segunda-feira, 26 de outubro de 2009

João 6:28-65: Um texto eucarístico?


Embora a interpretação romanista da Eucaristia se baseie em grande medida em João 6, no seu contexto esta passagem não está diretamente relacionada com ela. Na verdade, o Evangelho de João é o único que omite as palavras de instituição da Eucaristia.

João 6: 28-29

"Então lhe disseram [os judeus]: - Que faremos para realizar as obras de Deus? Respondeu Jesus e lhes disse: - Esta é a obra de Deus: que creiais naquele que ele enviou."
Aqui Jesus afirma claramente que Deus não está exigindo obras como condição para receber a salvação, exceto a "obra" de crer em Jesus Cristo, que foi enviado pelo Pai. Esta fé leva à salvação e à vida eterna.
vv. 30-31
"Então lhe disseram: - Que sinal, pois, fazes tu, para que vejamos e creiamos em ti? Que obra fazes? Nossos pais comeram [efagon] o maná no deserto, como está escrito: Pão do céu lhes deu a comer [faguein]."
 Para poder crer, os judeus exigiam um sinal ou milagre; como, por exemplo, o milagre do maná que seus antepassados tinham recebido no deserto. Este foi o seu primeiro erro. Note-se cuidadosamente que foram os interlocutores de Jesus que trouxeram para o debate o tema do alimento milagroso. A resposta de Jesus deve interpretar-se à luz deste desafio.
vv. 32-33
"Portanto Jesus lhes disse: - Em verdade, em verdade vos digo que não vos deu Moisés o pão do céu, mas meu Pai vos dá o verdadeiro pão do céu. Porque o pão de Deus é aquele que desce do céu e dá vida ao mundo."
"Portanto" indica a reação de Jesus perante a exigência dos seus ouvintes. Agora o Senhor usa as próprias palavras deles para ensiná-los com autoridade. Começa afirmando que a descida do maná não foi obra de Moisés mas do próprio Deus e, logo a seguir, estabelece que o verdadeiro pão que desce do céu não é o maná, mas uma Pessoa enviada pelo Pai para que o mundo pudesse ter vida através dela. O maná que sustentou o povo peregrino e faminto de Israel e permitiu a sua sobrevivência física não foi senão uma sombra ou tipo do verdadeiro alimento celestial, ou seja, Cristo, por meio de quem temos vida eterna.
vv. 34-36
"Disseram-lhe: - Senhor, dá-nos sempre este pão. Jesus lhes disse: - Eu sou o pão da vida. Aquele que vem a mim nunca terá fome, e aquele que crê em mim jamais terá sede. Mas vos disse que me vistes, e não credes."
Apesar da declaração de Jesus, os seus ouvintes continuam pensando em comidas, como uma espécie de "super-maná". Portanto, agora o Senhor se torna mais explícito: os judeus não devem esperar simplesmente um melhor maná, mas a definitiva salvação de Deus, a qual não se encontra senão em Cristo. Não se trata, como ensina a doutrina da transubstanciação, de o pão se converter em Cristo, mas de que Ele é como um pão que dá vida eterna. A única forma de comer este pão é crer em Jesus, que por disposição do Pai é Senhor e Salvador. Jesus é capaz de levar à vida eterna todo aquele que crê.
vv. 37-40
"Todo o que o Pai me dá virá a mim; e o que vem a mim, jamais o lançarei fora. Porque eu desci do céu, não para fazer a minha vontade, mas a vontade daquele que me enviou. E esta é a vontade daquele que me enviou: que eu não perca nenhum de todos aqueles que me deu, mas que eu o ressuscite no último dia. Esta é a vontade de meu Pai: que todo aquele que vê o Filho e crê nele tenha vida eterna, e que eu o ressuscite no último dia."
Quem desceu do céu não é outro senão Jesus, e portanto Ele é a comida e a bebida da salvação. Mas como ocorre com frequência nos Evangelhos, e particularmente neste de João, aqueles que falam com Jesus não entendem o que lhes está a dizer.
vv. 41- 42
"Então os Judeus murmuravam dele porque dissera: "Eu sou o pão que desceu do céu." E diziam: - Não é este Jesus, o filho de José? Não conhecemos o seu pai e a sua mãe? Como é que agora diz: "Desci do céu"? "
A segunda coisa que os interlocutores de Jesus questionam é a origem celestial do Senhor. Eles objetam que o conhecem a ele e à sua família. Jesus parecia ser mais um deles. Como poderiam crer que este homem tinha sido enviado diretamente por Deus?
vv. 43-47
"Jesus respondeu e lhes disse: - Não murmureis mais entre vós. Ninguém pode vir a mim, se o Pai que me enviou não o trouxer; e eu o ressuscitarei no último dia. Está escrito nos Profetas: E serão todos ensinados por Deus. Assim que, todo aquele que ouve e aprende do Pai vem a mim. Não é que alguém tenha visto o Pai, mas aquele que provém de Deus, este viu o Pai. Em verdade, em verdade vos digo: Aquele que crê tem vida eterna."
- Aqui Jesus reafirma a sua autoridade em termos inequívocos. Somente por meio d`Ele podem os seus ouvintes ter vida eterna. O Senhor fundamenta o seu ensinamento com uma citação bíblica (ver Isaías 54:1-3). A seguir, Jesus retoma e elabora o que lhes tinha dito antes.
- Como se tem argumentado que Jesus falava de comê-lo literalmente (na Eucaristia) com base em João ter usado o verbo trögö em vez do verbo mais comum esthiö ou éfagon, indiquei entre colchetes o verbo usado em cada referência a "comer". O primeiro verbo (esthion) aparece oito vezes nesta passagem, e o segundo (trögö) quatro vezes. As quatro vezes que aparece trögö figura com a mesma construção, "ho trögös", ou "aquele que comer". Mas também em quatro ocasiões (versículos 50, 51 e 53 [duas vezes]), esthion/éfagon se refere a comer "a carne do Filho do homem". Por conseguinte, uma vez que ambas as expressões se usam obviamente como sinónimos, não pode construir-se um argumento com base no uso de "trögö".
vv. 48-51
"Eu sou o pão da vida. Vossos pais comeram [efagon] o Maná no deserto e morreram. Este é o pão que desce do céu, para que o que coma [fagëi] dele não morra. Eu sou o pão vivo que desceu do céu; se alguém come [fagëi] deste pão, viverá para sempre. O pão que eu darei pela vida do mundo é a minha carne."
 A comparação é direta. Aqueles que, guiados por Moisés, comeram o maná do céu, de qualquer modo morreram. Em contrapartida, Jesus oferece agora nada menos que vida eterna, e tal vida perdurável somente pode obter-se por meio dele. Por esta razão, o maná era um tipo ou prefiguração da realidade que se encontra somente em Cristo. Por esta razão ele se descreve a si mesmo como o pão definitivo, um pão que será dado para a salvação do mundo, como depois dirá o Apóstolo, "morto na carne mas vivificado no Espírito". Os seus ouvintes se mostram cada vez mais confundidos, pela simples razão de que eles estão a pensar que Ele fala de comer literalmente a carne de Jesus Cristo. O seu erro foi precisamente desconhecer o paralelo que Jesus traçava.
vv. 52–59
"Então os judeus contendiam entre si, dizendo: - Como pode este dar-nos a comer [fagein] a sua carne? E Jesus lhes disse: - Em verdade, em verdade vos digo que se não comerdes [fagëte] a carne do Filho do homem e beberdes o seu sangue, não tereis vida em vós. Aquele que come [trögön] a minha carne e bebe o meu sangue tem vida eterna, e eu o ressuscitarei no último dia. Porque a minha carne é verdadeira comida, e o meu sangue é verdadeira bebida. Aquele que come [trögön] a minha carne e bebe o meu sangue permanece em mim, e eu nele. Assim como me enviou o Pai vivente, e eu vivo pelo Pai, da mesma maneira aquele que me come [trögön] também viverá por mim. Este é o pão que desceu do céu. Não como os pais que comeram [efagon] e morreram, aquele que come [trögön] deste pão viverá para sempre. Estas coisas disse na sinagoga, quando ensinava em Cafarnaum."
Em vez de dar-lhes mais explicações, Jesus insiste no que disse: Ele é o pão da vida. Para os que desejam vida eterna, a sua carne é a única verdadeira comida e o seu sangue é a única verdadeira bebida.
vv. 60–63
"Então, ao ouvi-lo, muitos dos seus discípulos disseram: - Dura é esta palavra; quem a pode ouvir? Sabendo Jesus em si mesmo que os seus discípulos murmuravam disto, disse-lhes: - Isto vos escandaliza? E se vísseis o Filho do Homem subir para onde estava primeiro? O Espírito é o que dá vida; a carne não aproveita para nada. As palavras que eu vos falei são Espírito e são vida."
- Muitos dos que ouviram Jesus, incluídos alguns dos seus discípulos, se ofenderam pelo que eles pensaram que era um ensinamento escandaloso. Em vez de suavizar as suas palavras, o Senhor coloca mais outro desafio: se eles achavam isto tão duro que por essa razão rejeitavam a oferta de salvação, quanto mais duro haveria de ser quando vissem Jesus em glória e se dessem conta do que haviam perdido por causa da dureza dos seus corações?
 - A chave para entender corretamente as palavras de Jesus encontra-se na sua declaração sobre o valor do Espírito e da carne, e no facto de que as suas palavras são Espírito e vida. A ênfase está posta na necessidade de crer em Jesus e aceitar a sua salvação.
vv. 64-65
"Mas há entre vós alguns que não creem. Pois desde o princípio Jesus sabia quem eram os que não criam e quem o havia de entregar, e dizia: - Por esta razão vos disse que ninguém pode vir a mim, se pelo Pai lhe não for concedido."
- De novo, o tema central do discurso é a necessidade de crer em Jesus, uma atitude do coração da qual "comer a sua carne e beber o seu sangue" não é senão uma imagem. Erra-se gravemente se se confunde a imagem com a realidade espiritual que representa.
- A teologia católica romana usa esta passagem como uma das suas evidências mais firmes da sua doutrina da transubstanciação, isto é, que em virtude das palavras da consagração de um sacerdote, o pão e o vinho se convertem, sem variar em sua aparência, na carne e no sangue (e Trento acrescenta "alma e divindade", sem justificativa bíblica alguma) de nosso Senhor. Com isto põem a Escritura de pernas para o ar, pois o que o Senhor estava a ensinar não era que o pão e o vinho eucarísticos fossem converter-se n`Ele, mas que Ele era como um pão e um vinho que levam à vida eterna, à diferença do maná que não tinha tal poder.
Deve sublinhar-se enfaticamente que o que entenderam os ouvintes de Jesus a partir das palavras dele é completamente irrelevante, uma vez que eles obviamente interpretaram mal o seu ensinamento:
1. Eles equivocadamente exigiram um sinal como o maná do deserto.
2. Eles equivocadamente rejeitaram que Jesus viesse do céu.
3. Eles equivocadamente ignoraram a exigência de Jesus de crer nele para alcançar a vida eterna.
4. Eles entenderam mal a descrição que Jesus fez de si mesmo como o definitivo pão de Deus, pensando erroneamente que se referia a um ato de canibalismo. 

Colin Brown observou acerca deste texto:
"Supõe-se habitualmente que João 6 é sobre a Ceia do Senhor, embora não haja indício no próprio texto de alguma forma de comida, seja litúrgica ou outra. Apesar disso, é chamado repetidamente um discurso eucarístico, embora não haja referência à Eucaristia ou à última Ceia. Há, no entanto, pelo menos um [caso] prima facie para dizer o inverso. João 6 não é sobre a Ceia do Senhor; antes, a Ceia do Senhor é sobre o que se descreve em João 6. Tem que ver com aquele comer e beber que consiste em crer em Cristo (6:35), o qual é vida eterna (6: 54), e que é descrito em outras palavras como permanecer nele (6:56). O discurso de João 6 representa estas atividades como centrais para a fé e para a relação dos homens com Jesus. Elas não estão confinadas a uma comida sacramental. Pertencem à própria essência das relações quotidianas. Ao apresentar este discurso e omitir uma narração da instituição da Ceia do Senhor, João está na verdade a dizer que o todo da vida cristã deveria caracterizar-se por este alimentar-se de Cristo, e que disso trata precisamente a comida sacramental da Igreja."
(s.v. "Lord's Supper." Colin Brown, Ed. New International Dictionary of New Testament Theology. Grand Rapids: Zondervan, 1976, 2:535; negrito acrescentado).

Em resumo, muitos rejeitaram Jesus porque não conseguiam entender o que ele lhes dizia. Esta notória incompreensão nunca pode ser uma base adequada para a doutrina cristã. Muitos também não o entenderam quando disse que era a Videira, a Porta, que o seu corpo era o Templo, etc.
O texto em consideração não se refere diretamente à Eucaristia, cuja instituição, como antes notei, é omitida no Evangelho de João. O contexto não é eucarístico, mas soteriológico. Trata acerca de quem é Jesus e o que Deus nos oferece por intermédio dele. A imagem da comida e da bebida verdadeiras foi apresentada em resposta à exigência dos ouvintes de Jesus de um milagre como o do antigo maná.
Enquanto a teologia romana ensina que o pão se torna Jesus, nosso amado Senhor ensinou que ele era o pão da vida. E há uma diferença abismal entre ambas as concepções.

Fernando D. Saraví

4 comentários:

  1. Este comentário foi removido pelo autor.

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  2. Certamente não há nenhuma insinuação de que um pão poderia transformar-se em Cristo pelas palavras da consagração de algum sacerdote.

    Comer a carne e beber o sangue de Jesus é equivalente a crer n`Ele, como o próprio Senhor o disse desde o princípio. Crer o contrário é cair na confusão dos judeus literalistas que ouviam Jesus sem compreendê-lo.

    Quanto ao vocábulo grego trögö significa: roer; alimentar-se; comer.

    Insisto em que não pode construir-se nenhum argumento pró-transubstanciação sobre os diferentes vocábulos. A única distinção válida é que esthion está no aoristo, o que indica uma ação passada cujo efeito persiste, e trögö está no presente, indicando uma continuidade na ação. Conforme já dito, refere-se àquele que creu e continua a crer em Cristo.

    Deus o abençõe.

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  3. De acordo com o «Dicionário Teológico do Novo Testamento»:

    «João ... parece seguir um costume, que geralmente substitui esthio com trogo. Enquanto a LXX [em] Salmo 41:10 tem esthio, João 13:18, sem dependência óbvia na LXX e aplicando a passagem a Judas, novamente tem trogo»

    (Leonhard Goppelt, Gerhard Friedrich, editor, Geoffrey W. Bromiley, translator, Theological Dictionary of the New Testament [TDNT], Vol. 8, [Grand Rapids: Eerdmans, 1972], 236-237).

    Em outras palavras, no Evangelho de João, não há uma distinção necessária a ser feita entre as palavras gregas esthio/phago e trogo, ambas significam "comer". Então, o que explica a mudança para trogo,

    A resposta simples é a melhor resposta:

    «O uso [de trogo] sugere que em João 6:51-58 a transição de ephagon [aoristo de esthio] para trogon (6:54, 56ff) deve ser entendida essencialmente como uma alternância com base gramatical entre as formas verbais» (Goppelt, TDNT, 8:236).

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