A 18 de julho de 1870, na sua IV Sessão, o
Concílio Vaticano I sancionou a Constituição Dogmática Pastor æternus sobre o primado e a infalibilidade do papa. O
capítulo IV trata sobre a infalibilidade.
Capítulo 4: Sobre o
magistério infalível do Romano Pontífice
[Argumentos tomados dos documentos
públicos.] Aquele primado apostólico que o Romano Pontífice possui sobre toda a
Igreja como sucessor de Pedro, príncipe dos apóstolos, inclui também o supremo
poder de magistério. Esta Santa Sé sempre o manteve, a prática constante da
Igreja o demonstra, e os concílios ecuménicos, particularmente aqueles nos
quais Oriente e Ocidente se reuniram na união da fé e da caridade, o
declararam.
Assim, os Padres do IV Concílio de
Constantinopla, seguindo os passos de seus predecessores, fizeram pública esta
solene profissão da fé: «A primeira salvação é manter a regra da reta fé.... E
como não se podem passar por alto aquelas palavras de nosso Senhor Jesus
Cristo: "Tu és Pedro e sobre esta pedra edificarei a minha Igreja"
[Mt 16,18] estas palavras são confirmadas por seus efeitos, porque na Sé
Apostólica a religião católica sempre foi preservada sem mácula e se celebrou a
santa doutrina. Como é nosso mais sincero desejo não separar-nos de maneira
alguma desta fé e doutrina, ...esperamos merecer achar-nos na única comunhão
que a Sé Apostólica prega, porque nela está a solidez íntegra e verdadeira da
religião cristã» [Fórmula do Papa Hormisdas, 11 de agosto de 515].
E com a aprovação do segundo Concílio de
Lyon, os gregos fizeram a seguinte profissão: «A Santa Igreja Romana possui o
supremo e pleno primado e principado sobre toda a Igreja Católica. Ela
verdadeira e humildemente reconhece que recebeu este, junto com a plenitude de
poder, do próprio Senhor no bem-aventurado Pedro, príncipe e cabeça dos
Apóstolos, cujo sucessor é o Romano Pontífice. E posto que ela tem mais do que
as outras o dever de defender a verdade da fé, se surgirem perguntas
concernentes à fé, é por seu juízo que estas devem ser definidas» [Da profissão
de fé do Imperador Miguel Paleólogo, lida no segundo Concílio de Lyon, sessão
IV, 6 de julho de 1274].
Finalmente há a definição do Concílio de
Florença: «O Romano Pontífice é o verdadeiro vigário de Cristo, a cabeça de
toda a Igreja e o pai e mestre de todos os cristãos; e a ele foi transmitido no
bem-aventurado Pedro, por nosso Senhor Jesus Cristo, o pleno poder de cuidar,
reger e governar a Igreja universal» [Concílio de Florença, sessão VI.].
[Argumento tomado do consentimento da
Igreja.] Para cumprir este ofício pastoral, os nossos predecessores trataram
incansavelmente para que a doutrina salvadora de Cristo se propagasse em todos
os povos da terra; e com igual cuidado vigiaram para que se conservasse pura e
incontaminada onde quer que haja sido recebida. Foi por esta razão que os
bispos de todo o mundo, por vezes individualmente, por vezes reunidos em
sínodos, de acordo com a prática largamente estabelecida das Igrejas e a forma
da antiga regra, referiram a esta Sé Apostólica especialmente aqueles perigos
que surgiam em assuntos de fé, de modo que se ressarcissem os danos à fé
precisamente aí onde a fé não pode sofrer falha [São Bernardo, Carta 190 (Tratado a Inocêncio II Papa contra os erros
de Abelardo) (PL 182, 1053D)]. Os Romanos Pontífices,
também, como as circunstâncias do tempo ou o estado dos assuntos o sugeriam,
algumas vezes chamando a concílios ecuménicos ou consultando a opinião da
Igreja dispersa por todo o mundo, algumas vezes por sínodos particulares,
algumas vezes aproveitando outros meios úteis brindados pela divina
providência, definiram como doutrinas a ser sustentadas aquelas coisas que, por
ajuda de Deus, eles souberam estar em conformidade com a Sagrada Escritura e as
tradições apostólicas.
Assim o Espírito Santo foi prometido aos
sucessores de Pedro, não de maneira que eles pudessem, por revelação sua, dar a
conhecer alguma nova doutrina, mas que, por assistência sua, eles pudessem
guardar santamente e expor fielmente a revelação transmitida pelos Apóstolos,
ou seja, o depósito da fé. Certamente a sua apostólica doutrina foi abraçada
por todos os veneráveis padres e reverenciada e seguida pelos santos e
ortodoxos doutores, já que eles sabiam muito bem que esta Sé de São Pedro
sempre permanece livre de erro algum, segundo a divina promessa de nosso Senhor
e Salvador ao príncipe dos seus discípulos: «Eu roguei por ti, para que a tua
fé não desfaleça; e tu, uma vez convertido, confirma os teus irmãos» [Lc
22,32].
Este carisma de uma verdadeira e nunca
deficiente fé foi portanto divinamente conferido a Pedro e aos seus sucessores
nesta cátedra, de maneira que possam cumprir o seu elevado ofício para a
salvação de todos, e de maneira que todo o rebanho de Cristo possa ser afastado
por eles do venenoso alimento do erro e possa ser alimentado com o sustento da
doutrina celestial. Assim, removida a tendência ao cisma, toda a Igreja é
preservada em unidade e, descansando em seu fundamento, se mantém firme contra
as portas do inferno.
Mas como nesta mesma época quando a
eficácia salvadora do ofício apostólico é especialmente mais necessária, há não
poucos que desacreditam a sua autoridade, nós julgamos absolutamente necessário
afirmar solenemente a prerrogativa que o Filho Unigénito de Deus se dignou dar
com o ofício pastoral supremo.
Por isso, apegando-nos fielmente à tradição
recebida dos inícios da fé cristã, para glória de Deus nosso salvador,
exaltação da religião católica e salvação do povo cristão, com a aprovação do
Sagrado Concílio, ensinamos e definimos como dogma divinamente revelado que:
O Romano Pontífice, quando fala ex cathedra, isto é, quando no exercício do seu ofício de pastor e mestre de todos os
cristãos, em virtude da sua suprema autoridade apostólica, define uma doutrina
de fé ou costumes que deve ser sustentada por toda a Igreja, possui, pela
assistência divina que lhe foi prometida no bem-aventurado Pedro, aquela
infalibilidade da qual o divino Redentor quis que gozasse a sua Igreja na
definição da doutrina de fé e costumes. Por isso, ditas definições do Romano
Pontífice são em si mesmas, e não pelo consentimento da Igreja, irreformáveis.
[Cânon] Se, porém, alguém ousar contrariar esta nossa definição, o que Deus não
permita, - seja anátema.
Dado em Roma em sessão pública, confirmado solenemente na Basílica Vaticana
no ano de nosso Senhor de mil oitocentos e setenta, no décimo oitavo dia de julho, no vigésimo quinto ano de Nosso Pontificado.
Dada a importância desta definição, vale a
pena analisar os seus fundamentos. Vamos por partes:
"Aquele primado apostólico que o
Romano Pontífice possui sobre toda a Igreja como sucessor de Pedro, príncipe
dos apóstolos, inclui também o supremo poder de magistério. Esta Santa Sé
sempre o manteve, a prática constante da Igreja o demonstra, e os concílios
ecuménicos, particularmente aqueles nos quais Oriente e Ocidente se reuniram na
união da fé e da caridade, o declararam".
Segundo a declaração do Vaticano I, a
posse por parte do bispo de Roma do supremo poder do magistério é algo que foi
sustentado sempre pela sé romana, demonstrado pela prática constante da Igreja
e declarado pelos concílios ecuménicos. Se se levar a sério estas palavras, o
"supremo poder do Magistério" deve achar-se facilmente refletido na
literatura patrística e nos cânones conciliares. No entanto, não ocorre tal
coisa.
Sem dúvida, a sé episcopal de Roma teve,
pelo menos desde finais do século I, uma preeminência que se baseava tanto no
facto de corresponder a uma Igreja grande e estabelecida na capital do Império,
como no martírio dos Apóstolos Pedro e Paulo ali. E, especialmente a partir do
século V, com Leão Magno, os bispos de Roma adquiriram maior autoridade e
estenderam a sua influência. No entanto, uma coisa é o primado de honra que
nunca lhe foi negado, e a autoridade correspondente, e outra muito diferente é
que a Igreja Católica Antiga reconhecesse um "supremo poder de
Magistério" (para não falar de infalibilidade) à sé romana em sentido
amplo ou ao seu bispo em particular.
Evidência aduzida de Concílios Ecuménicos
A seguir está uma lista dos sete primeiros
concílios ecuménicos, que são reconhecidos tanto pela Igreja de Roma como pelas
Igrejas do Oriente:
1. Primeiro Concílio de Niceia (325)
2. Primeiro Concílio de Constantinopla
(381)
3. Concílio de Éfeso (431)
4. Concílio de Calcedónia (451)
5. Segundo Concílio de Constantinopla
(553)
6. Terceiro Concílio de Constantinopla ou
Trulano (680-681)
7. Segundo Concílio de Niceia (787)
Se se observa esta lista que se estende
por mais de quatro séculos, chama de imediato à atenção que o primeiro concílio
geral que é citado a favor da doutrina proposta seja do século IX. Que então se
cresse na infalibilidade do bispo de Roma não provaria nem remotamente que tal
noção fosse uma crença constante e universal da Igreja antiga. Mas além disso,
como mostrarei a seguir, nem sequer pode demonstrar-se tal coisa numa data
relativamente tão tardia.
Por causa das disputas de jurisdição entre
o bispo de Roma e o patriarca Fócio de Constantinopla, o imperador Basílio o
Macedónio (867-886) convocou um concílio ecuménico. O imperador acordou com o
papa, na ocasião Adriano II (867-872) que os legados deste presidiriam o
concílio, e que a assembleia assinaria uma declaração reconhecendo o primado do
bispo romano, chamada Liber satisfaccionis. A parte pertinente deste
documento diz:
Primordial salvação é guardar a regra da
reta fé e não desviar-se de modo algum das Constituições dos Padres. E, pois,
não pode passar-se por alto a sentença de Nosso Senhor Jesus Cristo que disse:
«Tu és Pedro...» (etc), tal como foi dito se comprova pela experiência, pois na
Sé Apostólica se conservou sempre imaculada a religião católica ... [seguem
anátemas] ... Mas aceitamos e aprovamos também as epístolas todas do
bem-aventurado papa Leão, que escreveu sobre a religião cristã, como antes
dissemos, seguindo em tudo a sé Apostólica e proclamando as suas constituições
todas. E portanto, espero merecer achar-me numa única comunhão convosco, a que
prega a Sé Apostólica, na qual está a íntegra, verdadeira e perfeita solidez da
religião cristã; prometendo que no futuro não receberei entre os sagrados
mistérios os nomes daqueles que estão separados da comunhão com a Igreja Católica,
ou seja, que não concordam com a Sé... (Denzinger
# 171-172)
Duas coisas devem notar-se desta
declaração. A primeira é que não apresenta de maneira explícita a autoridade
própria do bispo de Roma, já que se refere à "Sé Apostólica". Em
segundo lugar, mesmo se se admitisse que tal autoridade está implícita na
declaração, é inegável que o documento não diz uma palavra acerca da
infalibilidade do bispo romano. A razão é óbvia: no século IX ninguém acreditava que
algum bispo pudesse ser infalível, como o indica o ainda recente exemplo de
Honório, bispo de Roma condenado por heresia no século anterior pelo III
Concílio de Constantinopla.
Como se isto fora pouco, o documento que o
Vaticano I invocou como primeira testemunha da crença universal e constante em
que o "supremo poder do Magistério" residia nos bispos de Roma foi
"aprovado" em circunstâncias extremamente duvidosas. Não foi
submetido à consideração para seu debate e votação no concílio, mas imposto aos
bispos como um requisito para poder participar. O bispo Joseph Hefele, máxima
autoridade católica do século XIX na história conciliar, observou:
Todos os bispos gregos tiveram que
subscrever esta fórmula para ser admitidos no concílio. Porém, depois se
arrependeram de tê-lo feito e roubaram o documento com as assinaturas. Ignoro a
força demonstrativa que possa ter tal aprovação a favor da infalibilidade
papal.
Citado por August Hassler, Cómo llegó
el papa a ser infalible. Fuerza y debilidad de un dogma. Barcelona:
Planeta, 1980; p. 115.
A assistência a este concílio IV de
Constantinopla foi escassa; reuniu pouco mais de cem bispos. A
assembleia reafirmou a autoridade das tradições eclesiásticas, o culto às
imagens e a independência do concílio em relação ao poder secular (declaração
mais formal do que outra coisa). O cânon 21 – ou 13 no texto grego - insiste em
que nenhum poder secular pode desonrar nem destituir nenhum patriarca, "e
principalmente o santíssimo Papa da antiga Roma, depois o Patriarca de
Constantinopla, depois os de Alexandria, Antioquia e Jerusalém..."
O concílio reconheceu expressamente o
primado de honra de Roma, mas ao mesmo tempo estabeleceu de maneira não menos
clara a superioridade do concílio ecuménico sobre a sé romana:
Ora, se se reunir um Concílio Universal e
ainda surgir qualquer dúvida e controvérsia acerca da Santa Igreja de Roma, é
mister que com toda a veneração e devida reverência se investigue e se receba
solução da questão proposta, ou tirar proveito, ou aproveitar; porém não dar
temerária sentença contra os sumos pontífices da antiga Roma. (Denzinger 341)
Em resumo, não há evidência aqui nem
alusão à infalibilidade da Sé romana e muito menos à infalibilidade pessoal do
seu bispo. Mas não acaba aqui o problema.
Na hora de procurar algum tipo de apoio,
por mais fraco que fosse, para a sua doutrina, os bispos infalibilistas do
Vaticano I esqueceram de bom grado que o IV Concílio de Constantinopla
entrou na lista ocidental de assembleias ecuménicas pela porta dos fundos.
Em Constantinopla lançou-se um solene anátema contra Fócio, o patriarca de
Constantinopla caído em desgraça. Porém, uma reviravolta da situação política
restaurou Fócio no patriarcado em 877 e o novo bispo de Roma, João VIII
(872-882) declarou nulo o Concílio IV Constantinopla e o apagou da lista dos
ecuménicos. Como consequência, durante dois séculos em Roma não se teve por
ecuménico este Sínodo, apesar de ter sido presidido pelos legados papais.
A ocasião e o motivo da restauração do IV
de Constantinopla na lista ocidental de Concílios Ecuménicos são explicados por
Hassler (o.c., p. 115-116) como se segue:
Só em finais do século XI conseguiu o
Quarto Concílio de Constantinopla, graças a um «erro» dos canonistas,
reintroduzir-se gradualmente na lista dos Concílios Ecuménicos. A nova concepção
do papado, sustentada por Gregório VII (1073-1085) despertou o interesse por
este concílio. Além disso, o Papa encontrou no cânon 22 deste Concílio,
referente à investidura dos leigos, a arma mais contundente contra o imperador
do Ocidente. Contudo, até ao século XVI não se voltou a utilizar o título de
«Concílio Ecuménico VIII" para o Quarto Concílio Constantinopolitano.
Por outro lado, no Oriente este concílio nunca
foi reconhecido como ecuménico, pelo que a afirmação do Vaticano I sobre o
testemunho a favor da doutrina dos "concílios ecuménicos, particularmente
aqueles nos quais Oriente e Ocidente se reuniram na união da fé e da
caridade" é descarada e puramente falsa. O professor Hamilcar S. Alivisatos,
da Universidade de Atenas, assinala, pelo contrário:
A partir deste ponto, os caminhos das duas
Igrejas [a do Ocidente e a do Oriente] separam-se e o Concílio VIII constitui
para elas um objeto de controvérsia, uma reconhecendo-o como autêntico e outra
rejeitando a sua ecumenicidade. Esta contestação expõe novamente a questão da
autoridade suprema da Igreja. No Ocidente, depois dos sínodos de Constança, de
Ferrara e de Florença, esta autoridade concentra-se definitivamente na pessoa
do papa, considerado como infalível. No Oriente, a autoridade absoluta da
Igreja continua concentrando-se no Concílio Ecuménico. Ora, a Igreja do Oriente
não aceita como ecuménicos senão os sete primeiros concílios ...
Los concilios ecuménicos V, VI, VII y
VIIII. Em B. Botte et alii, El
Concilio y los Concilios. Aportación a la historia de la vida conciliar de la
Iglesia. Madrid: Ediciones Paulinas, 1962, p. 152; negrito acrescentado.
Em conclusão, o primeiro testemunho
aduzido a favor da crença universal e constante data do século IX, de um
concílio que não fala de infalibilidade e cuja ecumenicidade foi negada por um
papa e seus sucessores durante dois séculos, e nunca admitida no Oriente.
Dificilmente pudera imaginar-se um apoio mais débil para uma definição dogmática.
O segundo testemunho da fé constante e
universal da Igreja é o II Concílio de Lyon (1274), tido por XIV Ecuménico em
Roma. Neste sínodo, típico da Idade Média e portanto sob o completo controle
papal, se fez os orientais jurar uma confissão ao gosto romano. Eis aqui o que
escreve o sacerdote e historiador jesuíta Hubert Jedin:
Em 24 de junho chegaram os legados gregos:
o em outro tempo patriarca de Constantinopla, Germano, o arcebispo de Niceia e
o logóteta (chanceler) do imperador. Na quarta sessão de 6 de julho aceitaram a
confissão de fé que se lhes havia imposto e que continha o
reconhecimento do primado pontifício, a doutrina do purgatório e o número de
sete dos sacramentos e juraram em nome do seu imperador a união com a Igreja de
Roma. Durante a missa cantou-se o credo com o filioque, em latim e em grego.
Uma vez que assim tinham confessado os gregos a sua fé no filioque, se lhes
permitiu conservar o texto tradicional de seu símbolo. A união não teve
consistência não só porque o imperador se tinha deixado levar por motivos
políticos e encontrou oposição no episcopado grego, mas também
porque o papa Martinho IV (1281-1285) apoiou os projetos de conquista
no Oriente do rei de Nápoles...
Breve historia de los concilios. Barcelona: Herder, 1963, p. 72-73; negrito
acrescentado.
Evidentemente o papa Gregório X conseguiu impor
estritas condições aos orientais porque o imperador Miguel VIII Paleólogo se
encontrava numa posição vulnerável e necessitava desesperadamente do apoio do Ocidente,
pelo que estava disposto a admitir qualquer confissão de fé. Outro historiador
jesuíta, Joseph Gill, expõe claramente a situação:
Todo o mundo sabe que o concílio de Lyon de
1274, se bem que pareceu prometer aos latinos a união das Igrejas, desde o
seu começo estava condenado ao fracasso. Não teve mais do que três
delegados gregos, que aceitaram desde o princípio a doutrina do filioque
(1): sinal evidente de que o imperador Miguel VIII queria comprar por este meio
a proteção do papa contra as ambições orientais de Carlos de Anjou. Há, no
entanto, que reconhecer que o imperador foi fiel à sua palavra até à sua morte.
Quanto aos três delegados, não representavam a sua Igreja. Ainda antes
do concílio, o imperador quis persuadir esta a aceitar a união, mas esta a
rejeitou. Era pois normal que, depois, ela considerasse sem valor o ato de
união assinado pelos delegados.
El acuerdo greco-latino en el Concilio
de Florencia, em Botte et alii, o.c., p. 221;
negrito acrescentado.
Além disso, segundo o Enchiridion
symbolorum de Heinrich Denzinger (p. 167, nota), o Credo foi proposto em
1267 por Clemente IV ao imperador, e apresentado por este último no II Concílio
de Lyon. Em outras palavras, não se tratava em sentido próprio de uma definição
conciliar: não foi discutida nem legalmente proclamada. E certamente nunca
foi aceite pelos bispos orientais. Mesmo supondo que tivesse sido aceite,
de pouco teria valido para a doutrina infalibilista do Vaticano I, já que o
Credo não fala de modo algum de infalibilidade, mas de primazia; em concreto,
dá direito de apelação de qualquer causa à Sé romana, e proscreve a apelação de
um juízo emitido por Roma.
Em conclusão, um concílio sem participação
oficial da Igreja oriental, com um credo que foi aceite pelo imperador por
motivos políticos, mas nunca pelos bispos orientais, e que também não fala de
infalibilidade, é a segunda maior evidência da universal e constante fé da
Igreja no supremo poder magisterial do bispo de Roma.
O terceiro testemunho aduzido pelos bispos
do Vaticano I foi o de Florença (1438-1445), tido em conjunto com os de
Basileia e Ferrara como XVII Ecuménico pela Igreja de Roma. Este concílio
assinalou o triunfo do papado absolutista gregoriano sobre a mais antiga
concepção conciliar da autoridade eclesiástica suprema. De novo o imperador do
Oriente, agora João VIII Paleólogo, e um grupo de bispos orientais haviam
recorrido ao Ocidente em busca de ajuda contra os invasores (neste caso turcos)
que ameaçavam a cidade de Bizâncio. Nesta ocasião o papa e o imperador
aliaram-se para forçar os bispos orientais a aceitar a primazia de Roma com
base em documentos forjados (as falsas Decretais e outros) que os gregos
rejeitavam totalmente. Finalmente os bispos orientais tiveram que ceder –
embora alguns tenham resistido com firmeza - e a maioria deles aceitou um
decreto conciliar que afirma o primado universal da Santa Sé Apostólica e
estabelece o bispo de Roma como sucessor de Pedro, verdadeiro Vigário de Cristo
e cabeça de toda a Igreja, ao qual lhe foi dado «pleno poder de apascentar,
reger e governar a Igreja universal, como está contido nas atas dos Concílios
Ecuménicos e nos sagrados cânones" (Denzinger # 694).
Como anota Jedin, na realidade os bispos
gregos que aceitaram assinar o decreto entendiam a última cláusula em sentido restritivo,
no sentido da sua conformidade com os decretos e cânones autênticos que eles,
os gregos, conservavam, e não segundo os documentos espúrios de criação recente
e produção local que Roma esgrimia em seu favor. Portanto, tal como o entendiam
estes homens também o seu assentimento não apoiaria as pretensões papais feitas
dogma no Vaticano I.
No entanto, nem sequer esta ressalva
impediu que a delegação grega ao Concílio de Florença fosse recebida como
traidora e perjura. De facto, o decreto motivou um novo cisma porque as
pretensões romanas eram escandalosas e inauditas; o Oriente jamais havia conhecido,
e muito menos reconhecido, semelhantes coisas. É óbvio que os gregos jamais
reconheceram o Concílio de Florença como ecuménico.
A isto se acrescenta o facto de que
inclusive no Ocidente se questionou a validade do concílio florentino por causa
da sua escassa representatividade – com uma esmagadora maioria de prelados
italianos - e do seu desprezo para com as decisões de sínodos muito mais
representativos da Igreja ocidental, como os de Constança e Pisa. Em França não foi aceite como ecuménico durante séculos.
E, desde logo, o malfadado decreto
conciliar não diz uma palavra acerca da infalibilidade pessoal ou de ofício do
pontífice romano.
Portanto, é claro que este terceiro
testemunho acerca da constante e universal crença no supremo poder de
Magistério dos bispos romanos carece, como os dois anteriores, de valor
probatório.
Evidência aduzida das Escrituras
A argumentação a favor da infalibilidade
inclui somente duas citações bíblicas, a saber, Mateus 16:18 e Lucas 22:32. À
falta de um melhor fundamento, repete-se estes textos como uma ladainha a
favor de qualquer prerrogativa que o bispo de Roma reclame para si.
Devido ao simples facto de ser tão seguro,
como pode sê-lo a evidência histórica, que Pedro não foi o primeiro bispo de
Roma, não há razão para aplicar aos papas os textos que se referem ao príncipe
dos Apóstolos. E ainda que assim fosse, estes textos também não justificam
afirmar a infalibilidade doutrinal do bispo de Roma, nem sequer nas condições
restritas que determinou arbitrariamente o Concílio Vaticano I.
A Igreja de Roma exige que os textos
bíblicos se interpretem conforme o sentir unânime dos Padres. Ora, os textos em
questão não são citados durante quase os quatro primeiros séculos com uma
aplicação particular ao bispo de Roma; e quando começam a sê-lo, são
consistentemente os bispos de Roma os que os invocam em seu próprio favor.
Adicionalmente, durante o primeiro milénio de vida da Igreja nenhum Padre
mostra evidência de ter considerado estes textos alguma vez como indicativos de
um magistério infalível do bispo romano.
Outros testemunhos
No «Argumento tomado do consentimento
da Igreja» os bispos do Vaticano I manipularam a história numa lamentável
tentativa de dar a impressão de que todas as disputas da Igreja antiga em
assuntos de fé foram encaminhadas para Roma desde o princípio. Isto é
obviamente falso. Apesar da importância da sé romana, a fé foi defendida
frequentemente com mais firmeza e clareza desde outros sítios, por exemplo, por
Ireneu de Lyon, Cipriano de Cartago, Atanásio de Alexandria ou Agostinho de
Hipona. Não é senão no século V que o bispo de Roma, Leão I Magno, representa a
posição ortodoxa no Concílio de Calcedónia (451). E mesmo aí, o escrito de Leão
– que repetia o que foi dito por Tertuliano mais de dois séculos antes - não foi
recebido e proclamado como expressão de ortodoxia até ter sido examinado pelos
demais bispos.
Em segundo lugar, sugere-se que a
salvaguarda da fé foi desde o princípio tarefa do papa mediante a convocação de
Concílios Ecuménicos e outros sínodos, quando é arqui-sabido que os primeiros
concílios ecuménicos não foram nem convocados nem presididos pelos bispos
romanos, nem era preciso necessariamente o assentimento destes (embora
certamente fosse valioso) para dar validade às decisões e formulações
conciliares.
Em terceiro lugar, o decreto vaticano
declara falsamente que os Padres seguiram as doutrinas dos pontífices romanos,
quando a verdade é exatamente a oposta: os papas que conservaram a ortodoxia
seguiram as pisadas dos Padres. De facto, a famosa declaração de Leão
basicamente reformula o que foi dito por Tertuliano mais de dois séculos antes.
Finalmente, o decreto afirma sem
demonstrar que «o carisma de verdade e fé nunca deficiente foi prometido a
Pedro e aos seus sucessores» e define-se a infalibilidade supostamente
«seguindo a tradição recolhida fielmente desde o princípio da fé cristã».
Contudo, permanece o facto de que o decreto não proporciona nenhuma
evidência patrística nem conciliar de que tal coisa tenha sido crida desde
o princípio, e pelo contrário tudo indica que a doutrina da infalibilidade não
surge senão na já bem avançada Idade Média, e ainda terão que se passar muitos
anos antes de que o papado a aproprie.
Como conclusão geral, a suposta
infalibilidade que a Igreja de Roma atribui ao papa carece de apoio escritural,
patrístico, conciliar e histórico. Se alguém deve crer semelhante doutrina,
terá que fazê-lo sobre a exclusiva autoridade do próprio Concílio Vaticano I, e
sabendo que tal sínodo distorceu gravemente os factos da história para
sustentá-la.
Fernando D. Saraví
(1) A palavra latina filioque
significa "e o Filho" e refere-se à fórmula da dupla processão do
Espírito Santo do Pai e do Filho. Foi acrescentada no Ocidente ao Credo
Niceno-Constantinopolitano. Os orientais não admitiram tal adição, e a
diferença foi causa de longas disputas.
"O 'inventor' [da infalibilidade papal] é o excêntrico franciscano Petrus Olivi (falecido em 1298), muitas vezes acusado de heresia. Com a sua doutrina da infalibilidade, ele queria que todos os papas posteriores subscrevessem um decreto de Nicolau III, em favor da sua tendência entre os franciscanos, que exigia pobreza rigorosa. Portanto, em 1324, o Papa João XXII condenou a doutrina da infalibilidade como obra do diabo, o pai da mentira. A consequência é que, inicialmente, a infalibilidade do Papa foi uma heresia que foi condenada!" H. Küng, Disputed Truth: Memoirs II (Continuum 2008), 172.
ResponderEliminar"E sobre a infalibilidade dos concílios ecumênicos? Um dos resultados das pesquisas feitas pelo jesuíta Hermann-Josef Sieben é que nem mesmo Atanásio, o grande campeão do primeiro Concílio Ecumênico de Nicéia (325), acreditava nela. De fato, a autoridade dos concílios ecumênicos tinha uma base completamente diferente. Um concílio não tem autoridade simplesmente porque de acordo com certas pressuposições é "ecumênico", menos ainda, por poder produzir declarações infalíveis, com o apoio do Espírito Santo. Pelo contrário, é autoritativo na medida em que testifica a fé apostólica, na medida em que, para usar uma formulação feliz de Atanásio sobre o Concílio de Nicéia, ele “respira escritura”, em suma, na medida em que é uma expressão autêntica e credível do evangelho, " ibid. 172.