multifacetado do judaísmo do segundo Templo; não era certamente um fenómeno monolítico. O judaísmo, apesar das suas preocupações pela pureza e pela identidade étnica em relação à Lei de Moisés, também achou considerável liberdade para participar em muitos aspectos da cultura helénica, como tão claramente o evidencia Filão.

Filão é também valioso para entender a igreja primitiva e os escritos do Novo Testamento, especialmente os de Paulo, João e Hebreus. Às vezes esquece-se que os documentos do Novo Testamento foram escritos em grego por autores que eram judeus (agora comprometidos a entender Jesus como Cristo e Senhor), que eram parte da cultura helenística do mundo greco-romano. A maior parte das igrejas primitivas refletidas e descritas no Novo Testamento eram parte da trama social do mundo helenístico greco-romano. Precisamente porque Filão é um judeu helenístico, é essencial para os estudos do Novo Testamento. A Igreja cristã foi a preservadora primária dos escritos de Filão, que era virtualmente desconhecido para a tradição judaica, desde logo, do seu próprio tempo, até ao século XVI».

The Works of Philo- Complete and unabridged. Transl. C.D. Yonge; New Updated Version. Peabody: Hendrickson, 1993, pp. XIII; negrito acrescentado.


Mediante a interpretação alegórica, Filão propôs uma forma de compatibilizar os ensinamentos dos filósofos pagãos com a revelação bíblica. Por esta razão, nos seus escritos encontra-se um grande número de citações bíblicas. A maior parte das suas citações bíblicas provêm da Torah ou Pentateuco, embora também cite Josué, Juízes, Samuel, Reis, Isaías, Jeremias, os Profetas Menores Oseias e Zacarias, os Salmos, Job, Provérbios e o rolo de Crónicas-Esdras-Neemias.

No índice da edição das suas obras completas já citada (pp. 913-918), contam-se aproximadamente mil citações das Escrituras, o que dá uma ideia da intensidade do uso destes textos por sua parte. Dados todos os factos assinalados acerca de Filão, pode ser uma grande surpresa para alguns que este judeu helenístico, contemporâneo de Jesus, que viveu precisamente em Alexandria, nunca cita nenhum dos livros que supostamente pertenciam ao "cânon alexandrino".

A ausência de citações dos livros deuterocanónicos em Filão é ainda mais notável quando se pensa que alguns destes livros, como por exemplo, a Sabedoria de Salomão ou o Eclesiástico, teriam fornecido excelente material documental para a sua própria tese da compatibilidade entre a filosofia grega e a revelação bíblica. O facto de Filão não ter usado estes livros, que de certeza lhe eram conhecidos, é muito difícil de explicar a não ter havido em Alexandria um consenso acerca dos livros canónicos essencialmente igual ao da Palestina.

III. O testemunho do Targum

Pierre Grelot explica:

"A palavra targum passou para o aramaico e depois para o hebraico a partir do acádio targumanu, o «intérprete», que se designava a si mesmo com uma palavra de origem estrangeira (hitita). No judaísmo é utilizada para falar de todo um sector da literatura rabínica que apresenta «traduções interpretativas» dos livros sagrados. Traduções, porque os livros sagrados continuam a estar na sua base; trata-se de torná-los inteligíveis a pessoas que não leem o hebraico, oralmente ou por escrito; interpretativas, porque não se trata, pelo menos muitas vezes, de traduções literais, mas de textos em que a interpretação do original incorporou-se à leitura mediante ampliações mais ou menos extensas".

Pierre Grelot, Los tárgumes. Textos escogidos. Estella: Verbo Divino, 1987, p. 5


O uso destas paráfrases em aramaico das Escrituras hebraicas incorporou-se ao culto da sinagoga para tornar inteligíveis os textos sagrados para quem não falasse hebraico, especialmente para a liturgia dos hebreus de fala aramaica. Existem targumes de quase todos os livros do Antigo Testamento segundo o cânon hebreu, dos séculos II a.C a I d.C.: da Torá, dos Profetas Anteriores e Posteriores, dos Cinco Rolos (Megillot = Cantares, Rute, Lamentações, Eclesiastes e Ester) e dos Escritos (Salmos, Provérbios, Job, e Crónicas).

Não há, em contrapartida, targumes antigos que expliquem os livros deuterocanónicos. Os poucos que existem são tardios, baseiam-se no texto grego de Tobite e nas adições a Daniel e na oração de Ester. Portanto, o uso das Escrituras parafraseadas na liturgia hebraica, corrobora a autenticidade do cânon hebreu do Antigo Testamento.

IV.  O testemunho do Novo Testamento

Embora o exato processo de agregação dos deuterocanónicos/apócrifos ao cânon hebreu pelo uso da Igreja antiga gere muitas interrogações, o que fica claro é que tais adições carecem por completo de autoridade por parte do Senhor Jesus, dos Apóstolos ou dos autores do Novo Testamento, que não a deram nem explicitamente nem por via de exemplo através de citá-los como Escrituras.

Em contrapartida, é uma evidência indireta do cânon hebreu palestino, sobre o qual claramente existia um consenso no século I, o modo em que Jesus fez referência ao primeiro e ao último mártir segundo a ordem tradicional hebraica:

"Por isso disse a Sabedoria de Deus: Enviar-lhes-ei profetas e apóstolos, e a alguns os matarão e perseguirão, para que se peçam contas a esta geração do sangue de todos os profetas derramado desde a criação do mundo, desde o sangue de Abel até ao sangue de Zacarias, que pareceu entre o altar e o santuário. Sim, vos asseguro que se pedirão contas a esta geração." Lucas 11:49-51

Jesus refere-se aqui a todos os justos e enviados de Deus que sofreram o martírio segundo as Escrituras. A frase grega apo haimatos Abel eôs haimatos Zachariou, «desde (o) sangue de Abel ... até (o) sangue de Zacarias» (Lucas 11:51 = Mateus 23:35) parece abarcar a totalidade dos mártires do Antigo Testamento, desde Abel às mãos do seu irmão Caim, até o de Zacarias, que se narra em 2 Crónicas:

"O Senhor enviou-lhes profetas que deram testemunho contra eles para que se convertessem a ele, mas não lhes deram ouvidos. Então o Espírito de Deus revestiu Zacarias, filho do sacerdote Joiadá que, apresentando-se diante do povo, lhes disse: «Assim diz Deus: Por que transgredis os mandamentos do Senhor? Não tereis êxito, pois, por ter abandonado o Senhor, ele vos abandonará a vós». Mas eles conspiraram contra ele, e por ordem do rei, o apedrejaram no átrio da casa do Senhor". 2 Crónicas 24:17-21

No entanto, a referência a Abel e Zacarias como o primeiro e o último mártir, respetivamente, registados nas Escrituras não é cronológica. Há pelo menos um mártir posterior a Zacarias, a saber, Urias, filho de Semaías, que foi assassinado no século VII a.C., durante o reino de Joaquim (Jeremias 26:20-24); entretanto Zacarias tinha sido martirizado muito antes, no século IX a.C., durante o reino de Joás em Judá.

Como deve entender-se então a referência de Jesus a Abel e Zacarias? A amplitude da lista de mártires não é evidente no Antigo Testamento das nossas versões modernas, pois a ordem dos livros difere da ordem hebraica. No Antigo Testamento da maioria das edições modernas, os livros dos Profetas aparecem no final, começando por Isaías e finalizando com Malaquias. Em contrapartida, os 24 livros do cânon hebreu (que correspondem aos 39 das Bíblias protestantes) se ordenavam como se segue:

I.   A Torah (Génesis, Êxodo, Levítico, Números e Deuteronómio)
II.  Os Profetas
A. Profetas anteriores: Josué, Juízes, Samuel I e II, Reis I e II)
B. Profetas posteriores: Isaías, Jeremias, Ezequiel e os Doze (Oseias, Joel, Amós, Obadias, Jonas, Miqueias, Naum, Habacuque, Sofonias, Ageu, Zacarias, Malaquias)
III. Os Escritos (Salmos, Provérbios, Job, Cantares, Rute, Lamentações, Qohélet [Eclesiastes], Ester, Daniel, Esdras-Neemias, Crónicas I e II).

Em outras palavras, aqui Crónicas figurava no final da lista. A abrangente expressão de Jesus adquire sentido quando, no contexto de juízo pelo sangue inocente derramado, se entende como referente ao primeiro e último assassinato registado nas Escrituras, segundo a ordem tradicional do cânon palestino: dizer «desde Abel até Zacarias» era equivalente a «de Génesis a Crónicas», ou seja desde o primeiro até ao último livro do cânon do Antigo Testamento. É como se hoje disséssemos, segundo a ordem tradicional do nosso Antigo Testamento, «De Génesis a Malaquias». Logo, estas palavras do Senhor implicitamente corroboram o cânon hebreu, e não o chamado alexandrino.

Uma evidência adicional do quanto dito provém do facto de que nos grandes unciais Sinaítico (Alef, século IV) e Alexandrino (A, século V) que contêm livros dos Macabeus, estes se encontram depois de Crónicas. Portanto, se Jesus tivesse admitido o suposto cânon alexandrino (com deuterocanónicos) os últimos mártires, tanto cronologicamente como segundo a ordem dos livros, seriam os heróis macabeus como Judas ou Jónatas.

Deve notar-se que, embora o Novo Testamento não dê um cânon ou lista autorizada de livros considerados inspirados para o que chamamos Antigo Testamento, a evidência indireta sugere firmemente um cânon definido e já fixado de livros a cuja autoridade era válido apelar.

«Primeiro, é difícil exagerar a importância dos nomes ou títulos atribuídos aos escritos do AT pelos autores do NT: assim, "Escritura" (João 10:35; 19:36; 2 Pedro 1:20), "as Escrituras" (Mateus 22:39; Atos 18:24), "Santas Escrituras" (Romanos 1:2), "escritos sagrados" (2 Timóteo 3:15), "Lei" (João 10:34; 12:34; 15:25; 1 Coríntios 14:21), "a Lei e os Profetas" (Mateus 5:17; 7:12; 22:40; Lucas 16:16; 24:44; Atos 13:15; 28:23). Tais nomes ou títulos, embora não definam os limites do cânon, certamente supõem a existência de uma coleção completa e sagrada de escritos judeus que já estão segregados como separados e fixos.

Uma passagem (João 10:35) na qual se usa o termo "escritura" parece referir-se ao cânon do AT no seu conjunto: "e a Escritura não pode ser anulada". De igual modo a expressão "a lei e os profetas" é frequentemente usada num sentido genérico referindo-se a muito mais que meramente a primeira e segunda divisões do AT; parece antes referir-se à antiga dispensação no seu conjunto; mas o termo "a Lei" é o mais geral de todos. Aplica-se frequentemente a todo o AT, e aparentemente tinha nos tempos de Jesus entre os judeus um lugar similar ao que o termo "a Bíblia" tem entre nós. Por exemplo, em João 10:34; 12:34; 15:25, textos dos profetas ou mesmo dos Salmos são citados como parte de "a Lei"; em 1 Coríntios 14:21 também, Paulo fala de Isaías 28:11 como de uma parte de "a Lei". Estes nomes e títulos, consequentemente, são extremamente importantes; jamais são aplicados por escritores do NT aos apócrifos».

G.L. Robinson e Roland K. Harrison, Canon of the Old Testament. Em G.W. Bromiley, Ed.: International Standard Bible Encyclopedia, Rev. Ed. Grand Rapids: W.B. Eerdmans, 1979, 1: 597; negrito acrescentado.


Quase todos os livros do AT segundo o cânon palestino são citados individualmente no NT. As exceções são Ester, Eclesiastes, Cantares, Esdras-Neemias e os profetas menores Obadias, Naum e Sofonias. No entanto, estes três últimos faziam parte de um mesmo rolo dos doze profetas "menores" que sim é citado; Esdras e Neemias estavam unidos a Crónicas, que também é citado. Quanto a Ester, Eclesiastes (Qohélet) e Cantares, provavelmente os autores do NT não tiveram necessidade de usá-los. Em resumo, se se os toma pelos seus títulos, citam-se aproximadamente 80% dos livros do cânon hebreu, percentagem que se eleva a 90% se se os considera segundo os rolos de que faziam parte.

Em marcado contraste, não há nem tão-só uma citação de um livro deuterocanónico como Escritura em todo o Novo Testamento. O caso dos deuterocanónicos/apócrifos é que existem muitas alusões a eles no NT (ver a lista exaustiva de Craig A. Stevens, Noncanonical writings and New Testament Interpretation. Peabody: Hendrickson, 1993; Appendix 2, pp. 190-219), o que indica que não eram desconhecidos para os autores sagrados.

Em vista deste facto é bastante significativo que, à semelhança de Filão de Alexandria, eles nunca os citam como Escritura ou equivalente. Na verdade, os autores do NT citaram de outras fontes, incluindo autores pagãos e obras pseudoepigráficas nunca aceites pelos cristãos de nenhuma denominação, às quais, evidentemente, também não chamam "Escritura".

V. O testemunho do Apocalipse de Esdras

O Apocalipse de Esdras (4 Esdras) é uma obra pseudoepigráfica escrita em grego no século I da nossa era, que reflete tradições consideravelmente mais antigas. Segundo este escrito hebreu, Esdras recebe o total da revelação divina em 94 livros que dita a cinco amanuenses. Ao concluir a tarefa, ao cabo de quarenta dias, recebe uma instrução de Deus. Claro que a história é fictícia, mas o dado interessante refere-se ao número de livros nas Escrituras hebraicas:

"E aconteceu que quando se cumpriram os quarenta dias, o Altíssimo falou comigo, e me disse: Os vinte e quatro livros que escrevestes primeiro, torna-os públicos para que aqueles que são dignos e aqueles que não são dignos possam ler daí; mas os [outros] setenta os guardarás e os entregarás aos sábios do teu povo".

The Apocalypse of Ezra. Transl. G.H. Box. London: SPCK, 1917; 14:45-46, p. 113; negrito acrescentado.

Em outras palavras, para o autor havia 24 livros inspirados – o mesmo número que no cânon palestino - que eram para leitura pública. Os 24 livros do cânon hebreu correspondem aos 39 do AT das Bíblias protestantes, já que 1 e 2 Samuel, 1 e 2 Reis e 1 e 2 Crónicas, os Doze Profetas menores e Esdras-Neemias se contavam cada um como um livro.
Assim:

- A Torah:  (1) Génesis,  (2) Êxodo, (3) Levítico,  (4) Números, (5) Deuteronómio.
- Os Profetas Anteriores: (6) Josué, (7) Juízes, (8) Samuel I e II, (9) Reis I e II
- Os Profetas Posteriores: (10) Isaías, (11) Jeremias, (12) Ezequiel, (13)
- Os Doze (Oseias, Joel, Amós, Obadias, Jonas, Miqueias, Naum, Habacuque, Sofonias, Ageu, Zacarias, Malaquias)
- Os Escritos: (14) Salmos, (15) Provérbios, (16) Job, (17) Cantares, (18) Rute, (19) Lamentações, (20) Qohélet [Eclesiastes], (21) Ester, (22) Daniel, (23) Esdras-Neemias, (24) Crónicas I e II.

VI.  O testemunho de Flávio Josefo

Na mesma época de 4 Esdras (finais do século I d.C.) o historiador judeu romanizado Josefo (37-100) publicou Contra Apião ou Antiguidades dos Judeus. Diz Paul L. Maier:

"Josefo continua sendo a nossa única fonte sobrevivente para tanta informação extrabíblica, e nenhuma lista lhe faria justiça. Dá também uma luz cheia de significado sobre as táticas romanas militares e de assédio, assim como alguns detalhes singulares acerca dos imperadores júlio-cláudios. Sabe como manter o interesse, incluir diálogos, plasmar descrições gráficas, exemplificar com coisas específicas, e em geral deleitar o leitor com a cor, drama e excitação da Palestina nas várias épocas sem evitar nada do horror das suas conquistas ou das suas pendências civis. Também sobressai nas suas descrições geográficas e arquitetónicas da terra e das suas estruturas na antiguidade – áreas por vezes silenciadas nas Escrituras – e a sua exatidão está sendo progressivamente afirmada na atualidade por escavações arqueológicas".

Paul L. Maier, Josefo. Las obras esenciales. Grand Rapids: Editorial Portavoz, 1994, p. 10-11.

Não há a menor indicação de que Josefo esteja a dar um ponto de vista sectário. Pelo contrário, fala como representante autodesignado dos judeus em geral. Este autor destaca a exatidão e confiabilidade dos registos hebraicos, que não assentava na simples vontade humana, mas na inspiração de Deus. Diz Josefo (negrito acrescentado):

... porque não temos dezenas de milhares de livros discordantes e em conflito, mas apenas vinte e dois, contendo os registos de todos os tempos, os quais foram justamente considerados como divinos. E destes, cinco são os livros de Moisés ... Depois, os Profetas que se seguiram, compilaram a história do período desde Moisés até ao reino de Artaxerxes sucessor de Xerxes, rei da Pérsia, em treze livros, [sobre] o que se fez nos seus tempos. Os restantes quatro livros compreendem hinos a Deus e instruções práticas para os homens.

Os vinte e dois livros que menciona Josefo correspondem à Torá, aos Profetas e aos Escritos. São com toda a probabilidade os mesmos 24 da Bíblia hebraica e do Antigo Testamento protestante, artificialmente acomodados em seu número às letras do alefato ou alfabeto hebreu. Para isso Rute conta-se com Juízes e Lamentações com Jeremias; todos os livros históricos – incluídos Daniel e Job - agrupam-se com os profetas, e contam-se entre os Hagiógrafos ou Escritos Salmos, Provérbios Cantares e Eclesiastes. Estes, todos estes, e mais nenhuns são estimados, segundo Josefo, como de origem divina. Josefo prossegue:

Desde o tempo de Artaxerxes até ao nosso próprio cada acontecimento foi registado; mas os registos não foram considerados dignos do mesmo crédito que os da época mais antiga, porque a exata sucessão de profetas não foi continuada. Mas que fé pusemos nos nossos próprios escritos se vê pela nossa conduta; pois apesar de ter passado tanto tempo, ninguém se atreveu a acrescentar-lhes nada, nem a subtrair nada deles, nem a alterar nada.


Antiguidades dos judeus 1:42 (negrito acrescentado).


Em resumo

... pela época de Jesus e dos Apóstolos, o número de livros estava fixado, e claramente correspondia aos do Cânon palestino, o único do AT que pode chamar-se propriamente tal. Além disso, estes livros eram tidos por divinos, e não outros. Finalmente, Josefo nos indica a data aproximada do fecho do cânon em meados do século V a.C., ao mencionar o reinado de Artaxerxes.

Em resumo, muito antes que se ratificasse o cânon em Jâmnia, existia obviamente um consenso entre os judeus acerca de quais livros deviam considerar-se sagrados e canónicos, e quais não.



Fernando D. Saraví
Mendoza-Argentina



 

sábado, 16 de janeiro de 2010

O Cânon do Antigo Testamento


Frequentemente é-nos perguntado que diferença há entre a «Bíblia Católica» e a «Bíblia Evangélica». A resposta é que são idênticas no Novo Testamento, mas as Bíblias católicas incluem no Antigo Testamento alguns livros e porções de livros que não se encontram nas Bíblias evangélicas.

Se a seguir nos perguntarem a razão desta diferença, uma resposta breve é que nós (Cristãos Evangélicos) nos apegamos ao cânon hebreu (palestino), enquanto os Católicos definiram outro cânon mais longo no século XVI, no Concílio de Trento convocado pela Igreja Católica contra o movimento de Reforma Protestante.

A seguinte é uma lista corrigida de mensagens que coloquei num fórum [de debate] católico como resposta a um escrito que apresentava os argumentos a favor do cânon "longo" definido em Trento, sob o provocativo título "A Bíblia Católica: Escritura Completa". Os parágrafos em negrito correspondem a tal documento [opiniões do forista católico], ao qual respondo de maneira detalhada.


A Bíblia Católica: Escritura completa

Por que as Bíblias católicas e protestantes têm mais ou menos livros? Qual é a autêntica? A Bíblia protestante é diferente da católica. Olhando o índice de livros que contém a Bíblia contamos 66 livros, enquanto a Bíblia católica e a Bíblia ortodoxa contêm sete livros mais.

Em seu cânon do Antigo Testamento, tanto as Bíblias protestantes como as ortodoxas diferem das católicas. As protestantes têm menos livros, e as ortodoxas mais livros, que as católicas.

Além dos livros do AT que se encontram nas nossas Bíblias, a Bíblia católica inclui:

Adições a Daniel
Adições a Ester
Baruc
Carta de Jeremias
Eclesiástico (Sabedoria de Jesus ben Sirá)
Sabedoria
Judite
Tobias
1 Macabeus
2 Macabeus


As Bíblias ortodoxas grega e eslava incluem, além do cânon católico do AT, os seguintes livros:

1 Esdras (= 2 Esdras em eslavo = 3 Esdras no apêndice da Vulgata).
Oração de Manassés (no Apêndice da Vulgata)
O Salmo 151, que se segue ao 150 na Bíblia grega
3 Macabeus
Na Bíblia eslava (e no apêndice da Vulgata)
2 Esdras (= 3 Esdras na eslava = 4 Esdras no Apêndice da Vulgata)
(Nota: na Vulgata latina, Esdras e Neemias = 1 e 2 Esdras)

Num apêndice da Bíblia grega:

4 Macabeus

De modo que é erróneo afirmar que as Bíblias ortodoxas reconheçam o mesmo cânon do AT que as católicas.  E se o critério de ser "completa" fosse ter a maior quantidade de livros, então as Bíblias ortodoxas seriam mais completas do que a católica.

(Fonte: The Holy Bible with Apocrypha. New Revised Standard Version. New York: American Bible Society, 1989, p. vi).


Na Bíblia protestante faltam 1 e 2 Macabeus, Tobias (ou Tobite), Judite, Baruc, Sabedoria, e Eclesiástico (ou Sirácides) conhecidos como "deuterocanónicos".

A denominação de "deuterocanónicos" data do século XVI. Por sinal, segundo o autor do artigo "Cânon do Antigo Testamento" na Encyclopedia Catholica, "deuterocanónico" é um termo pouco feliz.


Os irmãos não católicos chamam aos sete livros deuterocanónicos "Apócrifos", embora não seja um termo muito exato para o que se quer assinalar, já que "apócrifo" significa etimologicamente "escondido", fazendo alusão ao autor, que é "desconhecido" e costuma "esconder-se" atrás de um pseudónimo.

Se se esconde sob um pseudónimo deve falar-se propriamente de literatura pseudoepigráfica.

Os evangélicos chamam-lhes apócrifos porque foi o qualificativo com o qual foram conhecidos durante muitos séculos antes que se delineasse o termo "deuterocanónico" depois do Concílio de Trento. Outra forma, talvez a mais correta, é chamá-los "livros eclesiásticos".


Neste sentido há outros livros "apócrifos" que no entanto fazem parte dos livros inspirados (como a carta aos Hebreus, que não foi escrita diretamente por Paulo, mas que leva o seu nome).

Errado. A carta aos Hebreus é anónima, como o são em sentido estrito, entre outros, os quatro Evangelhos canónicos e as cartas de João. Quem terá assessorado o autor deste artigo?

 

De qualquer forma, a realidade é que os protestantes não admitem estes livros como inspirados.

Bem diz, "de qualquer forma": esse é o ponto que deseja tratar. A precisão parece um assunto secundário.


Porquê a diferença?

Foi somente no ano 393 d.C. que os bispos se uniram com os sacerdotes e leigos para discernir quais livros são inspirados, ou também "canónicos".

A sério? A ninguém antes lhe ocorreu considerar o assunto?

O autor faz aqui referência a um sínodo reunido em Hipona, cujas atas não se conservaram. As suas decisões foram sustentadas, porém, em outros de Cartago de 397 e 419. Todos eles sob a influência de Santo Agostinho sobre cuja opinião podemos falar mais tarde. Estes três Concílios, no entanto, foram sínodos locais carentes de autoridade vinculante para a Igreja universal; e prova evidente disso é que muitos Padres ortodoxos e diversos escritores eclesiásticos posteriores mantiveram a distinção entre os livros do cânon hebreu e os chamados apócrifos ou eclesiásticos.


A Igreja tinha o poder de fazer isso porque Jesus lhe deu o poder de atar e desatar (Mt 18, 18) e prometeu enviar o Espírito Santo para a plenitude da verdade (Jo 14, 26).

De acordo, mas não é possível pôr "o carro à frente dos bois". Embora os protestantes discordem em outros ensinamentos católicos, estão de acordo com esta declaração acerca da natureza dos livros canónicos:

"Ora, a Igreja os tem por sagrados e canónicos, não porque compostos só pela indústria humana, tenham sido depois aprovados por ela; nem somente porque contenham a revelação sem erro; mas porque escritos por inspiração do Espírito Santo, têm Deus por autor, e como tais foram transmitidos à própria Igreja." (Concílio Vaticano I, Sessão III de 24 de abril de 1870; Constituição dogmática sobre a fé católica, Capítulo 2, Da revelação; Denzinger # 1787; negrito acrescentado).

Dado que os livros sagrados têm uma autoridade intrínseca que provém do seu Autor, o seu caráter canónico não depende da sanção humana em geral, nem eclesiástica em particular. A Igreja não decidiu nem decretou o cânon, mas o discerniu ou reconheceu, e a seguir o confessou e proclamou. Nisto cumpriu a sua vocação como coluna e baluarte da verdade.


No século XV Martinho Lutero pensou que os primeiros cristãos usavam o "cânon judeu da Palestina" (os livros escritos em hebreu), 39 livros.

Martinho Lutero (1483-1546) não tinha entrado na Universidade e muito menos tinha sido ordenado ao terminar o século XV. É óbvio que o nosso autor não é muito cuidadoso nas suas afirmações.

Além disso, as opiniões do Dr. Lutero não diferem muito das sustentadas muito pouco antes dele por alguns ilustres e muito ortodoxos biblistas católicos (sem contar os Padres).


Mas na realidade os 46 livros do "cânon Alexandrino" ou "tradução dos Setenta" (a tradução para o grego dos livros hebraicos, pois o grego era o idioma internacional deste tempo) era aceite pela grande maioria dos judeus dispersos por todo o mundo (a "diáspora"). Alexandria era o maior e mais importante centro judeu no mundo de fala grega.

Quanto ao "cânon Alexandrino" é uma lenda que já não pode sustentar-se. Uma coisa é os judeus helenísticos terem usado a Septuaginta, e outra muito diferente é terem tido um cânon diferente do Hebreu. Durante muito tempo falou-se de um "cânon Alexandrino" mais amplo que o Hebreu. Contudo, não existe evidência de que tal cânon mais amplo tenha alguma vez existido. Copio a seguir duas citações representativas do estado atual da opinião:

O cânon Alexandrino

O Antigo Testamento, tal como chegou em tradução grega dos judeus de Alexandria por via da Igreja Cristã difere em muitos aspectos das Escrituras hebraicas. Os livros da segunda e terceira divisões [Trad., Profetas e Escritos] foram redistribuídos e dispostos segundo categorias de literatura – história, poesia, sabedoria e profecia. Ester e Daniel contêm materiais suplementares, e muitos livros não canónicos, seja de origem hebraica ou grega, entremisturaram-se com as obras canónicas. Estes escritos extracanónicos compreendem I Esdras, a Sabedoria de Salomão, Eclesiástico (ben Sirá), adições a Ester, Judite, Tobite, Baruc, a carta de Jeremias, e adições a Daniel, como se enumeram no manuscrito conhecido como Codex Vaticanus (ca. 350 E.C.). A sequência dos livros varia, no entanto, nos manuscritos e nas listas sinódicas e patrísticas das Igrejas ocidentais e orientais, algumas das quais incluem também outros livros, como I e II Macabeus.

Deve notar-se que o conteúdo e a forma do inferido cânon judeu alexandrino original não pode ser determinado com certeza porque todas as Bíblias gregas existentes são de origem cristã. Os próprios judeus de Alexandria podem ter estendido o cânon que receberam da Palestina, ou eles podem ter herdado as suas tradições de círculos palestinos nos quais os livros adicionais tinham já sido considerados como canónicos. É igualmente possível que as adições às Escrituras hebraicas sejam de origem cristã.

Encyclopedia Britannica
...........................

Contrariamente ao que se pensou durante largo tempo, nunca existiu um verdadeiro «cânon alexandrino» de língua grega, que pudesse ser considerado como um cânon paralelo ao «palestino» de língua hebraica...


A teoria tradicional sobre a existência de um «cânon alexandrino», que supostamente incluía mais livros que o cânon palestino, se baseava, entre outros dados, no facto de os códices da LXX conterem vários dos livros apócrifos. No entanto, é preciso ter em conta que os grandes códices do s. V tinham uma extensão muito superior à dos códices de séculos anteriores ... Os códices gregos refletem a situação dos ss. IV e V, que não é comparável de modo algum com a de séculos anteriores.

É frequente supor que Filão e os judeus helenistas não compartilhavam o parecer dos rabinos da Palestina, segundo o qual o espírito de profecia tinha cessado há séculos... Na verdade, as obras de Filão não citam nem uma só vez os livros apócrifos, o que invalida toda a hipótese de um cânon helenístico. Por outro lado, seria bem estranho que um livro como 1 Mac[abeus], que insiste em que a profecia tinha cessado há tempo (4,46; 9,27; 14,41) pudesse fazer parte de um suposto cânon helenístico, cuja existência se apoia precisamente na afirmação de que a profecia ainda não cessou, numa época inclusive posterior.

A teoria do cânon alexandrino tinha outros dois suportes que caíram igualmente por terra. O primeiro era que o judaísmo helenístico e o judaísmo palestino eram realidades distintas e distantes. O segundo era que os livros apócrifos foram compostos na sua maioria em língua grega e em solo egípcio.

Julio Trebolle Barrera, La Biblia judía y la Biblia cristiana. Madrid: Trotta, 1993, p. 241-242.

É bem sabido que o filósofo judeu, Filão de Alexandria, apesar de viver na cidade onde supostamente se originou o cânon alternativo, jamais cita os apócrifos/deuterocanónicos.


Por volta dos anos 90-100 d.C. alguns líderes judeus se reuniram para tratar o tema do cânon (conhecido como o cânon da Palestina) tirando os sete livros, o seu objetivo era regressar ao cânon hebreu, e distinguir-se assim dos cristãos. Pensavam que o que não foi escrito em hebraico não era inspirado (embora Eclesiástico e 1 de Macabeus estavam originalmente escritos em hebraico e Aramaico).

No entanto, a discussão entre eles prosseguiu por muitos anos, e as suas decisões não foram universalmente reconhecidas.

As discussões dos rabinos em Jâmnia (entre 85 e 115), numa academia estabelecida por Yohanan ben Zakkai, não "tiraram" sete livros que nunca ali estiveram anteriormente. As discussões giraram à volta da propriedade da pertença de alguns livros como Ezequiel, Cantares, Qohélet (Eclesiastes) e Ester, que já eram aceites. E de facto, não modificaram de modo algum o que fazia tempo estava estabelecido.

"O resultado dos seus debates [de Yohanan ben Zakkai e outros] foi que, pese as objeções, Provérbios, Eclesiastes, Cantares e Ester foram reconhecidos como canónicos; Eclesiástico não foi reconhecido (TB Shabbat 30 b; Mishná Yadaim 3:5; TB Magillah 7 a; TJ Megillah 70 d). Os debates de Jâmnia «não têm que ver com a aceitação de certos escritos dentro do Cânon, mas antes com o seu direito a permanecer lá» (A. Bentzen, Introduction to the Old Testament, i [Copenhagen, 1948], p. 31). Houve alguma discussão prévia na escola de Shammai acerca de Ezequiel, que já há muito estava incluído entre os Profetas, mas quando um rabino engenhoso mostrou que realmente não contradizia Moisés, como se havia alegado, se afastaram as dúvidas (TB Shabbat 13 b)."

F.F. Bruce, Tradition Old and New. The Paternoster Press, 1970, p. 133, n. 1 (TB = Talmude de Babilónia; TJ = Talmude de Jerusalém).

O mais significativo das conclusões destes rabinos foi a sua resolução de não inovar.

Se se me permite resumir o exposto até agora:

1. O cânon católico não é igual nem ao ortodoxo nem ao protestante.

2. Os livros de que tratamos denominam-se historicamente "apócrifos" ou "eclesiásticos". A denominação "deuterocanónicos" é tardia (século XVI).

3. Não houve decisão taxativa e precisa de nenhum concílio ecuménico acerca da extensão do cânon antes do grande cisma do século XI. As decisões de sínodos locais não obrigam a toda a cristandade.

4. A opinião de Lutero sobre o cânon do Antigo Testamento não diferia da de muitos Padres nem da de eruditos católicos contemporâneos seus.

5. Não há evidência de que tenha existido um "cânon alexandrino" a par do cânon hebreu do Antigo Testamento.

6. Os rabinos reunidos em Jâmnia não introduziram modificações. Após muitas deliberações, terminaram ratificando o cânon que era aceite desde muito tempo atrás, provavelmente da era pré-cristã.
 


Havia muito desacordo entre os diferentes grupos e seitas judaicas. Os saduceus somente confiavam no Torá, os fariseus não podiam decidir sobre Ester, Cantares e Eclesiastes. Somente no segundo século os fariseus decidiram 39 livros.

Como já disse, é um erro sustentar que os fariseus "decidiram" 39 livros no século II. A verdade é que nesse tempo ficou formalmente estabelecida a posição sustentada por muito tempo antes da sua "oficialização". Quanto aos saduceus, a noção de que somente admitiam a Torá (os cinco livros de Moisés, ou Pentateuco) parece ter surgido de uma confusão de alguns Padres como Hipólito, Orígenes e Jerónimo. Eis aqui o juízo de duas referências confiáveis:

A opinião de numerosos Padres da Igreja no sentido de que os saduceus reconheciam unicamente o Pentateuco e rejeitavam os Profetas não conta com apoio algum em Josefo e, por conseguinte, é considerada errónea pela maior parte dos investigadores modernos.

Emil Schürer, Historia del pueblo judío en tiempos de Jesús. Edición revisada por Geza Vermes y otros. Trad. Cast. Madrid: Cristiandad, 1985, vol. 2, p. 530-531.

A sua atitude fundamental é uma fidelidade ao sentido literal da escritura, à manutenção da Sola Scriptura, perante as tradições e a lei oral dos fariseus: os sacerdotes são os únicos intérpretes autênticos desta Torah... os saduceus, contrariamente ao que afirmaram alguns padres da Igreja, admitiam como Escritura outros livros além do Pentateuco, por mais que este tivesse aos seus olhos valor preponderante...

R. Le Déaut, Los saduceos. Em Augustin George y Pierre Grelot (Dir.), Introducción Crítica al Nuevo Testamento. Trad. Cast. Barcelona: Herder, 1982, vol. 1, p. 159.

Nas suas discussões com os saduceus e fariseus, Jesus Cristo nunca se dirigiu a eles como se os primeiros aceitassem um cânon e os segundos outro. A principal diferença era que os fariseus sustentavam a existência de duas Leis, a escrita (em particular o Pentateuco) e a oral, que também teria sido dada a Moisés no Sinai. Os saduceus não aceitavam a suposta "torah oral" que para os fariseus era vinculante. E embora seja verdade que os saduceus consideravam o Pentateuco como dotado de uma autoridade especial acima dos Profetas e dos Escritos (a segunda e terceira divisões do cânon hebreu), também os fariseus tinham o Pentateuco em particular estima. Por exemplo, no Talmude - que reflete a tradição farisaica - se estabelece que pode vender-se um rolo dos Profetas para adquirir um da Lei, mas que o inverso é ilícito.


O apóstolo Paulo, que viajou por todo o mundo de língua grega, utilizava a versão dos LXX.

Não há dúvida de que a Septuaginta (versão dos LXX, uma tradução do Antigo Testamento para o grego produzida em Alexandria entre os séculos III a I a.C.) foi a Bíblia usada correntemente pelos apóstolos, pelos escritores do Novo Testamento e pelos primeiros cristãos. Mas este facto não convalida a autoridade canónica dos livros eclesiásticos, por várias razões.

Em primeiro lugar, porque na época apostólica não havia outra tradução à qual apelar.

Em segundo lugar, porque o Novo Testamento jamais cita um livro apócrifo/eclesiástico como Escritura (não porque os seus autores não os conheceram).

Em terceiro lugar, porque não há evidência de que na era pré-cristã a Septuaginta circulasse em códices com todos os livros compilados numa mesma encadernação. O modo usual era o rolo, pelo que o texto bíblico circulava como rolos separados.


Quando a São Jerónimo se lhe pediu que traduzisse a Bíblia em latim (em 382 d.C.) optou por seguir a decisão dos judeus e rejeitou os sete livros, chamando-os "apócrifos". Esta decisão de Jerónimo foi rejeitada pelos concílios já mencionados e Jerónimo aceitou a decisão dos concílios.

Dificilmente poderiam dizer-se mais imprecisões em igual espaço.

1. Em 382 ninguém pediu a Jerónimo que traduzisse "a Bíblia" para o latim. Por esse ano, o bispo de Roma, Dámaso I, solicitou a Jerónimo, a quem tinha em grande estima como erudito bíblico, que revisse os Evangelhos e os Salmos da antiga versão latina. Jerónimo pôs mãos à obra e completou a tarefa com bastante rapidez.

2. Depois da morte de Dámaso em 384, Jerónimo emigrou para o Oriente, e em 386 se estabeleceu em Belém da Judeia. Aí continuou por sua própria conta (sem encargo oficial) com uma tradução para o latim baseada no texto da Septuaginta. Mas chegou à conclusão de que para fazer bem a sua tarefa, devia basear-se no texto hebraico. De modo que aproximadamente entre 391 e 404 Jerónimo se ocupou deste trabalho.

3. Os concílios provinciais de Hipona (393) e Cartago (397) tomaram como texto padrão não a Vulgata de Jerónimo – que estava em plena preparação e por séculos não seria conhecida por tal nome – mas a versão Latina Antiga.

4. Jerónimo expressou o seu ponto de vista sobre o cânon do Antigo Testamento privadamente no prefácio a Samuel e Reis, dirigido aos seus amigos Eustóquio e Paula, que data de 391.

Jerónimo enumera o cânon hebreu exatamente, e dá conta da dupla numeração como 24 ou 22, segundo se Rute e Lamentações se contassem por separado ou agregados, respetivamente, a Juízes e Jeremias: "E assim há também vinte e dois livros do Antigo Testamento; isto é, cinco de Moisés, oito dos profetas, nove dos hagiógrafos, embora alguns incluam Ruth e Kinoth (Lamentações) entre os hagiógrafos, e pensam que estes livros devem contar-se por separado; teríamos assim vinte e quatro livros da Antiga Lei". Os 22 ou 24 correspondem exatamente com o cânon hebreu e protestante; a diferença entre os 39 contados por este último se deve a que Esdras-Neemias, Samuel, Reis e Crónicas são contados como dois livros cada um (soma 4), e os Profetas menores, que se incluíam num só rolo na Bíblia hebraica, são contados por separado (soma 11). Depois prossegue Jerónimo:

"Este prólogo às Escrituras pode servir como um prefácio com elmo [galeatus] para todos os livros que vertemos do hebraico para o latim, para que possamos saber – os meus leitores tanto como eu mesmo - que qualquer [livro] que esteja para lá destes deve ser reconhecido entre os apócrifos. Portanto, a Sabedoria de Salomão, como se a titula comummente, e o livro do Filho de Sirá [Eclesiástico] e Judite e Tobias e o Pastor não estão no Cânon."

Jerónimo traçou a diferença entre os livros canónicos e os eclesiásticos como se segue:

"Como a Igreja lê os livros de Judite e Tobite e Macabeus, mas não os recebe entre as Escrituras canónicas, assim também lê Sabedoria e Eclesiástico para a edificação do povo, não como autoridade para a confirmação da doutrina."

De igual modo, sublinhou que as adições a Ester, Daniel e Jeremias (o livro de Baruc) não tinham lugar entre as Escrituras canónicas.

Fonte: Prefácio aos Livros de Samuel e Reis. Em Nicene and Post-Nicene Fathers, 2nd Series, vol. 6, p. 489-490.

5. Não há a menor indicação de que Jerónimo se tivesse inteirado das decisões dos sínodos africanos. Vários anos mais tarde, em 403, escreveu uma longa carta a Laeta, que o havia consultado sobre a educação de sua filha Paula. Jerónimo dá uma série de conselhos; entre eles, que a instrua nas Escrituras, sugerindo a ordem em que deve lê-las. Depois acrescenta:

"Que [Paula] evite todos os escritos apócrifos, e se ela for levada a lê-los não pela verdade das doutrinas que contêm mas por respeito aos milagres contidos neles, que ela entenda que não são escritos por aqueles a quem são atribuídos, que muitos elementos defeituosos se introduziram neles, e que é preciso uma perícia infinita para procurar ouro no meio da sujeira."

Epístola 107:12 (Nicene and Post-Nicene Fathers, 2nd Series, vol. 6, p. 194)

6. Finalmente, Jerónimo não realizou traduções dos livros apócrifos, com exceção de Judite e Tobias, que traduziu apressadamente do aramaico por pedido de alguns amigos. Os restantes apócrifos foram acrescentados à versão de Jerónimo tal como estavam na versão Antiga Latina.

Como pode ver-se, o autor do artigo simplesmente desconhece os factos.


Ao fim e ao cabo, os judeus expulsaram os cristãos da sinagoga e não os deixaram participar na decisão sobre o cânon. Hoje em dia muitos se baseiam nas decisões judaicas sobre o cânon. Ora, esses mesmos judeus já tinham decidido rejeitar Jesus como Messias: por que dar a eles a autoridade sobre o cânon do AT?

Por que, diria eu, dar autoridade aos judeus da diáspora acima dos da Judeia?

Este argumento é um dos mais estranhos que apresenta o autor deste curioso escrito. Primeiro apela à existência de um suposto "cânon Alexandrino" mais amplo que o Hebreu. Agora argumenta que os judeus não tinham autoridade em primeiro lugar para decidir que livros do Antigo Testamento eram canónicos. Em outras palavras, nega aos judeus palestinos a autoridade que reconhece aos judeus da diáspora. Com que critério? Não são uns e outros judeus? Os judeus de Roma que aparecem em Atos 28, ou os de Tessalónica, etc, eram mais judeus que os residentes na Palestina?

Se se argui que a decisão foi tomada em Jâmnia em finais do século I, replico que se enganam. Como já indiquei antes, em Jâmnia apenas se ratificou um consenso que vinha de muito antes.


Martinho Lutero e os demais reformadores decidiram seguir a decisão judaica de basear o cânon do AT sobre o idioma hebraico e retiraram os sete livros da sua Bíblia. Os chamaram "apócrifos" seguindo a ideia de São Jerónimo. Assim começou a Bíblia Protestante.

Outro concentrado de imprecisões às quais nos tem acostumado o anónimo autor. Lutero em particular não era propriamente um apaixonado pelas opiniões judaicas. Os Reformadores admitiram o cânon Hebreu porque a sua autenticidade era indubitável, e porque os mais doutos eruditos e Padres eram de igual opinião.

Sim é correto que os chamaram apócrifos, seguindo Jerónimo. Mas não é verdade que os retiraram da Bíblia. Durante séculos continuaram sendo incluídos nas principais versões protestantes, frequentemente agrupados entre o Antigo e o Novo Testamento. Em geral, com a advertência de Jerónimo, de que deviam usar-se para edificação mas não para formular ou defender doutrinas.


- No tempo da Reforma, Lutero (1534) introduziu a ideia de qualificar os vários livros do NT segundo o que ele considerava a sua autoridade.

- Atribuiu um grau secundário a Hebreus, Tiago, Judas e Apocalipse, os pôs no final da sua tradução.

- Fez igual com os sete livros do AT, mas não os tirou da Bíblia.

- Disse que não são iguais às Sagradas Escrituras, mas sim são úteis e bons para ler (Artigo VI dos 39).

Em que ficamos? Primeiro diz que os tirou, agora que não os tirou...

O critério distintivo de Lutero foi até que ponto cada livro dava testemunho de Cristo. Mas a ideia de um "cânon dentro do cânon" não nasceu com Lutero. Pode remontar-se a Ireneu, vislumbrar-se em Orígenes e Eusébio de Cesareia, e pouco antes de Lutero, nos seus contemporâneos católicos Erasmo de Roterdão e no Cardeal Tomás de Vio (conhecido como Caetano).

Os 39 artigos são anglicanos. Não foram escritos por Lutero.


- Em 1643 o professor John Lightfoot lhes chamou"apócrifa desgraçada".

- Em 1827 a Sociedade Britânica e Estrangeira da Bíblia os omitiu completamente na sua Bíblia.

- Depois, outras editoras fizeram o mesmo.

A decisão definitiva da SBBE tomou-se em 1826 e susteve-se até 1968. Os excluíram por razões práticas, já que de qualquer modo não os consideravam inspirados. Outras Sociedades Bíblicas continuaram a inclui-los conforme o costume eclesiástico estabelecido.


Alguns irmãos dizem que a Igreja católica acrescentou estes sete livros no Concílio de Trento (século XVI), mas Lutero não poderia rejeitar estes livros se eles não tivessem já estado no cânon.

Os livros incluíam-se nos manuscritos e nas primeiras versões impressas. Isso não lhes conferia condição canónica, mas dava testemunho de um costume antigo. Durante séculos os livros apócrifos/eclesiásticos/deuterocanónicos tinham estado ali, o que não significava que fossem considerados canónicos ao mesmo nível que o cânon hebreu. O que teve de particular a decisão de Trento é que pela primeira vez um concílio que pretendia ser ecuménico se arrogou o poder de estabelecer como artigo de fé a lista de livros canónicos incluindo os apócrifos, com o habitual anátema para quem a rejeitar.

Como é bem sabido, nos grandes concílios ecuménicos da antiguidade (antes do cisma entre a Igreja Ocidental e a Oriental) participavam centenas de bispos. Não ocorreu a mesma coisa em Trento, o concílio que determinou dogmaticamente a posição católica com respeito ao cânon da Bíblia.

É um facto que o Concílio de Trento teve uma história tão longa como acidentada. Foi inaugurado a 13 de Dezembro de 1545 após inevitáveis adiamentos, "com a assistência de apenas 31 bispos, na sua maioria italianos... O concílio, além disso, se havia atribuído a sua própria forma, que se afastava notavelmente do estatuto dos concílios do século quinze." (Hubert Jedin, S.J., Breve historia de los Concilios. Barcelona: Herder, 1963, p. 115, 116). Depois juntaram-se mais bispos. Uma das primeiras coisas a considerar foi o tema da revelação e das relações entre Escritura e Tradição.

"Gerou-se um considerável debate sobre se devia fazer-se uma distinção entre dois tipos de livros (Canónicos e Apócrifos) ou se deviam identificar-se três tipos (Livros Reconhecidos; Livros Disputados do Novo Testamento, depois geralmente reconhecidos; e os Apócrifos do Antigo Testamento). Finalmente a 8 de Abril de 1546, por um voto de 24 a 15, com 16 abstenções, o Concílio sancionou um decreto (De Canonicis Scripturis) no qual, pela primeira vez na história da Igreja, a questão do conteúdo da Bíblia foi feito um artigo absoluto de fé e confirmado com um anátema."

Bruce M. Metzger, The Canon of the New Testament- Its origin, development, and importance. Oxford: Clarendon Press, 1987, p. 246; negrito acrescentado.

Não havia ali 318 bispos de toda a cristandade, como em Niceia, nem 600 como em Calcedónia, nem sequer 150 como em I Constantinopla. Não, nada mais que 55 bispos, a maioria italianos. E o malfadado decreto sobre o cânon sancionou-se com o voto favorável de menos da metade dos presentes.

Resumo:

1. Não há evidência de que os saduceus reconheceram um cânon escritural diferente do reconhecido pelos fariseus.

2. A Septuaginta foi amplamente usada pelos cristãos, mas não há evidência de que na época apostólica circulasse em forma de códice (livro) encadernado com inclusão dos apócrifos. Também não há evidência de que Jesus ou os apóstolos considerassem inspirados estes livros.

3. A tradução de Jerónimo do AT não foi encomendada por alguma autoridade eclesiástica, nem sancionada oficialmente até ao Concílio de Trento.

4. Os cânones de Hipona e Cartago não eram vinculantes para toda a cristandade, e Jerónimo continuou firme na sua opinião depois de ambos os sínodos.

5. Jerónimo não traduziu a maioria dos apócrifos, exceto Judite e Tobias a pedido de amigos.

6. A opinião de Lutero em relação ao cânon não é singular. Além disso, não excluiu os apócrifos da sua edição da Bíblia.

7. No Concílio de Trento, em 1546, um punhado de bispos ocidentais (principalmente italianos) declarou pela primeira vez como artigo de fé para todos os cristãos que os livros apócrifos eram Escritura sem distinção com o cânon hebreu quanto à sua canonicidade e inspiração.


Outros dizem que não se citam no NT. Porém, o Novo Testamento também não cita Ester, Obadias e Naum, e no entanto os irmãos os aceitam na sua Bíblia.

Não há comparação possível. Na época de Jesus a divisão tripartida do cânon – Torah, Profetas, Escritos - estava muito claramente estabelecida, como o demonstram as próprias palavras do Mestre:

Depois lhes disse: «Estas são as minhas palavras que vos falei quando ainda estava convosco: É necessário que se cumpra tudo o que está escrito na Lei de Moisés, nos Profetas e nos Salmos acerca de mim.» (Lucas 24:44)

Os especialistas coincidem em entender aqui a referência aos Salmos como uma sinédoque dos denominados "Escritos". Ester fazia parte deles, e portanto a sua canonicidade é indiretamente atestada ainda que não se o cite, provavelmente porque os autores do NT não necessitaram de fazê-lo.

Igualmente, Obadias e Naum faziam parte de um único livro, o dos Doze Profetas menores. Estes constituíam um único rolo, de modo que o facto que se citem outras partes do mesmo rolo (megillah-séfer), como Amós, Miqueias, Joel e Malaquias avaliza todo o seu conteúdo.

Em conjunto há à volta de 250 citações diretas do cânon hebreu do Antigo Testamento no Novo (as alusões chegam a 10 vezes mais). No entanto, nenhum livro apócrifo/deuterocanónico se cita sequer uma vez como Escritura. Considerados por título, citam-se 80% dos pertencentes ao cânon hebreu, cifra que ascende a 90% se se consideram por rolo. Valores bastante significativos comparados com 0% dos deuterocanónicos/apócrifos.


Os cristãos usavam mais o rolo grande que o pequeno por ser escrito em grego. O grego, idioma universal deste tempo, era o idioma do NT.

Antes da era cristã (e ainda hoje no uso litúrgico da Bíblia hebraica) as Escrituras não vinham encadernadas todas juntas, mas em rolos individuais. Isto se devia a várias razões. Uma delas era prática: o formato limitava a extensão do texto que podia incluir-se em cada rolo individual. Por exemplo, o grande rolo de Isaías recuperado entre os manuscritos do Mar Morto aproxima-se deste limite com uma altura de 25 cm e uma extensão de algo mais de sete metros. Em contrapartida, como disse, os Profetas Menores podiam ser incluídos todos num único rolo. Era virtualmente impossível contar com todo o AT manuscrito num só rolo.

Voltando à afirmação do nosso apologista, em princípios da era cristã não existia o Antigo Testamento num "rolo grande" e noutro "rolo pequeno".

Não foi senão em finais do século I da nossa era ou princípios do seguinte que os manuscritos bíblicos começaram a colecionar-se em códices (formato similar ao dos livros modernos). O códice era menos volumoso e muito mais cómodo para procurar textos do que o rolo, no qual havia que desenrolar uma ponta e enrolar a outra até achar o texto desejado; é a mesma diferença que procurar uma faixa numa cassete e procurá-la num CD.

Ora bem, exceto para alguns fragmentos, os principais códices da Septuaginta que chegaram a nós são de origem cristã, de modo que não podem utilizar-se para sustentar um suposto "cânon alexandrino". Os cristãos colecionaram escritos que eram reconhecidos unanimemente como canónicos juntamente com outros que não o eram, tanto para o Antigo como para o Novo Testamento. De modo que a mera presença de um livro num códice antigo não o torna nem canónico nem inspirado só por esta causa (ver mais abaixo).


Justino Mártir escreveu que a Igreja tinha um AT distinto do dos judeus. Contudo, por consideração aos judeus, sobretudo nas controvérsias, alguns representantes isolados da Igreja, pelo menos na prática, não colocaram logo desde o princípio, os sete ao mesmo nível dos outros 39.

Sim, é verdade que no fragor da controvérsia Justino acusou os judeus de terem adulterado as Escrituras. Não sei qual texto tem em mente o autor católico, mas eu recordo tê-lo lido no Diálogo com Trifão o judeu, capítulo 73. Aí diz: E do salmo noventa e cinco, das palavras de David, suprimiram estas breves expressões: "Do alto do madeiro". Pois dizendo a palavra: «Dizei entre as nações: O Senhor reina desde o alto do madeiro», só deixaram: "Dizei entre as nações: O Senhor reina".

Esta frase cuja omissão Justino questiona é desconhecida nos manuscritos tanto hebraicos como gregos. Portanto, é razoável pensar que Justino estava errado e que o seu interlocutor tinha razão.

Habitualmente quando Justino menciona as Escrituras refere-se ao Antigo Testamento, que conhece fundamentalmente na antiga versão Septuaginta. Um aspecto interessante é que na atualidade os católicos apelam ao facto de os manuscritos da Septuaginta incluírem os livros que desde o século XVI chamam "deuterocanónicos" (e nós apócrifos) como prova da existência de um imaginário "cânon alexandrino" similar senão idêntico ao estabelecido dogmaticamente no Concílio de Trento. Ora bem, o mestre e mártir Justino usa a Septuaginta, da qual cita profusamente o Pentateuco, os profetas e os salmos. No entanto, o exame dos seus escritos mostra que jamais cita textos dos apócrifos/deuterocanónicos.

Justino conhece também e cita os Evangelhos sinópticos, aos quais chama "memórias dos Apóstolos", e menciona que eram lidos nos cultos cristãos. A maior parte das citações evangélicas provêm de Mateus, mas também apela a Lucas e ocasionalmente a Marcos. Rara vez apela ao Evangelho de João, embora deva tê-lo conhecido.

Além disso, há nas suas obras, particularmente no Diálogo com Trifão, alusões a algumas cartas paulinas, em concreto Efésios, Romanos e 1 Coríntios; também uma alusão no capítulo 81 do citado Diálogo..., mostra que conhecia o Apocalipse e lhe atribuía autoridade apostólica.


Os judeus da Palestina decidiram o cânon do AT por volta dos anos 90-100, como se disse, rejeitando os sete livros escritos em grego.

Como já disse e repeti, as discussões de Jâmnia não resultaram em nenhuma novidade, mas na reafirmação do que já se cria desde muito antes. Não é por muito repetir uma falácia que ela se torna verdadeira.


Alguns irmãos baseiam-se em Rm 3, 1-2 para dizer que o cristão deve reconhecer esta decisão judaica palestina: "Que vantagem tem pois o judeu? Primeiramente, porque lhes foi confiada a palavra de Deus". No entanto, daqui não se segue que eles tenham mais autoridade que a Igreja do Novo Testamento para aprovar os livros sagrados. Como pode ser que rejeitem o Messias, se a eles tinha sido confiada precisamente a Palavra de Deus? O facto de que Deus lhes tenha dado a Palavra de Deus não garante que sejam infalíveis na sua interpretação ou discernimento; se o tivessem sido, nunca rejeitariam o Messias. Além disso: quem tinha que decidir o cânon? Que judeus? Que autoridade? Quem se reuniu em Jâmnia para essa decisão? Há algum documento?

Os resultados das discussões de Jâmnia conservam-se no Talmude. De novo, não decidiram o cânon, mas simplesmente ratificaram, perante algumas objeções, o consenso pré-cristão.

O resto das objeções são insubstanciais. No grego diz que «lhes foram confiados os oráculos [logia] de Deus». O verbo grego é pisteuô que significa "crer", "confiar", "ter fé", e na voz passiva (como neste caso), "confiar" algo a alguém. Aparece neste último sentido em outros três sítios do Novo Testamento: Lucas 16:11, 1 Timóteo 1:11 e Tito 1:3. Lucas 16:11 é uma pergunta retórica de Jesus: "Quem é fiel no pouco, também é fiel no muito; e quem é injusto no pouco, também é injusto no muito. Assim, pois, se não fostes fiéis no dinheiro injusto, quem vos confiará o verdadeiro?" (vv. 10-11). Aqui "confiar" ou "encomendar" significa claramente entregar em depósito a alguém confiável.

As outras duas passagens, ambas de Paulo, são ainda mais relevantes (negrito acrescentado):

"..segundo o Evangelho da glória de Deus bem-aventurado, que me foi confiado." (1 Timóteo 1:11)

"Paulo, servo de Deus, apóstolo de Jesus Cristo para levar os escolhidos de Deus à fé e ao pleno conhecimento da verdade que é conforme à piedade, com a esperança de vida eterna, prometida desde toda a eternidade por Deus que não mente, e que no tempo oportuno manifestou a sua Palavra pela pregação a mim confiada segundo o mandato de Deus nosso Salvador..." (Tito 1:1-3)

Como pode ver-se, nas palavras do Senhor trata-se de confiar algo verdadeiro para ser guardado. Nas outras duas referências de Paulo, o depósito de que se fala é nada menos que o Evangelho e a sua pregação. Portanto, quando o Apóstolo diz que aos judeus lhes foram confiados os ditos ou oráculos de Deus, deve entender-se sem dúvida a totalidade da revelação do Antigo Testamento, facto admitido por comentaristas católicos:

"À pergunta formulada pelo imaginário interlocutor responde Paulo, em geral, que a superioridade é grande em muitos aspectos. Em primeiro lugar – e como fonte de todos os privilégios não enumerados aqui [cf. Romanos 9:1-5- Fernando D. Saraví] -, aos judeus lhes foi confiada a revelação de Deus, especialmente as promessas messiânicas [Nota de rodapé: Entendemos por logia todo o A.T., sobretudo as promessas...]".

José Ignacio Vicentini, S.I. Carta a los Romanos. Em La Sagrada Escritura. Texto y comentario por Profesores de la Compañía de Jesús, 2ª Ed. Madrid: BAC, 1965, NT vol. II, p. 199; negrito acrescentado.

Além disso, o próprio Paulo refutou de antemão as objeções do nosso anónimo defensor dos apócrifos; pois o mesmo texto que ele questiona, prossegue:

"Pois quê? Se alguns deles foram infiéis, anulará, porventura, a sua infidelidade a fidelidade de Deus? De modo nenhum! Deus tem que ser veraz e todo o homem mentiroso, como diz a Escritura: Para que sejas justificado nas tuas palavras e triunfes ao ser julgado." Romanos 3:3-4

De maneira que é muito impróprio rebaixar a declaração de Paulo em Romanos 3:2 questionando a prerrogativa divinamente atribuída aos hebreus de serem recetores, guardiães e custódios da revelação do Antigo Pacto. E que isto não é modificado de modo algum pela infidelidade de uma parte de Israel o afirma explicitamente o Apóstolo no mesmo texto.

Além disso, os judeus demonstraram efetivamente ser diligentes e zelosíssimos conservadores e guardiães das Escrituras, como o mostra a fidelidade da transmissão do texto hebraico ao longo dos séculos.


Os manuscritos mais antigos do AT (por mil anos) contêm os Deuterocanónicos. Salvo a ausência de Macabeus no Codex vaticanus, o mais antigo texto grego do AT, TODOS OS DEMAIS manuscritos contêm os sete livros.

Se nos limitarmos aos mais antigos códices da Septuaginta que se conservam, ou seja o Alexandrino (A), o Vaticano (B) e o Sinaítico (Alef), vemos que:

O Códice Alexandrino, do século V, inclui as adições gregas a Ester e Daniel, Baruc, Tobite, Judite, 1 e 2 Macabeus, a Sabedoria de Salomão, e a Sabedoria de Jesus ben Sirá (= Eclesiástico). Mas também inclui livros que a Igreja Católica nunca admitiu como canónicos, a saber: 1 Esdras (não confundir com o Esdras canónico), 3 e 4 Macabeus e, no Novo Testamento, 1 e 2 Clemente e os Salmos de Salomão.

O Códice Vaticano, do século IV, inclui a Sabedoria, o Eclesiástico, adições a Ester e Daniel, Judite, Tobite, Baruc com a epístola de Jeremias, mas também 1 Esdras, nunca aceite como canónico, e exclui os livros dos Macabeus.

O Códice Sinaítico, também do século IV, inclui Tobite, Judite, 1 Macabeus e ambas as Sabedorias. Faltam Baruc e 2 Macabeus, mas estão 4 Macabeus e, no NT, a Epístola de Barnabé e um fragmento de O Pastor de Hermas, livros nunca tidos por canónicos pela Igreja Católica.

Portanto, a presença dos livros eclesiásticos/deuteros/apócrifos nestes códices não é mais garantia da sua canonicidade do que a de 3 e 4 Macabeus, 1 Esdras, 1 e 2 Clemente, a Epístola de Barnabé ou O Pastor de Hermas.


"Dos 850 documentos que acharam restos em Qumrán, uns 223 são cópias de distintos livros do Antigo Testamento; se encontram representados quase todos os livros da Bíblia hebraica (menos Ester), e alguns deuterocanónicos (Tobias, e Ben Sira ou Eclesiástico)...

Como se sabe, a atual Bíblia hebraica tem como base um manuscrito de Leningrado copiado no ano 1008 D.C., e representa o texto consonântico oficial rabínico (Texto Massorético), fixado com toda a precisão no século II d. C., e transmitido sem variantes até aos nossos dias. Diante dele, os cristãos do Oriente e os ocidentais não reformados utilizaram habitualmente os livros e o texto representados pela antiga versão grega dos LXX... Ao publicar-se os primeiros manuscritos bíblicos de Qumrán, em concreto, os rolos de Isaías encontrados na cova 1, verificou-se que estes textos - mil anos mais antigos que os manuscritos medievais em que se baseiam as bíblias hebraicas e anteriores à unificação massorética.- eram praticamente iguais ao texto conhecido".

Los documentos del Qumrán, ¿qué aportan al cristianismo, por Eulalio Fiestas Le-Ngoc en Palabra, Octubre 1994, p. 71.

Perfeito, isto corrobora a fidelidade com a que os escribas judeus conservaram o depósito dos oráculos de Deus, de que fala Paulo em Romanos 3:2 e 9:1-5.

A existência de livros apócrifos/deuteros em Qumran não lhes confere nenhum valor canónico, pois acharam-se ali muitos outros livros muito apreciados pela seita que nunca entraram no cânon hebreu nem tampouco no católico, como a Regra da Congregação, o Génesis Apócrifo, o livro dos Jubileus e A guerra dos filhos da luz contra os filhos das trevas.

Nota F.F. Bruce:

«Porém, os homens de Qumran não deixaram uma declaração indicando precisamente quais dos livros representados na sua biblioteca tinham categoria de sagrada escritura na sua estimação, e quais não. Um livro que estabelecia a regra da comunidade para a vida ou a prática litúrgica era sem dúvida considerado como autoridade, do mesmo modo que o é (ou o era) o Livro de Oração Comum na Igreja de Inglaterra, mas isto não lhe dava status escritural.
...
É provável, de facto, que no começo da era cristã os essénios (incluída a comunidade de Qumran) estivessem em substancial acordo com os fariseus e os saduceus sobre os limites da Escritura hebraica.


F.F. Bruce, The Canon of Scripture. Downers Grove: InterVarsity Press, 1988, p. 39,40; negrito acrescentado.


Os Padres conciliares (de Trento) sabiam que os concílios africanos (Hipona, Cartago) do século IV tinham aceitado os livros deuterocanónicos; é curioso, que Trento, ao aceitar um cânon mais longo, parece ter conservado uma autêntica lembrança dos primeiros dias do cristianismo, enquanto outros grupos cristãos, em seu reconhecido intento de voltar ao cristianismo primitivo, decidiram-se por um cânon judeu mais reduzido que, se estão certos alguns investigadores protestantes como A.C. Sundberg e J.P. Lewis, era uma criação de época posterior".

Estes investigadores protestantes descobriram que a Igreja primitiva usava o rolo grande!

Como disse, "o rolo grande" significando a Septuaginta com apócrifos, somente existe na imaginação do autor. As cópias da Septuaginta com apócrifos e outros livros não canónicos que se conservaram não estão em forma de rolo, mas de códice (livro).

Nada pode ser "curioso" em Trento, se se recordar que entre os bispos ali presentes dificilmente haveria algum que conhecesse os factos históricos, e soubesse dos resultados da erudição mais recente. Tenho para mim que os bispos tridentinos fizeram assim porque não sabiam mais. A conclusão dos eruditos protestantes que nomeia (sem citar) não faz justiça aos ensinos da vasta maioria dos eruditos bíblicos que até ao próprio século XVI opinaram sobre o cânon.


Quando os autores do NT citam algo do AT, o citam segundo a tradução grega dos Setenta 86% das vezes. Alguns irmãos admitem isto mas tratam de dizer que os sete livros eram "suplemento" do rolo grande, e por isso Cristo e os apóstolos não os citaram. Mas os autores do NT não faziam esta distinção. Citar o rolo era admitir que todo ele é inspirado. Se eram falsos, juntá-los como "suplemento" teria sido fazer impuro todo o rolo (e o culto no qual se os utilizava). Sabemos a reverência dos judeus para com as Sagradas Escrituras. Quando Jesus entrou na sinagoga para ler o livro (Lc 4, 6-17) teria sido um momento proveitoso para dizer que entre os livros havia sete que não eram inspirados.

Todo este parágrafo se baseia no erro já apontado de crer que todo o AT circulava como um único rolo, quer fosse na sua versão "curta" ou "longa". Tudo indica que não era assim, pois nos tempos de Jesus e dos Apóstolos usavam-se com exclusividade rolos separados para os diferentes livros (com algumas exceções como Esdras-Neemias e os Doze Profetas Menores); ver Lucas 4:17, "o volume de Isaías" (= o rolo de Isaías; a palavra latina volumen significava "algo enrolado"); possivelmente também 2 Timóteo 4:13 atesta este uso.

Portanto, os Apóstolos e os seus discípulos podiam perfeitamente usar os rolos dos livros canónicos da Septuaginta sem por isso avalizar os rolos dos apócrifos.


Além disso, os sete são citados na Tradição oral, como demonstram os padres apostólicos. E são citados direta ou indiretamente nos seguintes: Mt 6, 7 alude a Eclo 7, 14. Mt 6, 14 alude a Eclo 28, 2; Rm 1, 19-32 alude a Sab de 12, 24 a 13, 9; Ef 6, 14 a ideia está em Sab 5, 17-20, e Tg 1, 19 é influenciado por Eclo 5, 13. 1 P 1, 6-7 se vê em Sab 3, 5-6. Compara Heb 1, 3 e Sab 7, 26-27 1 Co 10, 9-10 com Jud 8, 24-25, 1 Co 6, 13 e Eclo 36, 20, etc. É importante recordar que os irmãos aceitam livros do AT que nunca são citados no NT como Rute, Eclesiastes, Cantares, e que a Carta de Judas (vv. 14 e 9) cita 1 Enoque e a "Assunção de Moisés"! Por que aceitar alguns livros, mas não todos quando foi a própria Igreja que decidiu aceitar toda a Bíblia de uma vez como a têm os católicos?

De novo, as decisões dos sínodos locais de Hipona e Cartago não foram vinculantes para a Igreja Universal ou Católica.

Sobre o facto de alguns livros do cânon hebreu não se citarem no Novo Testamento já falamos antes.

É verdade que o Novo Testamento faz alusão em Judas a um incidente que é narrado em 1 Enoque, mas isto não bastaria para conceder status canónico a este livro tardio. Primeiro, porque é possível que ambos dependam de uma fonte comum. O que concede status canónico à tradição de Enoque é precisamente ser citada no Novo Testamento, não ao contrário. E por outro lado este livro em particular, 1 Enoque, nunca foi aceite por católicos nem protestantes.

Para além disso, no Novo Testamento também há citações de autores pagãos (Atos 17:28, palavras que aparecem no Hino a Zeus de Cleantes e nos Phaenomena de Arato; Tito 1:2, palavras de Epiménides; e outros possíveis exemplos). Isso não outorga estado canónico a estes autores da gentilidade. (Veja-se Poets, Pagan, Quotations from, em Merril C. Tenney, Ed., The Zondervan Pictorial Bible Dictionary. London-Edinburgh: Marshall, Morgan & Scott, 1963 p. 672.)

É também correto que no NT existem alusões a livros apócrifos/deuterocanónicos e a outros que não pertencem ao cânon católico (pseudoepígrafos, que os católicos chamam apócrifos). A compilação mais extensa que consegui encontrar destas alusões, trinta páginas! encontra-se nas pp. 190-219 da obra de Craig A. Evans, Noncanonical Writings and New Testament Interpretation (Peabody: Hendrickson, 1992).

O que o entusiasta apologista católico não dá sinais de entender é que precisamente este grande número de alusões constitui a evidência mais clara de que os autores inspirados do Novo Testamento conheciam bem estes livros, e no entanto não os citam jamais como Escritura.

Como hebreus que eram em sua maioria, é natural que conhecessem muita literatura judaica não canónica, facto que é refletido frequentemente na sua linguagem, mas ainda assim não extraíram nem sequer um texto dos apócrifos para citá-lo formalmente como Escritura. Pelo que esta evidência, longe de provar a tese católica, a refuta de maneira terminante.

Em resumo:

1. No Novo Testamento citam-se como Escritura 80 % dos livros canónicos (ou 90 % se se os conta como rolos) e 0 % dos apócrifos/deuterocanónicos.

2. No tempo de Jesus o Antigo Testamento não se reunia num livro, mas em rolos individuais com um só livro ou vários breves. Era impossível escrever todo o Antigo Testamento num único rolo de dimensões manejáveis.

3. Romanos 3:1-2 e 9:1-5 ensina que as Escrituras do Antigo Pacto (os oráculos de Deus e as Promessas) foram confiadas aos judeus, e que a infidelidade de alguns deles não invalidava este facto. Portanto, os cristãos devem admitir o cânon hebreu.

4. Os mais antigos códices cristãos (Alexandrino, Vaticano e Sinaítico) diferem entre si quanto aos apócrifos/deuterocanónicos que incluem, e além disso contêm livros que nunca foram admitidos como canónicos; portanto a mera presença de um livro apócrifo ali não é prova da sua canonicidade.

5. A existência de alguns apócrifos na biblioteca do Mar Morto também não é prova de um cânon mais amplo que o hebreu, porquanto não temos uma lista essénia de livros canónicos e, além disso, havia ali muitos livros que não se encontram no cânon católico.

6. É verdade que Justino usou a Septuaginta, mas chamativamente não cita os escritos apócrifos/deuterocanónicos.

7. O Novo Testamento contém numerosas alusões aos apócrifos/deuterocanónicos, o que demonstra que os apóstolos e seus discípulos conheciam estes livros. Apesar disso, nunca os citam como Escritura.


Ao fim e ao cabo o debate sobre se os sete livros são apócrifos ou não, é um debate sobre como sabemos se eles são inspirados. E vimos que sem a Igreja não podemos saber isso. O católico sabe com certeza que a Bíblia é inspirada porque a Igreja católica disse que o era, a última vez no concílio de Trento.

Ah! Até que enfim o disse...Toda a discussão está encaminhada a justificar uma autoridade abusiva da Igreja. Que não seria o que hoje chamamos "Igreja Católica", mas a autenticamente católica Igreja antiga, que compreendia toda a cristandade e não apenas parte da cristandade ocidental.

A ser assim, um católico teria permanecido na incerteza por mais de quinze séculos, já que não havia decisão explícita prévia de nenhum concílio ecuménico. E porque além disso, como explico mais abaixo, a lista de livros canónicos do Antigo Testamento de Hipona e Cartago não coincide exatamente com a de Trento.

Os membros da Igreja não sabem que são inspirados por eles próprios, mas pelo testemunho do Espírito Santo.


Martinho Lutero no seu Comentário sobre São João disse: "Estamos obrigados a admitir aos Papistas que eles têm a Palavra de Deus, que a recebemos deles, e que sem eles não teríamos nenhum conhecimento desta".

Correto, porque o Dr. Lutero formou-se como "papista", foi ordenado na Igreja Católica e, naturalmente, conheceu as Escrituras aí. Não teria dito a mesma coisa se tivesse nascido em Bizâncio ou Antioquia.


Esta Igreja pronunciou que TODOS os 73 livros que compõem o Antigo e Novo Testamento são revelação.

Sim, em 1546, numa decisão sem precedentes tomada por um punhado de bispos mal informados. O Concílio tinha sido inaugurado a 13 de dezembro de 1545.

"O assunto da Sagrada Escritura e da Tradição foi então trazido para a sua discussão preliminar a 12 de fevereiro. Quatro artigos tomados dos escritos de Lutero foram propostos à consideração, ou melhor, para a sua condenação. Destes, o primeiro afirmava que só a Escritura (sem tradição) era a única e completa fonte de doutrina; o segundo que somente o cânon hebreu do Antigo Testamento e os livros reconhecidos do Novo Testamento deviam ser admitidos como providos de autoridade. Estes dogmas foram discutidos por cerca de trinta eclesiásticos em quatro reuniões. Sobre o primeiro ponto houve um acordo geral. Admitiu-se que a tradição era uma fonte de doutrina coordenada com a Escritura. Sobre o segundo ponto houve grande variedade de opiniões. Alguns propuseram seguir o juízo do Cardeal Caetano e distinguir dois tipos de livros como, se argumentou, tinha sido a intenção de Agostinho. Outros desejavam traçar a linha de distinção ainda mais exatamente, e formar três tipos, (1) os Livros Reconhecidos, (2) os Livros Disputados do Novo Testamento, como tendo sido depois geralmente recebidos, [e] (3) os Apócrifos do Antigo Testamento. Um terceiro partido desejava dar uma mera lista, como a de Cartago, sem nenhuma definição adicional da autoridade dos livros incluídos nela, de modo a deixar o assunto ainda aberto. Um quarto partido, influenciado por uma falsa interpretação das decretais papais anteriores, insistiu na ratificação de todos os livros do cânon ampliado como de autoridade igualmente divina. A primeira opinião depois se fundiu com a segunda, e a 8 de março se confecionaram três minutas compreendendo as três opiniões persistentes. Estas foram consideradas privadamente, e a 15 [de março] a terceira foi aceite por uma maioria de vozes. O decreto no qual foi finalmente expressa foi publicado a 8 de abril, e pela primeira vez a questão do conteúdo da Bíblia foi feito um artigo absoluto de fé e confirmado com um anátema.

Este decreto fatal, no qual o Concílio, acossado pelo medo aos críticos laicos e "gramáticos", deu um novo aspecto a toda a questão do cânon, foi ratificado por cinquenta e três prelados, entre os quais não havia nenhum alemão, nenhum estudioso distinguido por sua erudição histórica, nem um que fosse apto mediante especial estudo para o exame dum assunto no qual a verdade somente poderia ser determinada pela voz da antiguidade. Quão completamente oposta era a decisão ao espírito e à letra dos juízos originais das Igrejas grega e latina, quanto diferia na igualação doutrinal dos livros disputados e reconhecidos do Antigo Testamento com a opinião tradicional do Ocidente, quão absolutamente sem precedentes foi a conversão de um costume eclesiástico num artigo de fé..."

Brooke Foss Westcott, The Bible in the Church, 3rd Ed. London-Cambridge: Macmillan & co., 1870, p. 255-257.


Ao condenar poucos dias depois da morte de Martinho Lutero (ocorrida a 18 de fevereiro de 1546) a doutrina da Sola Scriptura, os bispos de Trento acreditaram percorrer um caminho seguro. Adeririam à decisão de Cartago, a qual tinha sido enviada a Roma para sua corroboração, apesar de esta nunca ter ocorrido de maneira oficial. No entanto, mais tarde o papa Inocêncio I, numa carta de 405 dirigida ao bispo de Tolosa, Exupério, deu uma lista idêntica à de Cartago para o Antigo Testamento (ver # 96 em Enrique Denzinger, El Magisterio de la Iglesia. Manual de los Símbolos, Definiciones y Declaraciones de la Iglesia en Materia de Fe y Costumbres. Versión directa de los textos originales de Daniel Ruiz Bueno. Barcelona: Herder, 1955, p. 37). E algum tempo depois a mesma lista apareceu numa série de Decretais atribuídas variavelmente aos papas Dámaso (366-384), Gelásio (492-496) ou Hormisdas (514-523), que na realidade parecem ter sido fruto de uma compilação privada feita no século VI em algum lugar de Itália. Além disso, no Concílio de Florença (Bula Cantate Domino de 4 de fevereiro de 1442, Denzinger #706) se tinha imposto a mesma lista aos cristãos jacobitas. Ao que parece, isto foi suficiente para os bispos tridentinos. Eis aqui a declaração de Trento sobre o cânon do Antigo Testamento:

Ora, [o sacrossanto, ecuménico e universal Concílio de Trento] acreditou ser seu dever escrever adjunto a este decreto um índice [o cânon] dos livros sagrados, para que a ninguém possa ocorrer dúvida sobre quais são os que pelo mesmo Concílio são recebidos. São os que a seguir se escrevem: do Antigo Testamento, 5 de Moisés; a saber: o Génesis, o Êxodo, o Levítico, os Números e o Deuteronómio; o de Josué, o dos Juízes, o de Rute, 4 dos Reis, 2 dos Paralipómenos, 2 de Esdras (dos quais o segundo se chama de Neemias), Tobias, Judite, Ester, Job, o Saltério de David, de 150 salmos, as Parábolas, o Eclesiastes, Cântico dos Cânticos, a Sabedoria, o Eclesiástico, Isaías, Jeremias com Baruque, Ezequiel, Daniel, 12 Profetas menores, a saber: Oseias, Joel, Amós, Obadias, Jonas, Miqueias, Naum, Habacuque, Sofonias, Ageu, Zacarias, Malaquias; 2 dos Macabeus: primeiro e segundo.

Denzinger #783-784; p. 223.

Para os não habituados, aclaro que os quatro de Reis são 1 e 2 Samuel e 1 e 2 Reis; que Paralipómenos é outro nome de Crónicas, e que Parábolas se refere a Provérbios. O conjunto é muito parecido ao decidido em Cartago.

Porém havia um erro fatal. A decisão do III Concílio de Cartago sobre o cânon da Sagrada Escritura dizia o seguinte para o Antigo Testamento:

Can. 36 (ou 47). [Acordou-se] que, fora das Escrituras canónicas, nada se leia na Igreja sob o nome de Escrituras divinas. Ora, as Escrituras canónicas são: Génesis, Êxodo, Levítico, Números, Deuteronómio, Jesus Navé [Josué], Juízes, Rute, quatro livros dos Reis, dois livros dos Paralipómenos, Job, Psaltério de David, cinco livros de Salomão (Provérbios, Eclesiastes, Cantares, Sabedoria, Eclesiástico), doze livros dos profetas, Isaías, Jeremias, Daniel, Ezequiel, Tobias, Judite, Ester, dois livros de Esdras, dois livros dos Macabeus.

Na transcrição desta decisão na obra de Denzinger (#92, p. 35) se omite a menção aos dois livros de Esdras. Isto é particularmente notável porque precisamente aí está a discrepância entre o cânon proclamado pelos bispos de Cartago e o sancionado pelos de Trento.

Com efeito, é preciso ter em conta que os bispos do norte de África usavam por aquela época a tradução da Septuaginta conhecida como a Antiga Latina, ou Ítala. E como naquele tempo os códices da Septuaginta incluíam outros livros além dos pertencentes ao cânon hebreu, não é estranho que os incluíssem entre os livros canónicos. No entanto, os dois livros de Esdras de que fala Cartago não são os mesmos a que se quis dar sanção canónica em Trento. Isto se explica por uma diferença entre as versões Antiga Latina e a Vulgata de Jerónimo.

Havia na realidade quatro livros atribuídos ao sacerdote e escriba Esdras. O autor católico Charles L. Souvay observa:

"Não pouca confusão surge dos títulos destes livros. Esdras A [= 1 Esdras] da Septuaginta é o 3 Esdras de São Jerónimo, enquanto que o Esdras B [= 2 Esdras] grego corresponde a 1 e 2 Esdras da Vulgata, os quais estavam originalmente unidos num livro. Os escritores protestantes, de acordo com a Bíblia de Genebra, chamam 1 e 2 Esdras da Vulgata respetivamente Esdras e Neemias, e 3 e 4 Esdras da Vulgata respetivamente 1 e 2 Esdras. Seria desejável contar com uma uniformidade de títulos."

s.v. Esdras (Ezra) em The Catholic Encyclopedia, vol 5, 1909.

Na Septuaginta cristã, como na Antiga Latina baseada nela que usava Agostinho e os africanos, 2 Esdras era o que hoje conhecemos como Esdras e Neemias. Por seu lado, 1 Esdras era um apócrifo que incluía algum material original sobre o retorno de Zorobabel juntamente com outro retirado principalmente de Crónicas e do Esdras canónico. Os cartaginenses admitiram este livro no seu cânon. Mas na Vulgata que conheciam os prelados de Trento, 1 e 2 Esdras correspondiam a Esdras e Neemias, enquanto o livro 1 Esdras de Cartago encontrava-se num apêndice da Vulgata como 3 Esdras (4 Esdras é o chamado Apocalipse de Esdras).

Em resumo, o Concílio de Trento na verdade deixou fora do seu Cânon um livro que tinha sido sancionado como canónico em Cartago. Devido a este erro, os cânones de Trento e de Cartago não são de facto iguais entre si no que ao Antigo Testamento diz respeito.

É preciso acrescentar que além de invalidar o decidido em Cartago, em Trento se contradisse na verdade também o papa Inocêncio I (e quiçá outros) que tinha aderido à lista cartaginesa baseada na Antiga Latina.


Em 1615 o Arcebispo Anglicano de Cantebury proclamou uma lei que previa um castigo de um ano na prisão para qualquer pessoa que publicasse a Bíblia sem os sete livros deuterocanónicos, uma vez que a versão original da King James os tinha. "Foi decidido que nada seja lido na Igreja além das Escrituras divinas. As Escrituras canónicas são as seguintes: Génesis, Êxodo, Levítico, Números, Deuteronómio, Josué...Tobite, Judite,... os dois livros de Macabeus, dois livros..." (Cânon N° 3).

Muito bem, mas não se trata de uma "definição infalível".

Os Trinta e Nove Artigos da Igreja de Inglaterra estabeleceram a posição oficial anglicana em relação aos livros apócrifos em 1563, nos seguintes termos: E os outros Livros (como disse Jerónimo) a Igreja os lê para exemplo de vida e instrução de costumes; mas não se dirige a eles para estabelecer doutrina alguma. (Artigo VI).


Irmão, imaginemos que um cristão somente tem o Evangelho de Marcos, lhe faltaria muito no seu conhecimento de Jesus Cristo, não saberia nada da sua infância, porque isto se encontra somente em Lucas e Mateus; nada do Pai Nosso (não está em Marcos), a parábola do filho pródigo, a boda de Caná, etc. Se um irmão tivesse somente uma folha da Bíblia, poderia pensar que sabe toda a revelação de Deus? Sem a Bíblia católica um irmão dificilmente saberia toda a revelação de Deus sobre:

-Os defuntos e o purgatório (2 Mac 12, 45; Sab 3, 5-6), sobre a alma (Sab 3,1),


-O bom uso do vinho (Eclo 31, 25-27),

-Maria, a mãe de Jesus (Jdt 13, 18-20),

-A intercessão dos Santos por nós (2 Mac 15,13-14)

E muitas outras coisas. Por que não pedir a Deus luz sobre este assunto importante?

Haveria que analisar cada um destes textos no seu contexto para ver se realmente apoiam o que se diz. De momento, simplesmente notarei que a maioria das coisas que se mencionam ora são ensinadas noutros textos, ora são doutrinas especificamente católicas, e daí o óbvio interesse em conservar estes livros dentro do cânon. Não se trata de se são inspirados ou não, mas se servem para ser usados como textos de prova para doutrinas que possuem escasso ou nulo apoio no cânon hebreu ou no Novo Testamento.


Que disse a Igreja primitiva? Entre os padres da Igreja

-Clemente cita Judite, Tobias e Ester. Na sua Carta aos Coríntios (27, 5). Cita Sab. 12, 12.

-Didaquê cita Eclo 4, 31 (em 4, 5) e Sab12, 5 (em 5, 2).

-Carta de Barnabé cita Sab 2, 12 (em 6, 7).

-Policarpo, na sua Carta aos Filipenses (10:2) cita Tobias 4, 10.

Também os sete livros "deuterocanónicos" ofereceram aos antigos artistas cristãos matéria para decorar as catacumbas.

É uma pena que não tenha explicitado as citações de Judite, Tobias e Ester. Parece-me que o autor confunde Clemente de Roma com o seu homónimo que viveu em Alexandria no século seguinte (não lhe importa, o fundamental é provar a sua tese a qualquer custo). É verdade que Clemente de Roma reproduz o texto de Sabedoria 12:12 na sua carta aos coríntios (27:5), mas também é verdade que não introduz tal texto como se fosse Escritura.

Clemente, um dos vários bispos que por então havia em Roma, em finais do século I escreveu uma extensa carta aos coríntios. Demonstra conhecer muito bem tanto o Antigo Testamento como os escritos apostólicos. Cita os Evangelhos, as cartas de Paulo, de Pedro e de Tiago. Também Hebreus, epístola com a qual mostra grande afinidade. Do Antigo Testamento cita as três divisões, Lei, Profetas e Salmos, estes últimos com muita frequência. No entanto, não cita nenhum dos livros eclesiásticos embora umas poucas alusões indicam que conhecia a Sabedoria de Salomão (facto já mencionado). Eis aqui pois, um pastor romano do primeiro século que se distingue pelo seu conhecimento das Escrituras e que jamais cita os livros eclesiásticos (apócrifos, deuterocanónicos) como Escritura.

A Didaquê (4:5) não introduz Eclesiástico 4:31 como uma citação escritural. E do longo versículo 12:5 de Sabedoria, em 5:2 somente coincide (de novo sem citá-lo como Escritura) nas palavras "assassinos dos seus filhos".

A Epístola de Barnabé diz em 6:7 "Como, pois, havia o Senhor de manifestar-se e sofrer na carne, foi de antemão mostrada a sua paixão. Diz, com efeito, o profeta contra Israel: Ai da alma deles, pois tramaram desígnio mau contra si mesmos! Amarremos o justo, porque ele nos incomoda."

Por seu lado, Sabedoria 2:12 diz: "Armemos laços ao justo porque nos incomoda, e se opõe à nossa forma de atuar. Censura-nos as transgressões da Lei, acusa-nos de sermos infiéis à nossa educação."

No entanto, tanto Barnabé como Sabedoria parecem depender do muito canónico Isaías: "Ai deles, porque fazem o mal a si mesmos! Feliz o justo, porque tudo lhe vai bem! Com efeito, colherá o fruto do seu procedimento. Mas ai do ímpio, do homem mau! Porque será tratado de acordo com as suas obras." (Isaías 3:9-11, Bíblia de Jerusalém)

Finalmente, Policarpo reproduz as palavras de Tobias 4:10, "a esmola livra da morte", mas novamente sem citá-las como Escritura.

É verdade, por outro lado, que outros escritores cristãos primitivos, como Clemente de Alexandria, foram mais amplos nas suas citações dos apócrifos. No entanto, virtualmente todos os Padres que se pronunciaram explicitamente sobre o cânon põem os apócrifos/deuterocanónicos num nível inferior ao do cânon hebreu, como livros "eclesiásticos", contrariamente ao que séculos mais tarde se decidiu em Trento.

Em resumo:

1. Se se necessitasse da autoridade infalível da Igreja Católica Romana para conhecer o cânon do Antigo Testamento, todo o cristão teria permanecido no erro ou pelo menos na incerteza até 1546.

2. Após algumas deliberações de uns poucos bispos, o Concílio de Trento condenou de facto os pontos de vista de Lutero sobre a suficiência da Escritura e sobre o cânon do Antigo Testamento (onde Lutero coincidia com São Jerónimo).

3. A posição oficial da Igreja Anglicana coincide com a de São Jerónimo e Lutero.

4. No Concílio de Trento fez-se do conteúdo preciso da Bíblia, pela primeira vez na história da Igreja, um artigo de fé obrigatório, sancionado com um anátema.

5. No entanto, por um grosseiro erro, o Cânon do Antigo Testamento sancionado em Trento deixou fora do cânon um livro (1 Esdras da Antiga Latina = 3 Esdras do Apêndice da Vulgata) que tinha sido declarado canónico pelo Concílio de Cartago e por vários papas.

6. Uma razão pela qual a Igreja Católica defende tão decididamente os apócrifos/deuterocanónicos é que crê achar neles apoio para algumas das suas doutrinas peculiares.

7. Outra razão é que se se admite a sua autoridade para decidir o cânon, forçosamente terá de admitir-se a sua autoridade noutros assuntos.

8. É verdade que os Padres Apostólicos conheciam os Apócrifos, mas não os citam como Escritura.

9. Outros foram mais amplos na prática, mas a maioria admitiu a distinção entre livros canónicos (os do cânon hebreu) e livros eclesiásticos, de valor mas não ao mesmo nível que aqueles.


Fernando D. Saraví
Mendoza-Argentina
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